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Editorial

Uma “mobilização” centralizadora e intervencionista

O líder do PSL, Vitor Hugo, e a nova presidente da Comissão de Meio Ambiente, Carla Zambelli (PSL-SP)
O líder do PSL, Major Vitor Hugo. (Foto: Agência Câmara)

É razoável que um presidente da República tenha à sua disposição a possibilidade de intervir em praticamente toda a economia nacional, requisitar bens e serviços, e convocar qualquer brasileiro, a não ser em uma situação incrivelmente extraordinária, em que não haja outro meio de se conseguir coordenar esforços conjuntos? Pois tamanho intervencionismo sem um motivo bastante excepcional pode se tornar realidade caso o Congresso aprove um projeto de lei proposto pelo deputado Major Vitor Hugo, líder do PSL e ex-líder do governo na Câmara. Para isso, o Projeto de Lei 1.074/2021 quer alterar as regras sobre o pouco conhecido instrumento da “mobilização nacional”.

A mobilização nacional está prevista nos artigos 22, inciso XXVIII, e 84, inciso XIX, da Constituição, tendo sido regulamentada pela Lei 11.631/2007. No entanto, a lei atual reserva esta possibilidade apenas para o caso de agressão estrangeira; o PL 1.074 quer ampliar as circunstâncias que permitem a decretação de mobilização nacional, incluindo “situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente de pandemia” e “catástrofes de grandes proporções, decorrentes de eventos da natureza combinados ou não com a ação humana”. Em qualquer caso, a mobilização nacional seria decretada pelo presidente da República e exigiria aprovação do Congresso Nacional.

Há meios muito mais proporcionais que a “mobilização nacional” para se lidar com pandemias e catástrofes naturais, e que não demandam um controle total do governo sobre toda a produção nacional

De saída, o projeto já tem uma deficiência legal grave, pois ele não altera o inciso XIX do artigo 84 da Constituição, ou seja, a Carta Magna seguiria autorizando a mobilização nacional apenas em caso de agressão estrangeira – ao contrário do que alega Vitor Hugo quando diz que “a Constituição não fala que [a mobilização nacional] é para guerra. Fala que pode ser usada para resolver um problema de grandes proporções”, interpretação sem fundamento algum que pode ser afastada com uma simples e atenta leitura do texto constitucional. Sem uma PEC que mudasse o artigo 84 para incluir mais hipóteses de mobilização nacional, a alteração pretendida pelo PL 1.074 é inconstitucional.

Mas, ainda que não houvesse essa inconstitucionalidade, o projeto continuaria sendo uma grande insensatez. Seus defensores usam a comparação com os estados de defesa e sítio, com suas restrições a direitos e garantias fundamentais, para passar a imagem de que a mobilização nacional seria uma alternativa mais branda, mas ela também é uma saída extremamente radical. Isso porque o Poder Executivo poderia realizar “a convocação dos entes federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional; a reorientação da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de serviços; a intervenção nos fatores de produção públicos e privados; a requisição e a ocupação de bens e serviços; e a convocação de civis e militares”.

Este grau de intervenção é tamanho que apenas uma situação extremamente grave, e que não pudesse ser resolvida de outra forma, justificaria esse tipo de medida, e por isso acertou o legislador ao prevê-la apenas para o caso de guerra motivada por agressão estrangeira. Há meios muito mais proporcionais para se lidar com pandemias e catástrofes naturais, e que não demandam um controle total do governo sobre toda a produção nacional.

Na justificativa do projeto, o deputado afirma que seu objetivo é apenas buscar meios de “coordenar, em nível nacional, os esforços necessários ao suprimento dos bens e serviços indispensáveis ao atendimento da população acometida pela Covid-19” ou “a reunião de esforços nacionais no campo da logística, da produção, da comercialização e da distribuição de bens e serviços, de modo a resguardar a sustentação material da população e do Estado durante a situação de crise, até que seja superada”. Mas, se é assim, não é preciso recorrer à imposição; bastaria ao governo federal assumir o papel que deveria ter realizado desde o início da pandemia, em vez de se omitir, usando como escudo uma interpretação errônea da decisão do STF que estabeleceu a competência concorrente entre União, estados e municípios na adoção de medidas contra a pandemia.

Daí o motivo pelo qual tantos vejam outras intenções no PL 1.074. Na justificativa, Vitor Hugo menciona apenas a necessidade de “esforços necessários ao suprimento dos bens e serviços indispensáveis ao atendimento da população acometida pela Covid-19”, mas o fato é que há fortes divergências entre Jair Bolsonaro, de um lado, e governadores e prefeitos, de outro, sobre o funcionamento dos negócios, afetados pelo coronavírus. O projeto de lei, então, seria uma tentativa de dar a Bolsonaro o poder de anular medidas de restrição ao funcionamento dos negócios adotadas em vários estados e municípios, já que o governo teria a prerrogativa de determinar “a reorientação da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de serviços”. Seria o uso da força legal para atropelar as decisões (equivocadas ou não, pouco importaria neste caso) tomadas por prefeitos e governadores Brasil afora. Isso nada tem de “reunião de esforços”, que pressupõe uma união nacional em torno do mesmo objetivo; não passa da eliminação da discordância pela via da canetada.

Há motivos muito razoáveis para se enxergar com preocupação várias medidas adotadas por estados e municípios, e neste espaço já questionamos a razoabilidade de muitas delas, que afetam, por exemplo, a liberdade econômica e o direito de ir e vir. Mas, ainda que muitos as considerem intervenções abusivas, a resposta adequada seria dobrar a aposta e permitir ainda mais intervenções abusivas, como seriam as previstas na hipótese de mobilização nacional? Hoje, defensores do presidente podem ver a ideia com simpatia justamente por se tratar de alguém que apoiam, e que desejaria impor medidas que eles consideram corretas. Mas e depois? Esta é uma caixa de Pandora que nem vale a pena abrir.

Esse projeto, assim, nem devia existir; mas ele pode até tramitar em regime de urgência caso um requerimento apresentado no dia 29 de março seja aprovado. Neste momento em que todos os esforços precisam estar voltados à vacinação e ao reforço das estruturas hospitalares, o que o Brasil menos precisa é de truques legais para atribuir poderes extraordinários a um governo federal contrariado com o modo como governadores e prefeitos buscam conter o avanço da Covid-19. Um projeto centralizador, antidemocrático e extremamente intervencionista como este não pode, de forma alguma, prosperar.

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