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Edifício sede do STJ, em Brasília: custo da Justiça brasileira atingiu o maior patamar da história.
Terceira Turma do STJ condenou por unanimidade padre que impetrou habeas corpus em favor de bebê prestes a ser abortado.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Uma pessoa pode ser condenada judicialmente por ter exercido seu direito de recorrer à Justiça para garantir a um terceiro o mais básico dos direitos, o direito à vida – e ter sucesso em sua reivindicação? A ideia de tal condenação parece completamente absurda, e realmente  o é. Mas, no Brasil do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), o surreal se tornou real: um sacerdote católico foi condenado a pagar indenização a um casal, por ter impetrado habeas corpus em favor de um bebê que estava para ser abortado. A decisão transitou em julgado no fim de setembro, após o ministro Dias Toffoli, do Supremo, considerar prejudicado o último recurso do padre, que tinha sido condenado em 2016 pelo STJ.

Em 2005, um casal de Morrinhos (GO) descobriu, com cinco meses de gestação, que seu bebê sofria de síndrome de body stalk, uma doença que inviabiliza a vida fora do útero, e conseguiu na Justiça a autorização para realizar um aborto. Quando a mãe já estava internada e o bebê estava prestes a ser morto, um desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás concedeu um habeas corpus impedindo o procedimento, a pedido do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, de Anápolis (GO), nacionalmente conhecido por seu trabalho em defesa da vida. O aborto não ocorreu; uma semana depois, a mãe entrou em trabalho de parto, e a criança nasceu e faleceu no intervalo de pouco menos de duas horas.

Três anos depois, em 2008, o casal decidiu processar o padre Lodi, mas perdeu na primeira e segunda instâncias. Recorreu, então, ao STJ, onde conseguiu a primeira vitória, por unanimidade, em 2016, tendo como relatora do caso na Terceira Turma a ministra Nancy Andrighi. Nenhum dos vários recursos impetrados pela defesa do sacerdote teve sucesso, nem no STJ, nem no STF, levando ao trânsito em julgado do caso.

O desprezo pelo instituto do habeas corpus patrocinado pelos tribunais superiores criminalizou o exercício de um direito básico, algo incompatível com um Estado Democrático de Direito

Há uma série de fatores que fazem da condenação um absurdo jurídico sem tamanho. Poderíamos citar o fato de Andrighi ter equiparado o caso de Morrinhos ao de fetos anencéfalos, ainda que o julgamento no STF que liberou o aborto nesses casos tenha ocorrido em 2012 – sete anos depois do episódio envolvendo o habeas corpus. A indenização definida por Andrighi foi de R$ 60 mil, mas o valor que vem sendo divulgado é de R$ 398 mil, o que é muito superior aos montantes que a Justiça costuma definir em ações por dano moral, e não pode ser explicado por mera correção do valor definido em 2016. Mas o principal fator que faz desta decisão aquilo que os juristas chamam de “teratológica” – ou seja, monstruosa – é o menosprezo por um instrumento essencial não só à administração da justiça, mas à tutela da pessoa contra os excessos estatais ou à iniquidade da lei: o habeas corpus.

O habeas corpus busca resguardar o direito básico do cidadão à vida e à liberdade quando elas se encontram ameaçadas e foi codificado pela primeira vez na Magna Carta britânica de 1215. Hoje, está presente em diversos tratados internacionais de direitos humanos. No Brasil, é garantido pela Constituição em seu artigo 5.º, LXVIII, e considerado cláusula pétrea. Sua importância é tanta que o habeas corpus dispensa formalidades jurídicas e até mesmo a participação de um advogado – pode ser simplesmente rabiscado à mão em um pedaço de papel por qualquer cidadão, e o STJ já chegou a receber um pedido redigido por um detento em um lençol.

Apenas regimes autoritários buscam abolir ou restringir o direito ao habeas corpus – no Brasil, essa garantia foi suspensa pela última vez durante a vigência do AI-5, na ditadura militar, para casos de “crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. Só isso mostra a gravidade da decisão tomada pelo STJ em 2016, pois, na prática, ela transformou em delito o exercício de um direito básico, que por sua vez buscava garantir um outro direito de um terceiro incapaz de falar por si próprio. Mas há uma outra comparação que também pode nos ajudar a ver o absurdo cometido pelo STJ e avalizado pelo Supremo.

O ordenamento jurídico brasileiro prevê, é verdade, a chamada “litigância de má-fé” e reconhece o abuso no direito de propor ações. Mas a maneira de proceder do padre Lodi não pode ser encaixada nesse conceito, que se aplica em situações muito especiais. Afinal, até mesmo criminosos presos em flagrante, ou condenados em mais de uma instância com fartura de provas, têm direito a uma série de embargos e recursos, que também incluem o habeas corpus, por piores que tenham sido os crimes cometidos. Mesmo quando tais recursos são negados, não passa pela cabeça de ninguém que tais bandidos devam receber alguma punição adicional pelo simples fato de seguir usando as ferramentas jurídicas que a lei lhes garante. Como, então, é possível condenar alguém que impetra habeas corpus em favor de um inocente indefeso, e ainda por cima tem seu pedido julgado procedente pela Justiça? Aliás, nem mesmo o desembargador que concedeu o habeas corpus poderia ser punido, pois neste caso estaria estabelecido um “crime de hermenêutica” inexistente na lei brasileira.

Não se trata, é claro, de menosprezar o sofrimento de um casal que passa pelo drama de gestar uma criança com uma anomalia que lhe inviabilizará a vida fora do útero. Especialmente a mãe necessita de amparo psicológico que alivie sua dor, e é ilusório acreditar que ser partícipe na morte do próprio filho proporcionará esse alívio. Mesmo essas crianças têm o direito de nascer e morrer de forma digna – e todos os demais têm o direito de pleitear judicialmente o respeito a essa garantia.

O abortismo comemorou a decisão contra o padre Lodi como uma derrota do movimento pró-vida, mas o desprezo pelo instituto do habeas corpus patrocinado pelos tribunais superiores é muito mais grave que isso, pois criminalizou nada menos que o exercício de um direito básico, por meio de um pedido considerado procedente pela Justiça, algo incompatível com um Estado Democrático de Direito. Relegado a um plano de pouca efetividade, a inovação institucional dada ao habeas corpus nada mais é que o preço do desprezo pelo direito à vida – ou, como soa mais poeticamente na língua de Cervantes, o precio del desprecio.

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