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Na reta final do segundo turno da eleição presidencial, no fim de outubro, o petismo lançou uma ofensiva desesperada que incluiu as universidades públicas, ambientes tradicionalmente amigáveis aos partidos de esquerda. A Justiça Eleitoral tentou coibir o uso político-eleitoral das universidades, mas todas as decisões neste sentido acabaram revertidas pelo Supremo Tribunal Federal – primeiro, com liminar da ministra Carmen Lúcia; depois, por todo o plenário, que confirmou a liminar de forma unânime. Um veredito em que os integrantes do Supremo colocaram a lei eleitoral em oposição à liberdade de expressão de uma forma bastante inconsistente e que apresentou omissões bastante perigosas.

Na Universidade Federal de Campina Grande (PB), por exemplo, a Polícia Federal apreendeu panfletos favoráveis a Fernando Haddad e críticos a Jair Bolsonaro na Associação de Docentes da UFCG. Na Universidade do Estado da Bahia, o Ministério Público Eleitoral notificou a instituição pedindo a retirada de cartazes em favor de Haddad, e foi atendido. Na quinta-feira anterior à votação, houve ações autorizadas pela Justiça Eleitoral em 17 instituições públicas de nove estados: Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Todas elas acabaram suspensas, no atacado, pelo Supremo após a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, propor uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

Os ministros do Supremo escolheram a retórica e desprezaram a técnica

A Lei 9.504/97, conhecida como Lei das Eleições, determina, em seu artigo 37, que “Nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum, inclusive postes de iluminação pública, sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados”. A descrição inclui as dependências das universidades públicas. Se a propaganda é feita por professores ou servidores da universidade, ainda viola o artigo 73, que lista uma série de proibições aplicadas a “agentes públicos, servidores ou não”.

Ainda que nem todas as ações que foram alvo da Justiça Eleitoral efetivamente configurem propaganda política – em um dos casos, o juiz ordenou a retirada de uma faixa com os dizeres “Direito UFF antifascista”, sem fazer menção a nenhum candidato, embora todas as paredes da Universidade Federal Fluminense saibam quem foi o único postulante ao Planalto rotulado de “fascista” neste 2018 –, é inegável, pelas descrições, que houve, sim, casos em que a Lei Eleitoral foi violada.

Como a Lei 4.509 não abre exceção para universidades públicas, nem para seus professores e funcionários, fica evidente que o legislador desejou que a restrição à propaganda se aplicasse também nesse ambiente. Assim, o que o Supremo foi chamado a resolver era o conflito entre essa proibição e o direito à liberdade de expressão e à autonomia universitária, ambas protegidas constitucionalmente. Havia uma série de caminhos possíveis para a corte nesse caso. Ela poderia, alegando que a universidade é um espaço diferenciado, o local por excelência do embate de ideias, fazer uma interpretação restritiva do artigo 37 da Lei 9.504 e determinar que ele não se aplica ao ambiente universitário. O STF poderia, igualmente, lembrar que a liberdade de expressão não é absoluta (como, aliás, tem sido a jurisprudência da corte) e que, em um período sensível como o eleitoral, a restrição da lei eleitoral faz sentido e deve prevalecer. Seria uma análise técnica destinada a dirimir o conflito.

Flavio Gordon: A guerra pela universidade (31 de outubro de 2018)

Guilherme Fiuza: A resistência ao ridículo (2 de novembro de 2018)

O que, no entanto, aconteceu? Os ministros escolheram a retórica e desprezaram a técnica. Fizeram a defesa genérica da liberdade de expressão, recorreram a chavões, criticaram o artigo 37 da Lei 9.504 (chamado de “paternalista” por Alexandre de Moraes) e, no fim, decidiram pela suspensão das ações determinadas pela primeira instância sem nenhuma decisão a respeito da validade e da aplicação do texto da lei eleitoral. O mais perto que se pode chamar de análise técnica foi feito pela relatora, Cármen Lúcia: o artigo 37 teria o objetivo de impedir que a estrutura e os bens do Estado sejam usados para desequilibrar o debate eleitoral, mas argumentou que ele não ampararia ações que limitassem a livre manifestação do cidadão. Raciocínio que tem uma grave falha: afinal, qualquer propaganda – não apenas na universidade – é manifestação da liberdade de expressão. O artigo 37, no entanto, proíbe essa propaganda. Portanto, é impossível, ao mesmo tempo, defender o direito ilimitado à liberdade de expressão e manter em pé um artigo que limitaria essa liberdade. Mas foi justamente o que Cármen Lúcia fez, amparando uma decisão fundamental em uma inconsistência elementar.

Se a “veiculação de propaganda” vedada pela Lei das Eleições no artigo 37 não passa de uma “livre manifestação do pensamento” que precisa ser preservada a todo custo, e se até mesmo professores e funcionários podem se engajar na defesa explícita de candidatos ou no ataque a outros, dentro das dependências das universidades públicas, o resultado lógico de tais deliberações seria a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 37 e 73 da Lei 9.504, pelo menos no que se aplicaria às universidades públicas. Os ministros, no entanto, não chegaram a esse ponto, até porque em nenhum momento foram capazes de explicar como conciliar essa liberdade de expressão com o princípio da impessoalidade na administração pública, que também é violado quando um agente público faz propaganda a favor ou contra um candidato em instalações públicas.

Leia também: A universidade desejada pelos bárbaros (artigo de Rodrigo Jungmann, publicado em 7 de janeiro de 2017)

Leia também: Câmpus-santo (artigo de Gabriel Ferreira, publicado em 8 de outubro de 2014)

Na verdade, a decisão, com suas inconsistências e omissões, criou uma enorme zona cinzenta: ao mesmo tempo em que as ações para coibir os crimes eleitorais foram suspensas, os atos de propaganda dentro das universidades também não foram declarados legais. Em outras palavras, continuou havendo crime, mas o Supremo preferiu ignorá-lo. O precedente que isso cria transforma as instituições públicas de ensino em uma “zona franca” onde vigorará o vale-tudo eleitoral, como foi o caso da instalação de um núcleo do PSol dentro do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, com servidores da escola distribuindo material de campanha nas eleições municipais de 2016. Se a Justiça e a polícia não podem coibir a campanha eleitoral dentro das universidades públicas, na prática o que temos é a sua liberação.

A universidade é, de fato, o local por excelência do embate de ideias, ou pelo menos deveria ser – basta verificar como a defesa de qualquer ideia crítica à esquerda quase não encontra tolerância na universidade pública. A propaganda eleitoral dentro desse ambiente, no entanto, distorce o espírito da sadia liberdade de expressão, ainda mais quando realizada por agentes que estão a serviço do Estado, que tem de se manter neutro, uma neutralidade que agora está ameaçada pela recente decisão do Supremo.

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