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Rodrigo Janot foi procurador-geral da República entre 2013 e 2017
Rodrigo Janot foi procurador-geral da República entre 2013 e 2017| Foto: Fellipe Sampaio/STF

O ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot chocou o país ao afirmar que, em 2017, chegou a entrar armado no prédio do Supremo Tribunal Federal para matar o ministro Gilmar Mendes e depois suicidar-se. O plano foi relatado por Janot em entrevista a veículos de imprensa por ocasião do lançamento do livro de memórias do ex-procurador-geral. “Foi a mão de Deus”, disse Janot ao explicar por que o crime não ocorreu. A mão da Justiça, no entanto, não foi tão benevolente. O ministro Alexandre de Moraes cassou o porte de armas de Janot e determinou que ele não chegue a menos de 200 metros de qualquer dos integrantes do STF, impedindo, ainda, seu acesso a qualquer das dependências da corte. Além disso, Moraes ordenou busca e apreensão nos endereços residencial e comercial do ex-procurador-geral, com apreensão de armas, telefones celulares e computadores.

Parte da decisão de Moraes é bastante razoável. Diante do relato do ex-procurador-geral, que deixa evidente a animosidade entre os personagens do episódio, faz sentido, como medida preventiva, impedir que Janot se aproxime não apenas de Gilmar Mendes, mas de qualquer outro membro da corte. Mesmo que no caso em tela a agressão não tenha sido consumada, e nem mesmo tenha havido declarações que configurassem ameaça, garantir uma distância segura entre o ex-procurador-geral e os ministros é medida que visa à segurança de quem esteve a ponto de tornar-se vítima, ao mesmo tempo em que não representa uma restrição desproporcional ao direito de ir e vir de Janot. O mesmo raciocínio, aliás, se aplica à suspensão do porte de arma. Mas a sensatez da decisão termina aqui.

Se admitimos a persecução penal baseada apenas na intenção, estamos legitimando a intrusão do Estado sobre as consciências individuais

Ocorre que Alexandre de Moraes não se limitou a garantir a segurança de Gilmar Mendes e de seus colegas de STF. Ao ordenar busca e apreensão no escritório e na residência de Janot, o ministro deu início a uma persecução penal baseada na mera declaração de que, um dia, o ex-procurador-geral esteve disposto a cometer um homicídio. Este procedimento se reveste de enorme gravidade, pois a mera intenção não configura o crime em si, descrito no artigo 121 do Código Penal, e nem mesmo se encaixa na descrição que o artigo 14, inciso II, do Código Penal faz da “tentativa”, em que, “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente” – afinal, foi Janot quem desistiu de seu intento, mesmo tendo a arma já engatilhada, conforme seu relato. Aliás, o artigo 15 trata justamente da desistência voluntária do crime, afirmando que “o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza só responde pelos atos já praticados”; e, no caso do ex-procurador-geral, nem mesmo os “atos já praticados” o incriminam.

Mesmo assim, diante um episódio tão surreal, cabe a pergunta: tudo o que Janot efetivamente fez antes de desistir de cometer o crime já não é suficiente para uma ação judicial? A ação foi premeditada, não foi resultado do calor do momento. Ele foi armado ao STF (tendo permissão para tal, dado o seu cargo), programou o encontro com Gilmar Mendes, engatilhou a arma – isso não basta? Por mais grave que seja tudo isso, a resposta é “não”. Se admitimos a persecução penal baseada apenas na intenção, por mais próximo que se esteja de cometer o crime, estamos legitimando a intrusão do Estado sobre as consciências individuais, que ainda podem frear a pessoa até o instante fatal. Jogar o peso da Justiça sobre alguém por admitir uma intenção criminosa não concretizada é reproduzir, na vida real, a trama de Minority Report, o conto de Philip K. Dick adaptado para o cinema por Steven Spielberg. No enredo, o detetive John Anderton passa a ser perseguido pela polícia quando mutantes com poderes premonitórios indicam que ele cometerá um homicídio, ainda que no momento presente o policial nem esteja cogitando assassinar ninguém.

Não há dúvidas de que Moraes sabe disso. Por isso, restou-lhe apenas alegar “sérios indícios” de que Janot teria incorrido no artigo 286 do Código Penal, que descreve a incitação ao crime. No entanto, o ministro não explica como a mera descrição do desejo de matar um ministro do Supremo poderia ser considerada incitação – seria preciso demonstrar que Janot, ao externar essa intenção, estivesse buscando estimular alguém a cometer o crime que ele mesmo desistiu de realizar. Pior ainda é o recurso a artigos da Lei de Segurança Nacional que teriam sido violados pelo ex-procurador-geral. De imediato, os artigos 26 e 27 se referem a crimes cometidos contra presidentes dos poderes, o que não era o caso de Gilmar Mendes em 2017; os artigos 22 e 23 tratam de “propaganda” ou “incitação” do crime, o que Moraes não consegue demonstrar; e o artigo 18 descreve o ato de impedir “o livre exercício de qualquer dos poderes da União ou dos estados”, o que Janot evidentemente não fez.

Como se já não fosse suficientemente grave a abertura de inquérito para investigar intenções, em vez de crimes cometidos ou efetivamente tentados, é preciso ressaltar que Moraes tomou sua decisão dentro do infame Inquérito 4.781, aberto por ordem do presidente da corte, Dias Toffoli, ao arrepio do devido processo legal, para investigar “fake news” contra membros do Supremo. Isso demonstra que este inquérito, que nem deveria existir, será usado para abranger qualquer conduta que os ministros queiram nele incluir, mesmo que sem relação alguma com a divulgação de notícias falsas.

É claro que o simples fato de um procurador-geral da República ter cogitado a hipótese de matar um ministro do STF para “salvar a honra” da família – segundo Janot, Mendes teria feito afirmações mentirosas sobre a filha do procurador-geral – é sumamente grave e revela um desequilíbrio que, se descoberto à época, inviabilizaria totalmente sua atuação em cargo fundamental da República. E é função do Judiciário garantir a segurança dos cidadãos diante de situações que colocam em risco sua vida. Mas a tentativa de criminalizar a intenção de se cometer um crime, ou o ato de tornar pública essa disposição, abre portas que deveriam permanecer fechadas.

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