Após seis meses de prisão prolongada de forma abusiva, sem a menor justificativa, o ex-assessor presidencial Filipe Martins deixou o Complexo Médico Penal de Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba, na noite da última sexta-feira. Das dezenas de alvos da Operação Tempus Veritatis –, deflagrada no início de fevereiro para investigar supostas articulações para um golpe de Estado que, se é que chegou a ser planejado, jamais foi concretizado –, Martins tinha sido um dos poucos a ter expedida contra si ordem de prisão preventiva, sob alegações que logo se mostraram totalmente infundadas. A soltura, por ordem do mesmo Alexandre de Moraes que havia mandado prender Martins, não elimina nem corrige a injustiça sofrida, no entanto, até porque o arbítrio permanece, mesmo já não havendo o encarceramento.
Para ordenar a prisão de Martins, Alexandre de Moraes havia alegado o risco de o ex-assessor fugir do país, já que teria feito parte da comitiva presidencial que deixou o Brasil nos últimos dias do mandato de Jair Bolsonaro, com destino à Flórida – o que, de imediato, já seria um non sequitur, já que a realização de uma viagem internacional passada não seria indicativo do desejo de uma fuga. O fato é que mesmo a viagem alegada por Moraes jamais existiu. Martins não deixou o país em dezembro de 2022, e inúmeras evidências apresentadas pela defesa, de fotos a comprovantes de voos domésticos, atestaram sua permanência no Brasil. Este conjunto era tão irrefutável que a Procuradoria-Geral da República, que tem sido duríssima com os réus do 8 de janeiro, por exemplo, pediu a soltura de Martins já em março.
Mesmo fora da cadeia, o ex-assessor de Bolsonaro continua sendo vítima do arbítrio, tendo de cumprir medidas cautelares que não estão na lei e violam suas garantias constitucionais
Em nenhum trecho da decisão de soltura Moraes reconhece a desnecessária demora em conceder a liberdade a Martins, muito menos menciona o fato de a viagem aos Estados Unidos jamais ter ocorrido; diz apenas que “as inúmeras diligências realizadas pela Polícia Federal apontam a desnecessidade da manutenção da prisão preventiva”, e ainda por cima justifica uma decisão de maio, que manteve Martins preso já depois do pedido da PGR, afirmando que “não verifiquei alteração fática suficientemente relevante no transcurso do prazo entre a prolação da decisão [a ordem de prisão preventiva] e a apresentação do novo pedido de revogação”. O uso da primeira pessoa do singular, aqui, é sintomático, pois só mesmo Alexandre de Moraes não viu que as razões para prolongar a prisão jamais haviam existido.
Martins não está mais na prisão, mas precisará usar tornozeleira eletrônica; terá de entregar seu passaporte; precisará se apresentar semanalmente à Justiça; não poderá se comunicar com outros investigados do mesmo caso – incluindo o ex-presidente Bolsonaro –; terá cancelado o porte de arma, caso o tenha; e não poderá usar mídias sociais, estando sujeito a pena de R$ 20 mil diários por publicação que venha a efetuar. Basta, no entanto, olhar os artigos 319 e 320 do Código de Processo Penal para verificar que nem todas essas medidas cautelares estão previstas na legislação brasileira.
Especialmente absurda é a proibição de uso de mídias sociais, medida que não apenas está ausente da lista do CPP como também configura censura prévia, expressamente vedada pela Constituição. Como a Gazeta do Povo já ressaltou em outras ocasiões, trata-se do silenciamento puro e simples, que poderíamos descrever, sem medo de exagero, como uma versão moderna do que antigamente se chamava de “morte civil”: o indivíduo banido das mídias sociais praticamente não existe, estando impedido de se expressar sobre qualquer assunto, dos mais triviais aos mais profundos, tenha ou não relação com sua atividade profissional ou com os motivos pelos quais esteja sendo investigado.
No entanto, ainda são muito raras e tímidas as críticas a esse tipo de medida cautelar, que o STF e o Tribunal Superior Eleitoral vêm empregando com bastante liberalidade. Na mais benigna das hipóteses, podemos atribuir este silêncio à ignorância a respeito da gravidade de se negar a uma pessoa o direito ao exercício de uma dimensão fundamental, que é a comunicação; na pior das hipóteses, estamos diante da normalização de uma medida autoritária porque vem sendo aplicada apenas contra aqueles de quem se discorda, que estão do “outro lado” do espectro político. Ninguém é obrigado a gostar de Filipe Martins ou concordar com o que ele defende; mas quem tiver honestidade intelectual e o correto entendimento do valor da liberdade de expressão, do devido processo legal e da ampla defesa haverá de reconhecer que, mesmo fora da cadeia, o ex-assessor de Bolsonaro continua sendo vítima do arbítrio.
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