Sofrer goleadas sempre dói, embora algumas derrotas tragam mais e outras tragam menos dor, algumas passem logo e outras tenham consequências duradouras. Pouco mais de dez anos depois da maior vergonha da história do futebol brasileiro, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal conseguiu ampliar aquele placar em uma das maiores vergonhas da história da luta pela democracia no país, derrotando o Brasil por 9 a 1 – esta é a soma dos cinco votos pela manutenção da liminar de Alexandre de Moraes que bloqueou o X em todo o país, e dos quatro votos favoráveis a seguir proibindo os brasileiros de usarem VPNs para acessarem a rede social, sujeitando-o à escorchante multa de R$ 50 mil diários.
Não era preciso ser um cínico incorrigível para supor que Moraes só submeteria uma decisão desta relevância ao escrutínio de seus colegas, na turma ou no plenário, se estivesse certo de que teria o apoio da maioria deles. E ele tinha boas razões para confiar na sua avaliação. Afinal, tratava-se de Flávio Dino, que quando ministro da Justiça de Lula foi grande defensor de regulamentações pesadas sobre as mídias sociais e usou sua pasta para perseguir as big techs que ousaram dar sua opinião sobre o PL 2.630/20 (perseguição esta que contou com a ajuda de Moraes em outra frente); de Cristiano Zanin, que quando advogado de Lula durante as eleições não hesitou em pedir censura ao TSE sempre que tinha a oportunidade; e de Cármen Lúcia, aquela que trocara o “cala boca já morreu” pela defesa da censura em uma “situação excepcionalíssima”, mas que se tornou bastante corriqueira. Nenhum deles decepcionou, acompanhando o relator no liberticídio.
A decisão colegiada não dilui a responsabilidade de Moraes, que continua a ser o censor-mor da República; a diferença é que, agora, outros se juntam a ele na lista dos que, a pretexto de defender a democracia, atropelam-na
Sobrou apenas Luiz Fux, responsável pelo gol de honra. Ele até acompanhou Moraes no bloqueio ao X, mas “com as ressalvas de que a decisão referendada não atinja pessoas naturais e jurídicas indiscriminadas e que não tenham participado do processo, em obediência aos cânones do devido processo legal e do contraditório”, ou seja, afirmando que os brasileiros não deveriam ser submetidos à “obrigação de não fazer” imposta por Moraes ao proibi-los de usar VPNs para acessar o X. Os usuários só poderiam ser punidos se usassem a ferramenta para “manifestações vedadas pela ordem constitucional, tais como expressões reveladoras de racismo, fascismo, nazismo, obstrutoras de investigações criminais ou de incitação aos crimes em geral”, ou seja, se cometessem crimes no X graças ao uso de uma VPN.
Nos votos, uns mais, outros menos extensos, os ministros recorreram aos argumentos surrados e que, se fazem sentido lidos isoladamente, no caso do X contam apenas a metade da história (ou menos que isso). Zanin, por exemplo, observou que “ninguém pode pretender desenvolver suas atividades no Brasil sem observar as leis e a Constituição Federal”, o que é correto, mas deveria se aplicar também aos ministros do STF, já que Moraes foi o primeiro a “desenvolver suas atividades no Brasil” sem observar a Constituição, que veda a censura prévia desejada por ele nas inúmeras decisões sigilosas de derrubada de perfis. Cármen Lúcia questionou: “haveria soberania de um povo quando, no espaço nacional, não houvesse como garantir o direito brasileiro, incluído aquele afirmado na Constituição do Brasil?”, referindo às desobediências de Elon Musk, sem perceber que os brasileiros não têm seus direitos garantidos quando são submetidos a censura prévia e a processos sigilosos nos quais a ampla defesa e o devido processo legal não são respeitados.
E Dino iniciou o mais longo dos votos (à exceção daquele do relator Moraes) afirmando que “a ordem jurídica pátria não pode ser ignorada ou atropelada por nenhuma outra ‘fonte normativa’, por mais poderosa que ela imagine ou deseje ser”, e que “são os tribunais do Brasil, tendo como órgão de cúpula o Supremo Tribunal Federal, que fixam a interpretação das leis aqui vigentes”. Interpretação sim, mas não reescrita nem abolição. Nem o STF pode anular os trechos da Constituição que protegem a liberdade de expressão e vedam a censura, por mais que o estejam fazendo neste momento. É Moraes a “fonte normativa” que atropela a ordem jurídica pátria atualmente, imaginando-se e desejando ser mais poderoso que tudo, demandando obediência absoluta a decisões moralmente injustas e juridicamente inconstitucionais.
Se em algum momento Moraes e seus colegas de turma avaliaram que o julgamento em plenário serviria para tirar os holofotes do ministro e “diluí-los” no colegiado, cujo respaldo às decisões monocráticas serviria para reduzir as pressões, enganaram-se redondamente. O relator dos inquéritos abusivos em curso desde 2019 continua a ser o censor-mor da República, responsável direto pelas maiores aberrações jurídicas cometidas no passado recente contra a liberdade de expressão no país. A diferença é que, agora, outros se juntam a ele de forma incontestável na lista dos que, a pretexto de defender a democracia, atropelam-na; e que, inflando-se de brios em referência à soberania do Brasil, fazem do brasileiro comum qualquer coisa, menos soberano, pois vítima do arbítrio dos próprios compatriotas em posição de poder.
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