Para onde quer que se olhe, há uma categoria de líderes globais que parece ter desaparecido nestes últimos anos: vozes firmes em defesa da democracia e das liberdades individuais, mas que ao mesmo tempo saibam defender de forma serena um conjunto de valores caros à sua população. Um rápido passar de olhos pelo mundo parece fazer crer que só existem duas possibilidades: curvar-se a uma burocracia multilateral que colocou em segundo plano as missões de garantia da paz internacional e estímulo à cooperação entre nações para impor agendas nocivas de engenharia social, como um pretenso “direito” ao aborto ou questões de gênero, ou defender-se dessa burocracia recorrendo à xenofobia e atropelando liberdades importantes. O meio termo, o equilíbrio entre essas duas posições, é moeda rara, praticamente inexistente nos dias de hoje – no entanto, é mais necessário que nunca.
Dos Estados Unidos de Donald Trump já se tem falado muito, especialmente seu discurso de rejeição à imigração, com a ênfase na construção do muro na fronteira com o México – a ponto de Trump ter prometido manter a atual paralisia do governo, o chamado shutdown, enquanto os democratas não aprovarem o financiamento da obra –, e dos costumeiros ataques à imprensa. Mas ventos preocupantes também sopram da Europa Central. Na Hungria, onde Viktor Orban governa como primeiro-ministro desde 2010, a legislação eleitoral foi alterada para favorecer os atuais incumbentes, uma nova Constituição tentou colocar nas mãos do governo a nomeação de juízes, restrições à imprensa independente têm sido cada vez maiores, a principal universidade do país está na mira de Orban e o governo entrou em rota de colisão com a União Europeia na questão migratória, recusando-se a receber refugiados. Em junho de 2018, o parlamento aprovou uma lei que prevê penas de prisão para os húngaros que ajudarem imigrantes, por exemplo aconselhando refugiados sobre como conseguir asilo.
Os métodos de Orban fizeram sucesso mais ao norte, na Polônia, governada pelo partido Lei e Justiça, do presidente Andrzej Duda e do premiê Mateusz Morawiecki. O país também recusou o sistema de cotas para refugiados estabelecido pela União Europeia, e tem criado restrições à liberdade de expressão – no país, afirmar que houve poloneses que colaboraram com o Holocausto nazista é crime. O ataque mais recente à democracia ocorreu em 2018, com um expurgo na Suprema Corte do país por meio de uma lei que alterava a idade para a aposentadoria obrigatória dos magistrados e afetava um terço dos integrantes do tribunal, substituídos por outros juízes alinhados com o governo. A mudança – que gerou protestos endossados até mesmo pelo veterano líder Lech Walesa – só foi revertida após ordem do Tribunal Europeu de Justiça.
Alegar que políticas xenofóbicas ou antidemocráticas correspondem à defesa do ethos cristão é uma falsificação da realidade
E tudo isso tem sido promovido em nome de uma suposta “defesa dos valores judaico-cristãos” que são a base da civilização ocidental. Esse tipo de discurso é explícito na Hungria e na Polônia (apesar de a sociedade húngara ser relativamente secularizada, ao contrário da polonesa, profundamente católica), e implícito nos Estados Unidos, onde Trump conta com grande apoio do eleitorado evangélico. O recurso à “defesa das raízes cristãs” para justificar a xenofobia – ignorando totalmente que uma das primeiras ordens dadas por Deus aos israelitas no livro do Êxodo seja justamente a proteção ao estrangeiro, junto com a viúva e o órfão – e ações antidemocráticas, no entanto, não para em pé, como já foi amplamente demonstrado na obra de Jacques Maritain, que dedicou grande parte de sua vida à defesa da democracia e dos direitos humanos, sempre dentro da matriz cristã.
O pensamento do católico Maritain ajudou a moldar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que acabou de completar 70 anos. Como lembrou Francisco Razzo em recente coluna na Gazeta do Povo, a própria noção da “dignidade inerente a todos os membros da família humana” presente na Declaração é resultado da influência direta de Maritain. Poucos anos antes, em 1943, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, Maritain havia escrito Cristianismo e Democracia, um livro que as lideranças húngaras e polonesas certamente não leram.
Para o filósofo, a democracia que uma autêntica visão de inspiração cristã exige não é amorfa, como se pudesse dispensar valores básicos como o próprio respeito à dignidade da vida humana. No entanto, essa democracia é pluralista no campo político e das ideias, protege as liberdades individuais, respeita os grupos minoritários. A democracia, escreve, é “o regime em que o povo goza de sua maioridade social e política e os exerce para se dirigir a si mesmo, ou, ainda, ela [a democracia] é o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essa “maioridade social e política” de que fala Maritain é incompatível com um sistema em que o governo busca tutelar o pensamento por meio do controle da imprensa e do ensino, ou tenta sabotar o Estado Democrático de Direito por meio da supressão da independência entre poderes.
Leia também: O Brasil fora do Pacto para a Migração (editorial de 13 de janeiro de 2019)
Leia também: A crise migratória nas fronteiras da Hungria (artigo de Norbert Konkoly, publicado em 2 de outubro de 2015)
Alegar, assim, que políticas xenofóbicas ou antidemocráticas correspondem à defesa do ethos cristão, como fazem os governantes húngaros ou poloneses, é uma falsificação da realidade. Um dos grandes legados do Ocidente para o mundo é justamente a noção de uma democracia plural, tolerante, que respeita o indivíduo, seus direitos básicos, como o de livre manifestação, e se compadece daqueles que passam por situações desesperadoras. O próprio sistema multilateral contou, em sua construção, com a participação de políticos de fé cristã profunda. As estruturas iniciais das entidades que, depois, se tornariam a União Europeia, por exemplo, vieram da mente de três católicos convictos: o italiano Alcide de Gasperi, o alemão Konrad Adenauer e o luxemburguês radicado na França Robert Schuman, que levaram o sistema europeu a adotar princípios como o da subsidiariedade, um pilar da Doutrina Social da Igreja Católica. Lamentável, portanto, que Viktor Orban e os poloneses do Lei e Justiça estejam transformando uma boa intenção em más práticas, dando um verniz nacionalista-religioso a medidas que contradizem a tradição que eles pretendem defender.
A resposta a um movimento que se aproveita dos fóruns multilaterais para impor engenharias sociais que negam as verdades básicas sobre o ser humano não pode ser o isolamento antidemocrático, que vira as costas ao mundo e reprime as opiniões contrárias internamente em nome de uma falsa defesa de valores. A vida, a dignidade humana, a instituição familiar precisam, sim, ser protegidas; é necessário resistir a tentativas de impor valores alheios ao ethos de uma população, naquilo que já se convencionou chamar de “colonialismo ideológico”. Mas sempre dentro de um espírito que se abre para o mundo, em vez de se isolar dele. Tal firmeza não é incompatível, por exemplo, com o acolhimento a refugiados, quando se deixa claro que há uma obrigação, por parte dos recém-chegados, de seguir as leis locais e respeitar a cultura dos anfitriões.
Este equilíbrio ainda não foi encontrado. O mundo procura autênticos democratas, conscientes da necessidade de cooperação internacional, e que também sejam firmes na proteção dos valores que ajudaram a construir a civilização. Nesta era em que os extremos parecem dar as cartas no resto do mundo, quem preencher este vácuo tem tudo para fazer história.
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