A pandemia da Covid-19 tem tornado a atividade parlamentar brasileira ainda menos sujeita ao escrutínio público e isso pode ser um problema quando se trata de votações essenciais. Brasília é uma cidade distante, mobilizações populares nas suas ruas demandam muitos recursos e o acompanhamento das votações normalmente já é muito difícil. Agora, os brasileiros praticamente só dispõem da imprensa e das redes sociais para se fazer ouvir e isso pode gerar uma distorção grande no cálculo de legisladores e políticos. Espera-se que esse não seja o caso a respeito da votação da emenda à Constituição (PEC) que estabelece a prisão de condenados após julgamento em segunda instância. Porém, notícias preocupantes começam a circular sobre tentativas de distorcer a proposta e isso precisa ser acompanhado de perto.
O tema foi muito debatido pelo Congresso no final de 2019 e mesmo início de 2020, mas acabou deixado um tanto de lado com o início da pandemia. Contudo, deputados ouvidos em reportagem recente pela Gazeta do Povo acreditam que a votação deva acontecer ainda em agosto. É importante lembrar que o cumprimento da prisão após condenação em segunda instância era regra no ordenamento jurídico brasileiro até 2009. Ela foi considerada inconstitucional a partir desta data até 2016, quando foi “reabilitada” pelo STF, que novamente voltou a julgá-la inconstitucional a partir de outubro de 2019.
De fato, foi só a partir do julgamento do Habeas Corpus (HC) 84.078, ocorrido em 2009, que o STF decidiu pela inconstitucionalidade do instituto. O HC em questão dizia respeito ao pedido da defesa de um acusado de tentativa de homicídio duplamente qualificado, que após um longo debate foi aceito pela corte. A decisão da corte colocou o Brasil fora da curva do Direito Penal da maior parte do mundo, tendo em vista que, na ONU, 193 dos 194 países filiados tem prisão em 1.ª ou 2.ª instância. Em 2011, a Lei 12.403 alterou o art. 283 do Código de Processo Penal, tendo em vista a necessidade de adequá-lo ao entendimento da corte. A partir de então, a prisão para fins de cumprimento de pena somente após o trânsito em julgado passou a ser incorporada no Direito brasileiro. O debate, porém, estava muito longe de se encerrar. E ganhou bem mais força a partir de 2014, com o início da operação Lava Jato.
Em 29 de junho de 2015, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) apresentou ao Senado um anteprojeto de lei que determinaria que condenados em segunda instância ou pelo tribunal do júri a penas privativas de liberdade por certos crimes passassem a cumpri-las de imediato. O então juiz Sergio Moro se colocou a favor da medida. No ano seguinte, STF voltou a admitir a prisão em segunda instância no julgamento do Habeas Corpus 126.292, em 17 de fevereiro de 2016, por 7 votos a 4. O HC em questão dizia respeito a um condenado por participação de um roubo de mais de 2.000 reais. A decisão foi recepcionada com entusiasmo pelos defensores da operação Lava Jato, que viam no instituto uma garantia importante contra o sentimento de impunidade.
Afinal, muitos condenados por crimes de corrupção poderiam postergar ou mesmo se negar a fazer delações premiadas se vissem a possibilidade de escapar por anos da prisão, adiando os julgamentos para as calendas gregas com uma montanha de recursos nos tribunais superiores, enquanto apostavam na prescrição como forma de escapar da Justiça. Não à toa, importantes delações foram assinadas no âmbito da operação depois da decisão do STF, sendo a mais icônica a de Marcelo Odebrecht, ex-presidente de uma das maiores construtoras do país, diretamente envolvida com os escândalos de corrupção da Petrobrás.
Infelizmente, a partir da prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva em 2018, houve um aumento da pressão para que o STF revisse o entendimento, o que terminou acontecendo em outubro de 2019. No julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54, o tribunal voltou a proibir a prisão em segunda instância por 6 a 5, numa votação que foi recepcionada com decepção por grande parte da sociedade brasileira. O fato acabou materializando mais uma derrota sofrida pela Lava Jato em 2019 imposta pela corte. De lá para cá, Lula e outros condenados por corrupção foram soltos e a delação premiada parece não ter sido mais tão cogitada pelos criminosos como no passado recente.
As investigações caminharam mais devagar, mas não o debate na sociedade. O próprio Toffoli, em seu voto, deixou subentendido que o assunto deveria ser objeto de decisão do Legislativo. Agora, a PEC apresentada pelo deputado Alex Manente propõe alteração, na Constituição, do momento do chamado “trânsito em julgado”, o que permitiria a prisão dos condenados após o julgamento em segunda instância. Atualmente, considera-se que uma ação transitou em julgado quando não cabem mais recursos, entre os quais o recurso extraordinário junto ao STF ou o recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo a proposta, o trânsito em julgado ocorreria após a decisão dos juízes em segunda instância. Isso eliminaria na prática a possibilidade de mais recursos depois desse nível, ao menos no mesmo processo, fazendo com que o acusado fosse considerado, para todos os efeitos, culpado, e, portanto, pudesse ser preso. Assim, os recursos às instâncias superiores seriam considerados um novo processo e não um recurso da mesma ação.
A solução proposta pela PEC não é isenta de controvérsias teóricas importantes e outros caminhos têm sido também propostos. Mas tem méritos incontestes e seria uma resposta engenhosa a uma interpretação literal da Constituição que não é compatível com os princípios da justiça e da segurança jurídica. Seus efeitos ultrapassam o campo penal e impõem mais celeridade a outras esferas da justiça, como a trabalhista. Tem por objetivo atingir em cheio a protelação e os intermináveis recursos que já se tornaram triste característica do Direito brasileiro. Infelizmente, apesar dos méritos evidentes, a PEC vem esbarrando com movimentações, não teóricas nem desinteressadas, para diminuir a efetividade da proposta. Um grupo de parlamentares tem procurado fazer valer a ideia de modificar a proposta para que seus efeitos só passassem a valer para delitos cometidos após sua promulgação. As opiniões sobre quais grupos estariam por trás dessas articulações ainda se dividem na Câmara. Enquanto uns acusam investigados da Lava Jato e apoiadores do ex-presidente Lula, outros levantam a hipótese da própria ingerência do governo, dado o andamento das investigações envolvendo o senador Flavio Bolsonaro.
Seja qual for a força envolvida no boicote, é necessário a devida atenção e mobilização da sociedade brasileira em torno de sua aprovação. Em termos de eficácia da pena, a celeridade da prisão e a certeza da punição são elementos essenciais para o pleno funcionamento do sistema de justiça. Eles conferem paz e conforto às vítimas, diminuem o risco da continuidade delitiva de criminosos que já estão sendo processados e produzem o chamado efeito dissuasório, fazendo com que ofensores em potencial desistam de comportamentos delitivos. Cada uma dessas funções é essencial para o pleno funcionamento da justiça na democracia. Esperamos que os parlamentares entendam a importância dessa PEC para sua consolidação.
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