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A enfermeira Monica Calazans foi a primeira  brasileira a receber a vacina Coronavac.
A enfermeira Monica Calazans foi a primeira brasileira a receber a vacina Coronavac.| Foto: AFP

Não há segredo: para que um país consiga erradicar uma doença, o meio mais rápido e eficiente é a vacinação em massa, para que se garanta uma cobertura suficiente a ponto de bloquear a circulação do agente causador da doença, seja vírus ou bactéria – é este bloqueio que também protege aquelas pessoas que não podem (normalmente, por contraindicação médica) ou não desejam (por exemplo, por restrições de cunho moral) se vacinar. Neste domingo, o Brasil entrou na lista dos países que começaram a vacinar seus cidadãos contra a Covid-19. Iniciamos atrasados em comparação com diversos outros países, mas temos a capacidade de recuperar terreno se todos os atores envolvidos passarem a trabalhar de olho na saúde dos brasileiros, e não em dividendos político-eleitorais.

Garantir uma ampla cobertura vacinal de forma rápida exige a remoção de entraves burocráticos, por exemplo para a importação de insumos e de doses já prontas para uso. Não se trata de apressar indevidamente a aprovação de vacinas, nem de “ser menos cientistas”, como chegou a afirmar o secretário de Saúde de São Paulo, irritado com o que entendeu ser uma demora excessiva da Anvisa para aprovar a Coronavac. Trata-se de tirar do caminho exigências desnecessárias para que o país possa ter o quanto antes as doses necessárias para imunizar os brasileiros. Isso inclui, por exemplo, criar as condições necessárias para que tanto o Instituto Butantan quanto a Fiocruz, parceiras brasileiras na Coronavac e na vacina da Universidade de Oxford, respectivamente, tenham à disposição o material necessário para fabricar as vacinas no ritmo adequado, sem atrasos provocados pela burocracia.

Brigar pelo controle da narrativa vem sendo, para muitos políticos, mais importante que brigar pela saúde da população

Também é absolutamente necessário que o poder público reavalie suas objeções iniciais à participação da iniciativa privada no esforço de vacinação. O governo já deixou claro que vedará a possibilidade de empresas adquirirem vacinas por conta própria para imunizar seus funcionários, e ainda afirmou que, caso clínicas privadas de vacinação adquiram vacinas, elas também teriam de obedecer ao mesmo calendário estabelecido para a rede pública.

Ora, isso é extremamente contraproducente. O governo tem uma estimativa de quantas doses precisará fabricar ou comprar; garantido esse suprimento, não deveria haver restrição nenhuma à participação privada para acelerar o processo de vacinação. Como já lembramos neste espaço, a julgar pelo calendário estatal, boa parte dos brasileiros na força de trabalho ficará para o fim da fila, por não estar em nenhum grupo prioritário. Se o setor privado puder suprir essa demanda enquanto o programa governamental protege os grupos de risco, dará uma colaboração decisiva para o retorno à normalidade na atividade econômica – contemplando, inclusive, uma das grandes preocupações do presidente Jair Bolsonaro.

A pretensão de impedir ou restringir exageradamente a participação privada na vacinação contra a Covid-19 se baseia em convicções equivocadas sobre a relação entre os sistemas público e privado, que é de complementariedade, não de competição. Enquanto ainda há poucas vacinas aprovadas, e enquanto elas ainda não são produzidas em grande escala, pode fazer sentido o argumento de que uma dose que for para a rede privada seria uma dose que fará falta na rede pública. Mas esta situação não durará muito, com o aumento na capacidade de produção dos laboratórios e na variedade de vacinas aprovadas por importantes autoridades sanitárias mundo afora. Mais cedo ou mais tarde a oferta superará a demanda, e é por isso que fazemos essa única ressalva, a de que a condição para a participação privada seria a garantia de que a rede pública já tem a quantidade de vacinas que julga necessária.

No caso brasileiro, a ideia de concentrar, em vez de pulverizar, a responsabilidade pela vacinação ainda tem um componente bastante deletério: a autopromoção político-eleitoral, em todos os níveis e esferas de governo. Brigar pelo controle da narrativa vem sendo, para muitos, mais importante que brigar pela saúde da população. Esse vale-tudo já levou a todo tipo de episódio, como o recorrente desprezo pela vacina patrocinada pelo adversário político; o corriqueiro estardalhaço com a aplicação das primeiras vacinas, em nível muito maior que os de início da vacinação em outros países; a divulgação fatiada de dados importantes sobre as vacinas (como no caso da eficácia da Coronavac); indiretas ou provocações explícitas entre autoridades; e ministros do STF se comportando como chefes do ministro da Saúde. Em um ambiente de disputa aberta, cresce o espaço para contradições como a do ministro Eduardo Pazuello, que falou em não fazer “jogada de marketing com a primeira dose”, mas chegou a adesivar o avião que buscaria doses da vacina de Oxford na Índia e nem decolou porque o governo indiano não havia liberado a importação – um fiasco que ainda exige maiores explicações.

Eliminar burocracias desnecessárias, ampliar a capacidade de produção local, acolher a iniciativa privada como parceira valiosa e superar de vez a obsessão medíocre de alguns políticos por aparecer como “donos” da vacina são os quatro passos necessários para que o Brasil chegue ao nível de imunização coletiva necessário para que o coronavírus e toda a tragédia humana e econômica causada por ele sejam páginas viradas. E não há desculpa para retardar esse processo.

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