Durou apenas dois dias o Decreto 10.530/2020, assinado no dia 26 por Jair Bolsonaro e que incluía no Plano de Parcerias de Investimentos (PPI) “a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” – em outras palavras, tratava-se de incluir a iniciativa privada na administração do serviço público de saúde, como aliás já ocorre em várias localidades do país, por meio de Organizações Sociais (OSs). Mesmo convencido do acerto do decreto e da necessidade de envolver o setor privado, especialmente para concluir unidades de saúde cujas obras estão paradas, Bolsonaro revogou o texto no dia 28, devido à repercussão negativa criada pela narrativa de uma suposta “privatização do SUS”, habilmente emplacada pela oposição de esquerda.
O slogan não é apenas falacioso; ele tem o perigoso poder de bloquear completamente uma discussão bastante importante sobre os meios que o Estado pode usar para atingir o fim de oferecer serviços públicos de qualidade, especialmente em áreas essenciais como saúde e educação. A Constituição os listou como direitos do cidadão e dever do Estado; não é nosso objetivo aqui nos alongar em discussões sobre qual o peso do setor público e da iniciativa privada ou sociedade civil em cada um desses serviços, mas questionar: uma vez que o Estado tem de oferecer ensino e atenção à saúde “públicos, gratuitos e de qualidade”, como deve fazê-lo?
A Constituição determina que o Estado ofereça saúde e educação gratuitas aos brasileiros, mas em nenhum momento exige que o poder público microgerencie toda a operação
Uma visão mais estatista defenderá que o poder público precisa estar presente em toda a operação – no caso das unidades de saúde, isso significa o envolvimento do Estado desde a fase de construção até a compra de material e medicamentos, passando pela contratação de profissionais não apenas de saúde, mas também de limpeza, segurança e o que mais for necessário ao bom funcionamento da unidade. Haverá, ainda, os que toleram algum nível de terceirização nas atividades não essenciais, como a limpeza. Mas este arranjo está longe de ser o único possível, e em muitos locais é preciso admitir que ele não tem gerado os resultados ideais em termos de qualidade.
O Brasil já tem um arcabouço jurídico para regular parcerias entre governos e o setor privado ou organizações da sociedade civil – arcabouço este considerado constitucional em 2015, quando o Supremo Tribunal Federal defendeu a possibilidade de o poder público assinar contratos de gestão. No caso da saúde, por exemplo, o governo repassa determinado valor à entidade responsável por administrar a unidade, que cuida do dia a dia da operação, fazendo ela mesma as contratações e aquisições necessárias. Um bom contrato estipulará metas a atingir, critérios de avaliação de desempenho, obrigações tanto da oferta ininterrupta do serviço quanto do pagamento em dia por parte do poder público. Órgãos de controle e fiscalização podem se envolver para garantir que todas as partes estejam cumprindo seus compromissos a contento.
E este modelo funciona? Pesquisas brasileiras e estrangeiras indicam que sim. O colunista Fernando Schüler citou, em texto publicado nesta quinta-feira, estudos realizados localmente e nacionalmente comparando unidades de saúde administradas por OSs e aquelas em que o poder público se encarrega de tudo. O modelo de parceria apresentou melhores resultados em termos de estrutura, eficiência e gestão de recursos. Resultados semelhantes apareceram no setor de educação em parcerias público-privadas envolvendo governo e empresas (que, ao contrário das OSs, visam lucro). Internacionalmente, um dos melhores exemplos é o das escolas charter norte-americanas, que funcionam com recursos públicos, mas são administradas por instituições do setor privado, e têm desempenho médio acima das escolas públicas tradicionais, fazendo diferença especialmente nos bairros mais pobres ao oferecer educação de melhor qualidade.
Incentivar as parcerias entre governo e sociedade ou iniciativa privada nos campos da saúde e educação exige, é verdade, uma enorme mudança de mentalidade. Há aqueles que, movidos pela ideologia, estão convictos de que qualquer indício de não interferência da mão grande do Estado em um serviço equivale a “privatização”. São esses que criam e espalham a desinformação e os gritos de guerra, absorvidos por uma grande parcela da população que não se guia a ferro e fogo por ideologias, que sofre com a precariedade dos serviços públicos, mas que foi acostumada a confiar no Estado gigante e provedor. E, consequentemente, desconfia da capacidade de a própria sociedade se organizar em torno de um objetivo nobre, desconfia de quem ofereça em troca bons produtos e serviços e espere ter lucro com isso. Quebrar este ciclo exige transparência e participação da população nas discussões sobre as parcerias, além de ampla divulgação dos bons exemplos.
“Não importa a cor do gato, importa que pegue o rato.” A frase não é de nenhum liberal da Escola de Chicago, mas de um ditador comunista, o chinês Deng Xiaoping, arquiteto da abertura econômica de seu país. Transportando a filosofia para o caso brasileiro, a Constituição determina que o Estado ofereça saúde e educação gratuitas aos brasileiros, mas em nenhum momento exige que o poder público microgerencie toda a operação. Os gestores, nas três esferas, têm o direito de recorrer a qualquer arranjo permitido pela lei, e o dever moral de escolher aquele que entregue os melhores resultados com maior respeito aos recursos tirados de cidadãos e empresas por meio dos impostos. O único compromisso das autoridades tem de ser com a população atendida, não com interesses corporativistas ou ideologias fossilizadas.
Deixe sua opinião