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| Foto: John Moore/AFP

“Dai-me os seus fatigados, os seus pobres / as suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade / O miserável refugo das suas costas apinhadas. / Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades, / Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado”, diz o soneto de Emma Lazarus gravado em uma placa na Estátua da Liberdade, uma das primeiras visões que muitos imigrantes do fim do século 19 tinham ao chegar a Nova York, fugindo de calamidades em seus países, ou apenas porque viam naquela nação jovem a oportunidade de prosperar. A imigração construiu a grandeza dos Estados Unidos – como também a de muitas outras nações, como o Brasil. Mas, para as famílias que têm cruzado ilegalmente a fronteira norte-americana, os versos já não dizem nada: a América de Donald Trump tem lhes reservado um tratamento especialmente cruel.

A partir de abril de 2018, as autoridades norte-americanas passaram a processar criminalmente todos os adultos capturados ao tentar cruzar clandestinamente a fronteira entre Estados Unidos e México, e também os que, após fazerem a travessia sem serem pegas, apresentavam-se voluntariamente à polícia ou à Justiça pedindo asilo nos EUA. A entrada ilegal no país é considerada crime, ainda que de menor potencial ofensivo, e os adultos são mandados para centros de detenção de imigrantes enquanto aguardam a deportação. Se essas pessoas fazem a travessia com filhos, eles lhes são tirados e mandados para outras instalações, com base em uma decisão judicial de 1997 que proíbe que crianças fiquem alojadas em prisões por mais de 20 dias, mesmo que tenham a companhia dos pais. Desde o início da política de “tolerância zero”, esse tem sido o destino de cerca de 2,3 mil crianças, cujo drama, documentado em fotos e vídeos, rodou o mundo e provocou uma justificada onda de críticas a Trump.

Trump escolheu uma forma desumana para lidar com o desafio da imigração ilegal

O secretário de Justiça, Jeff Sessions, chegou ao absurdo de justificar a medida citando um trecho da Bíblia em que São Paulo recomenda a obediência às autoridades. Certamente ele não se lembrou de outro trecho, bem mais antigo, em que o próprio Deus manda aos israelitas que sejam compassivos com os estrangeiros. E é justamente esse o centro da questão. Não há compaixão alguma, não há respeito algum à dignidade humana, não há decência alguma em separar pais e crianças dessa forma.

E não estamos falando, aqui, de indivíduos que cometem crimes, ameaçando, agredindo, roubando ou violando, e sabem que, se capturados e condenados, ficarão privados do convívio com os seus; estamos falando de famílias que, muitas vezes, estão fugindo de uma situação de caos em seus países. Se nos chocamos com a violência urbana brasileira, fato é que algumas nações da América Central estão em situação ainda pior. Os Estados Unidos, para essas pessoas, não representam a perspectiva de uma “vida melhor”: são a única possibilidade de se manterem vivos, elas e suas famílias. Não seria nada exagerado tratá-las como refugiados. E, ainda que essas famílias tenham optado pela travessia ilegal, em desacordo com os trâmites que todo país tem o direito de instituir, o tratamento que a administração Trump resolveu lhes dar é absurdamente desproporcional à “gravidade” da “ofensa” que cometem.

Leia também: A Europa dos refugiados (artigo de Jorge Fontoura, publicado em 17 de agosto de 2017)

Leia também: A humanidade são os outros (editorial de 6 de setembro de 2015)

Para dar um primeiro passo no sentido de resolver a crise que ele próprio criou, Trump assinou na quarta-feira uma ordem executiva para que as agências de imigração do país parem de separar crianças de seus pais nos casos de famílias que entram ilegalmente nos Estados Unidos. Até a véspera da assinatura da ordem executiva, Trump alegava que a legislação e a jurisprudência só lhe davam duas opções, a “tolerância zero” ou uma política de fronteiras totalmente abertas em que qualquer um poderia entrar. A própria decisão de quarta-feira mostra que essa era uma falsa dicotomia: dentro do marco legal estabelecido já há alguns anos, antes que Trump assumisse, há uma margem em que o Executivo pode se mover, tanto que outros presidentes, inclusive republicanos, lidaram com a questão de maneiras diferentes. Trump escolheu uma forma desumana, e até a primeira-dama, Melania Trump, afirmou, por meio de uma porta-voz, que os Estados Unidos deveriam ser um país que “segue as leis”, mas que “governa com o coração”.

Apesar disso, não se pode negar que a imigração ilegal representa um problema e um desafio, não apenas para os Estados Unidos, mas para qualquer nação mais rica ou próspera que seus vizinhos. O mundo mudou bastante desde a época em que a Estátua da Liberdade foi colocada perto da Ellis Island, onde os imigrantes de outrora punham os pés nos EUA pela primeira vez. Um país tem o direito de estabelecer requisitos para os estrangeiros que nela pretendem viver, e recusar quem não se encaixe nessas exigências ou prefira ignorá-las por meio da entrada ilegal. Mas não podem, de forma alguma, violar a dignidade daqueles que cruzam fronteiras, ainda que clandestinamente. Análises mais céleres para identificar quem realmente merece o status de asilado ou refugiado, trâmites de deportação mais acelerados (em alguns casos, com a devolução imediata à pátria de origem) e instalações dignas para quem aguarda a definição sobre seu destino no novo país são alternativas que permitem seguir a lei sem recorrer a meios que traumatizam os mais inocentes e vulneráveis, já submetidos aos riscos da travessia ilegal.

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