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Constituição do Brasil veda textualmente a reeleição de presidentes da Câmara e do Senado em uma mesma legislatura. Mas metade do STF entendeu de forma diferente.
Exemplar da Constituição do Brasil.| Foto: Beto Barata/PR

Em seu texto desta quinta-feira, o colunista Fernando Schüler afirmou que no Brasil há pouquíssimo apreço real pela liberdade de expressão. Referindo-se à prisão do deputado federal Daniel Silveira, ele escreveu que “antigovernistas comemoraram a prisão do desafeto com a mesma força que o fariam governistas na hipótese contrária. Não vejo o princípio abstrato capaz de deter a paixão política em nossas democracias polarizadas”. Pois é justamente a defesa deste “princípio abstrato” que nos move a retomar o assunto neste momento em que tão poucos parecem ter a dimensão concreta do que está em jogo quando a suprema corte brasileira relativiza prerrogativas constitucionais de forma unânime, com o aplauso de boa parte – se não a esmagadora maioria – da opinião pública nacional.

Pois não se trata, aqui, de defender especificamente Daniel Silveira – e não negamos o desconforto ao fazer a defesa de prerrogativas parlamentares a partir de um caso tão grotesco, dado o baixíssimo nível das afirmações feitas pelo deputado do PSL fluminense. Também não negamos que esta posição pode até mesmo surpreender muitos leitores que conhecem o apreço que a Gazeta do Povo tem pela democracia e pelas instituições democráticas, bem como o nosso repúdio a regimes autoritários, de que viés ideológico forem. Toda a história recente do país, aliás, é motivo mais que suficiente para nos empenharmos na defesa das liberdades democráticas e, também, do mandato parlamentar, com todas as suas prerrogativas.

O constituinte, tendo aprendido com os episódios históricos e com a experiência das democracias consolidadas, quis preservar de forma especial o direito à liberdade de expressão daqueles que detêm o mandato parlamentar

Tendo saído da ditadura militar, que em seu auge se caracterizou pela perseguição também a parlamentares – o Congresso Nacional chegou a ser fechado três vezes: em 1966, em 1968 (pelo AI-5) e em 1977 (com o Pacote de Abril) –, o constituinte de 1988 se empenhou em proteger o mandato parlamentar de qualquer interferência indevida, como demonstração do respeito devido à soberania do voto popular. O resultado desta proteção aparece nos artigos 53 e 55 da Carta Magna. Essa proteção é tão importante que, segundo o parágrafo 8.º do artigo 53, as imunidades de deputados e senadores não podem ser abolidas nem mesmo durante o estado de sítio, a não ser com o apoio de pelo menos dois terços dos próprios parlamentares e em circunstâncias muito específicas.

Estas imunidades, como explicamos por ocasião da prisão de Daniel Silveira, são chamadas “processual” e “material”, e é esta última que nos interessa ressaltar neste momento, pois é ela que se encontra ameaçada pela decisão de Alexandre de Moraes, referendada pelo plenário do STF. Está descrita no caput do mesmo artigo 53: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Impossível não recordar, aqui, que o estopim para o AI-5 foi justamente um “crime de opinião”: o discurso de um deputado que irritou os generais, quando Márcio Moreira Alves, ao denunciar os abusos da ditadura, pediu um boicote às comemorações do Sete de Setembro. Naquela ocasião, a Câmara, valorosamente, resistiu às pressões do governo para cassar Moreira Alves, votando pela manutenção do seu mandato. O AI-5 veio no dia seguinte.

Nem de longe queremos, aqui, comparar os conteúdos das manifestações de Moreira Alves e Daniel Silveira, até porque não há comparação possível entre elas. Nosso objetivo é mostrar como o constituinte, tendo aprendido com os episódios históricos e com a experiência das democracias consolidadas, quis preservar de forma especial o direito à liberdade de expressão daqueles que detêm o mandato parlamentar. É verdade que a imunidade parlamentar no caso das “opiniões, palavras e votos” lhe permite manifestações que ao cidadão sem mandato estariam vedadas, mas a própria jurisprudência do STF reconhece que não se trata de privilégio. “A garantia é inerente ao desempenho da função parlamentar, não traduzindo, por isso mesmo, qualquer privilégio de ordem pessoal”, nas palavras de Celso de Mello, em 2005.

Mas existem motivos para tanto, e que estão na origem da imunidade material, seja no Brasil, seja em outros países: a necessidade de que o debate parlamentar se dê da forma mais livre e desimpedida possível. Tanto é assim que a jurisprudência do Supremo entende como absoluta a proteção a tudo o que seja dito dentro de uma casa legislativa, enquanto exige, para as manifestações proferidas em outros locais, a conexão entre as opiniões expostas e o exercício do mandato parlamentar. É uma distinção que faz sentido, mas que acabou usada no primeiro caso relevante de relativização da imunidade parlamentar material, no famoso caso em que o então deputado federal Jair Bolsonaro foi condenado, em 2015, a indenizar a deputada Maria do Rosário, condenação mantida em 2019 pelo STF. Naquela ocasião, a Justiça se baseou não nos pronunciamentos feitos na tribuna da Câmara, mas em entrevista dada por Bolsonaro, e que foi considerada sem ligação com a atividade parlamentar, ignorando que o contexto das afirmações transcendia mera desavença pessoal, inserindo-se em uma disputa político-ideológica que envolvia também considerações sobre a ditadura militar e a redução da maioridade penal.

A imunidade material, no entanto, não significa que os parlamentares não possam arcar com as consequências de manifestações deploráveis, como foram as de Daniel Silveira. Mas a quem cabe este controle? A própria Constituição já o responde de forma cristalina no artigo 55, quando dá aos deputados e senadores o poder de punir seus pares, o que tradicionalmente foi reconhecido pela jurisprudência do Supremo. “Caberá à própria casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa”, escreveu Carlos Ayres Britto em acórdão de 2003, ao rejeitar denúncia contra um deputado federal que, quando deputado estadual, havia ofendido um juiz na tribuna da Assembleia Legislativa de seu estado. Durante a análise do caso de Bolsonaro no STF, o ministro Luiz Fux retomou esta ideia ao dizer que cabe “à própria casa legislativa promover a apuração, interna corporis, de eventual ato incompatível com o decoro parlamentar”. É para isto que câmaras de vereadores, assembleias legislativas, Câmara dos Deputados e Senado têm seus Conselhos de Ética, e é para isto que existe a figura da “quebra de decoro parlamentar”.

É ao Conselho de Ética da Câmara, portanto, que cabe punir Daniel Silveira, e neste mesmo espaço afirmamos que a cassação não seria, de forma alguma, um desfecho injusto para o caso. Não há como aceitar que seja Alexandre de Moraes, ou mesmo o plenário do Supremo, a tomar para si esta responsabilidade, quando está evidente que o deputado está protegido pela imunidade material por manifestar opinião (não interessando quão absurda seja, e quão baixos sejam os termos usados) a respeito de temas da vida pública nacional. É por isso que a Câmara errou ao deixar apenas para esta sexta-feira a votação que pode relaxar a prisão de Silveira, quando deveria tê-lo feito assim que recebida a notificação oficial do STF, na quarta-feira, e errará ainda mais caso mantenha a prisão para não melindrar os ministros do Supremo. Tolerar que sejam eles, e não o Congresso, a decidir sobre casos como o de Silveira é deixar que se abra uma brecha nada desprezível nas proteções que a Constituição estabeleceu com extremo cuidado para garantir a liberdade da atividade parlamentar.

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