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Policarpo Quaresma, aquele do triste fim, dizia que o problema do Brasil eram as saúvas. Hoje, se fosse recriado por algum gênio do naipe de Lima Barreto, o personagem mais ingênuo da nossa literatura diria que as saúvas do país são os carros – por causa deles não há paz debaixo do magnífico Cruzeiro do Sul.

Haveria, às pencas, quem assinasse embaixo. Existe de fato um consenso de que estamos atolados em automóveis demais, resultando em paciência de menos, impedindo-nos de viver o destino das cidades. Trata-se, contudo, de uma meia verdade – uma verdade à Policarpo.

Obediente à sã filosofia, e creditando um cadinho de criticidade aos "quaresmas", às saúvas e à malfadada febre por carros, cabe levantar senões e poréns, recorrendo às sacrossantas regras de causa e efeito e da razão prática. Os automóveis se multiplicam "também" porque o transporte coletivo rareia e falta com suas obrigações, acuando até quem queira deixá-lo ao sabor das garagens e dos pátios das montadoras.

Não é um assunto que se discorra sem sobressaltos. A culpa desse quiproquó danado quase que a rigor recai sobre os poderes sobrenaturais da indústria automobilística – a segunda do mundo, com tutano para pagar pela melhor publicidade e se adonar dos desejos mais profundos do homo sapiens. Mas há de se considerar que se vingasse uma política de transporte nos conformes, mais pessoas adeririam à rotina das catracas e dos terminais, fazendo da urbe aquilo que deve ser – o espaço do conhecimento, da troca e da convivência.

Quem duvida do anseio por andar de ônibus, que se coce. Aos argumentos. Tivesse o sistema de transporte público gasto todas as fichas, empenhado o melhor dos esforços, buscado a grandeza da ciência e do urbanismo, seria possível dizer que sim – "sim, a culpa é todinha das fábricas de automóveis". Mas não é o que acontece. Basta acenar, subir os degraus, passar a catraca e por-se a chacoalhar, feito uma banana no liquidificador, para saber. Atravessar o deserto nas corcovas de um camelo deve ser mais confortável.

Uma sondada rápida em políticas de transporte público desenvolvida aqui e ali mostra que o Brasil – por cultura, se é que se pode dizer assim – não empresta sua lendária criatividade para fazer vingar um dos maiores símbolos da civilização: o ônibus. A máxima vale para Curitiba, inclusive, que destarte um azulão aqui e outro ali, deixou de lado "a pujança de outrora", como talvez dissesse Policarpo.

Vale lembrar: há tecnologia e logística de sobra para fazer com que os lotações passem no horário, que motoristas sejam mais polidos, que as tarifas sejam mais em conta e até que o degrau do ônibus desça até o pé do passageiro e não o contrário – o que a turma com mais de 60 agradeceria cantando marchinhas de carnaval.

A capital do Paraná foi durante muito tempo a maior prova de que o Brasil podia ter um transporte coletivo tão bom quanto o de Paris, o de Madri ou o de Chicago. Mas não é o que o usuário pensa no momento. O último Índice de Passageiros por Quilômetro (IPK) – dado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Confederação Nacional de Transportes (CNT) – mostra que a capital e região, sinônimos de ônibus de qualidade, vêm perdendo clientela, se é que as empresas que gerenciam o setor consideram o usuário digno de ser chamado assim.

Anote: em uma década, o número de usuários por distâncias percorridas caiu 21%. Nenhuma outra capital brasileira teve tamanha taxa de abandono do coletivo. Pior do que isso – trata-se de uma tendência. Basta levantar os números divulgados pela imprensa desde meados de 1990, quando os percursos se tornaram maiores, mas o número de passageiros continuou minguando. Da janelinha do "busão", vê-se onde está toda essa gente.

Vale lembrar que os "transtornos de mobilidade" – como mostrou pesquisa recente do Observatório das Metrópoles – afeta a inclusão de jovens em escolas e em espaços de cultura, intimida a aderência entre áreas diferentes da cidade, perpetua a lógica perversa da cidade arquipélago, cujas ilhas não são atendidas pelas linhas que temos. O Ipea e a CNT não deixam mentir.

É de se pensar. Policarpo diria que se por aqui está assim, que dirá em outros lugares, tão mais entregue às saúvas. Mas também se pode dizer que já passa da hora de reagir, fazendo do aumento do número de passageiros uma causa a se abraçar.

Não é preciso ser gênio do urbanismo para intuir qual o caminho para que a cidade deixe de ser um formigueiro de automóveis. É preciso convencer as classes médias a tomar o coletivo. Gestores públicos e formadores de opinião precisam passar pelo ritual da catraca. Faltam engravatados a bordo.

Além do exemplo, que venham – repetindo aqui a cantilena do engenheiro João Carlos Cascaes, ex-presidente da Copel – benefícios para os usuários fiéis, sinais luminosos, conforto mínimo, entre outros merecimentos para quem desembolsa o valor da tarifa todos os dias. E campanhas, a viva-voz, convocando à carona solidária, ao dia sem carro, com todas as armas de Jorge, sem medo de perder votos daqueles que, por inanição intelectual, julgam o carro um atestado metálico de promoção humana.

Medo talvez seja a palavra: estamos tardando em reagir e os prejuízos para a cidade são incalculáveis. A cada vez que alguém deixa de circular pela calçada – e de usar os terminais – cresce o abandono, abrindo espaço para a violência e a degradação. Triste fim.

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