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A recém-terminada novela Em família, de Manoel Carlos, discutiu a violência entre parentes. Dois núcleos se ocuparam disso – a da jovem estuprada que engravida, tem uma filha e encerra a vida afetiva, com dificuldade de lidar com o trauma; e o da mulher madura, entediada com o casamento moderno, que se envolve com homem viúvo, e truculento, de modo a ficar com a filha dele. A que preço?, pergunta a trama.

O debate provocado pelo folhetim se deu sem sensacionalismo. Só cabe lamentar que os delitos e crimes em família não tenham se tornado um dos bons debates da estação, dentre os muitos já provocados pelas telenovelas. O assunto, afinal, urge. No senso comum, a imprensa especializada e os órgãos de segurança pública sabem que os crimes cometidos entre pais, filhos, irmãos e demais parentes são expressivos. Mas, como é parte de nossa tragédia, tendemos a achar que esse é um dado menos importante, tão superlativas são as informações sobre homicídios gerados pelo tráfico, por exemplo.

Negligenciar o número (e o que ele significa) dos homicídios cometidos dentro de casa pode ser um erro – dos mais grotescos. Levantamento dos órgãos de segurança do estado de São Paulo, divulgado mês passado, mostrou que a cada dois dias, três pessoas são mortas em brigas de família. Nos quatro primeiros meses do ano, de 1,6 mil crimes em São Paulo, 12,5% foram provocados por desacertos entre casais ou dos pais com filhos.

A briga familiar é o terceiro motivo para homicídios no estado vizinho, ficando atrás da violência bruta, ligada ao latrocínio e ao tráfico, e às execuções. Mesmo com tantas evidências de que essa conta é alta demais, esse tipo de crime parece condenado ao rodapé das análises estatísticas ou às teses dos sociólogos.

É simples explicar as razões para o lugar difícil da violência em família no campo das políticas de segurança pública. O dado está lá, sem ser filtrado. A morte entre parentes "passa" como um dado cultural num país com passado de negligência e abandono. Basta pensar que o grosso da crônica policial – campeã de audiência desde os primórdios da imprensa moderna no Brasil, já no fim do século 19 – contemplou, de forma especial, a morte entre quatro paredes. Eram lidos como romances trágicos.

Há um sem-número de "crimes da mala", assassinatos por ciúme, inveja entre irmãos, homicídio provocado por herança. Muitos desses casos habitam o imaginário nacional, sendo contados de geração em geração. Não causa espanto que alguns deles – em especial quando ocorrem na classe média – catalisem sem dó o interesse do público comum. Leia-se o assassinato de Ângela Diniz, passando pela tragédia dos Richthofen, de Eloá, dos Nardoni, o recente caso Pesseghini. Há os insolúveis, como o crime da Rua Cuba. Teria sido o Jorginho? Lista imensa o bastante para inspirar uns tantos Gil Gomes.

Além de uma certa naturalidade, os crimes em família gozam, no Brasil, de outro status pouco abonador. Impera entre nós a ideia de que a violência doméstica é assunto privado, quando não uma questão isolada. A aura de fronteira intocável tende a se reforçar, até porque tudo leva a crer que esses crimes são investigados em baias específicas – há setores especializados para a violência contra a mulher, contra os idosos, contra a criança e o adolescente. E pronto.

Essas e outras questões foram estudadas por Solisa Aldy Tavares Brito, em 2007, na dissertação de mestrado Homicídio em família: uma análise de indícios nos discursos das testemunhas nos processos judiciais. É um dos poucos estudos sobre o assunto, mas o bastante para mostrar a necessidade de contabilizar os crimes familiares, para em seguida separá-los da condicionante do tráfico de drogas, por exemplo. O saldo tende a ser surpreendente, mostrando que o que se entende como foro íntimo e esfera privada também serve de motor para a violência bruta. Logo, pode ser evitado.

É argumento recorrente, e forte, que o dado do homicídio familiar não acrescenta nada ao dado de homicídio. Para a segurança pública, crime é crime, independe de quem o tenha cometido. Outros fatores são predominantes e é neles que se deve jogar as energias. Talvez seja uma meia verdade. Os setores de planejamento sentem dificuldade em lidar com assuntos que exigem análises sociológicas e antropológicas, mas esse exercício não dói tanto quando se pensa. Ainda que difícil, é possível implantar uma política que conquista cada vez mais adeptos – a que pede mais e mais mediadores sociais de conflito. Eles podem agir sobre a comunidade e também do portão para dentro, "matando no ninho". Apesar do grotesco da expressão, pode-se, sim, chegar a esse grau de refinamento.

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