A Suprema Corte norte-americana está prestes a tomar uma decisão histórica em defesa da vida, caso os rumores que tomaram conta dos Estados Unidos desde essa segunda-feira se confirmem. O site Politico teve acesso ao rascunho de uma opinião majoritária – ou seja, adotada pela maioria dos justices, como são chamados os membros da corte – segundo a qual Roe v. Wade, o julgamento de 1973 que legalizou o aborto em todo o país, deve ser derrubado. O próprio vazamento é atitude sem precedentes na história recente da Suprema Corte e mostra que os defensores deste “direito de matar” estão dispostos a fazer o que for necessário para colocar pressão na instância máxima do Judiciário norte-americano enquanto a decisão não for publicada – até lá, os justices podem mudar seus votos.
O que está em jogo neste caso, chamado Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, é a constitucionalidade de uma lei estadual aprovada no Mississippi em 2018, e que proíbe totalmente o aborto a partir da 15.º semana de gestação. Isso violaria as decisões da Suprema Corte: Roe v. Wade proibiu todos os estados de criminalizar o aborto no primeiro trimestre de gestação, independentemente do motivo; no segundo trimestre, ele poderia ser vetado apenas em alguns casos tendo em vista a proteção da saúde da mãe; apenas no terceiro trimestre, quando o feto já é considerado “viável” – ou seja, capaz de sobreviver fora do útero –, os estados poderiam proibir o aborto, mas ainda teriam de permiti-lo em caso de risco de vida para a mãe. Em 1992, uma outra decisão da Suprema Corte, chamada Planned Parenthood v. Casey, manteve o núcleo de Roe v. Wade, em parte usando o argumento do respeito à coisa julgada, mas sem as regras por trimestre, unificando-as sob o critério da viabilidade: antes dela, nenhum estado teria o direito constitucional de proibir o aborto porque isso imporia um “peso indevido” à mulher que desejasse abortar. Recentemente, estados com governadores e Legislativos pró-vida começaram a aprovar leis que restringem o acesso ao aborto antes do limiar da viabilidade, contando que tais leis seriam questionadas no Judiciário e esperando que algum caso acabasse chegando à Suprema Corte, que assim teria a chance de reverter Roe v. Wade e Planned Parenthood v. Casey.
De acordo com Samuel Alito, ao impedir estados de proibir o aborto, em 1973, a Suprema Corte americana usurpou competências de outros poderes e o fez usando argumentos bastante frágeis
O responsável pelo texto é o justice Samuel Alito, e ele tem o endosso de outros quatro membros da corte considerados conservadores – Amy Coney Barrett, Brett Kavanaugh, Neil Gorsuch e Clarence Thomas. A posição do presidente da Suprema Corte, John Roberts, é desconhecida; os outros três justices ditos “progressistas” (Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan) estão trabalhando em um voto com argumentos contrários, como é a praxe do tribunal. Em seu texto de quase 100 páginas, Alito afirma: “nós [os justices que formaram a maioria no caso] defendemos que Roe v. Wade deve ser derrubada”, e afirma haver razões muito sérias para que o respeito à coisa julgada dê lugar a uma reversão de jurisprudência, pois “Roe estava completamente errada desde o início”. Como ele explica mais adiante, por mais importante que seja a manutenção da jurisprudência para a garantia da segurança jurídica (uma lição que nosso STF bem poderia aprender), ela não é uma regra absoluta, pois não basta apenas decidir: é preciso decidir bem. “Quando uma de nossas decisões constitucionais está errada, o país é obrigado a conviver com uma decisão ruim até que nós consertemos nosso próprio erro”, escreve Alito. Para ele, “Roe estava em choque com a Constituição desde o dia em que foi decidida; Casey perpetuou seus erros, e esses erros não diziam respeito a alguma filigrana da lei sem importância para o povo norte-americano”. Em outras palavras: era absolutamente necessário derrubar as duas decisões.
O primeiro motivo que justifica a reversão de Roe v. Wade é o que Alito chamou de “abuso da autoridade judicial”. Em resumo, o magistrado afirma que, ao interferir de forma tão severa nas legislações estaduais, a Suprema Corte cometera o que hoje conhecemos como “ativismo judicial”, quando o Judiciário toma para si atribuições que pertencem a outros poderes – no caso, os Legislativos estaduais, que nos EUA têm o poder de definir legislação penal. “É hora de nos atermos à Constituição e devolver o tema do aborto aos representantes eleitos pelo povo”, escreve Alito, citando o voto dissidente do justice Antonin Scalia em Casey: “A permissão para o aborto e suas limitações devem ser resolvidas da mesma forma que a maioria das questões importantes em nossa democracia: com os cidadãos tentando convencer uns aos outros e, então, votando”.
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Para piorar, explica Alito, a Suprema Corte baseou seu ativismo judicial em premissas extremamente frágeis, pois a Constituição não garante um direito ao aborto, e nem mesmo o alegado direito à privacidade, invocado em Roe v. Wade, está explicitamente mencionado – os defensores da decisão alegam que ele seria uma consequência implícita de algumas emendas à Constituição. Alito mergulha na história do Direito norte-americano (e até da common law britânica) para mostrar que nem o texto constitucional original, nem suas emendas, podem servir de base para um pretenso “direito ao aborto”, cuja defesa é um fenômeno totalmente novo, datando de apenas algumas décadas atrás. “A conclusão inevitável é a de que o direito ao aborto não está profundamente enraizado na história e nas tradições da nação”, escreve o justice, acrescentando que o debate sobre o aborto ainda inclui um fator único: “o que diferencia drasticamente o aborto de outros direitos reconhecidos nos casos em que Roe e Casey se baseiam é algo que ambas as decisões reconheciam: que o aborto destrói o que essas decisões chamavam de ‘vida potencial’ e o que a lei, no caso em tela, considera a vida de um ‘ser humano não nascido’ (...). Nenhuma das outras decisões mencionadas em Roe e Casey envolvem a questão moral crítica posta pelo aborto”.
Alito não enfrentou questões como o momento em que se inicia a vida humana e as consequências lógicas e legais que viriam de tal reconhecimento, como a necessidade de proteção do nascituro desde o instante da concepção. Além disso, caso o texto vazado acabe publicado, tornando-se a decisão oficial, isso não significa que o aborto estará proibido nos Estados Unidos – ele apenas devolverá aos estados o poder de regular a prática da maneira que acharem melhor, e sempre pela via legislativa; continuará havendo locais onde o assassinato de seres humanos indefesos e inocentes será feito com o aval do Estado, e o presidente Joe Biden já emitiu nota pedindo voto a candidatos defensores do direito ao aborto nas midterms de novembro, deixando claro, até mesmo para os mais iludidos, de que lado está. Mesmo assim, trata-se de um texto memorável e histórico, por sua decidida rejeição ao ativismo judicial, por alertar sobre os riscos de decisões judiciais tomadas com bases frágeis, e por sua defesa da segurança jurídica ao mesmo tempo em que afirma que os erros da Suprema Corte, quando constatados, podem e devem ser revertidos. Que os justices não se deixem abalar pela pressão do abortismo e façam de Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization um marco na luta pela vida em todo o mundo.
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