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O pacote de 2015 está completo – sistema de água, luz e transporte público em frangalhos. Com perdão ao clichê, era uma crise anunciada, em especial no que diz respeito à mobilidade. Falta transparência no modelo adotado em Curitiba e região metropolitana. Os contratos são rocambolescos, o fluxo é ruim, o preço é absurdo, os aumentos nas tarifas são obscuros, e não é de hoje. Faz lembrar o velho ditado "casa de ferreiro, espeto de pau". Mundialmente conhecida por seu sistema inovador, a capital paranaense e suas vizinhas patinam na lama. O geógrafo David Harvey, da Universidade de Nova York, alardeia que a crise de mobilidade é planetária – é verdade, e passa pelo Terminal do Pinheirinho, inclusive.

A questão é grave, pelos danos em escala gerados pela caixa-preta do transporte público. Em duas matérias publicadas dias atrás pela Gazeta do Povo, o repórter Raphael Marchiori mostrou o saldo de seu périplo por 13 linhas que ligam Curitiba às cidades próximas. Andou em ônibus hiperlotados, que não passam no horário e estacionam em terminais entregues aos cachorros, aos ambulantes e aos pichadores. Em miúdos, o serviço não é apenas ruim. É um acinte, é imoral, um elogio ao descaso. Tudo isso ocorre no momento em que o mundo civilizado discute enfrentamentos metropolitanos e as interações sociais entre classes diferentes, via transporte. Esse discurso não é um capricho de urbanista – é a única saída.

Vale lembrar os estudos do grupo Observatório das Metrópoles (que reúne pesquisadores de urbanismo de todo o Brasil) e a amostragem que faz da relação entre transporte e desenvolvimento. De forma mais chã, o que o grupo diz é que o adolescente que mora na periferia e não pode desfrutar dos equipamentos do município maior, que está a seu lado, não vai se desenvolver tanto quanto pode. Que o operário que passa mais de duas horas de seu dia num coletivo não vai frequentar as aulas de Educação de Jovens e Adultos à noite, porque é impossível suportar tamanha jornada. Por aí vai o estrago, o que agrava o sentido desse bambolê criado em torno das tarifas, um empurra-empurra que lesa direitos fundamentais. Farpas partidárias, vaidades eleitoreiras e interesses empresariais não podem se sobrepor à coletividade.

É evidente que o sistema de transporte, tal como está, reforça a exclusão da população de baixa renda, impondo sobre ela uma carga insuportável. O tempo médio de deslocamento segue nos aproximando de São Paulo e Rio de Janeiro, antimodelos por excelência. Como mostrou a reportagem, em paralelo a todo o arranca-rabo sobre o preço das passagens, envolvendo prefeituras e governo do estado do Paraná, o pobre do passageiro não sabe muito bem dizer pelo que está pagando. As fotos para a reportagem, assinadas por Daniel Castellano, dão conta de que o inferno de Dante é logo ali.

Como mostra o economista e urbanista Juciano Martins Rodrigues, pesquisador do Observatório das Metrópoles, o gasto das famílias brasileiras com transporte público só aumenta desde a década de 1970, segundo as tabelas do IBGE. De 11,2% do orçamento doméstico nos anos 1970, passou para mais de 18% nos anos 2000, chegando a 19,6% no fim da década – quase o mesmo que se gasta para comer. Mais: estudos do Ipea, cita Rodrigues, apontam que entre as famílias de baixíssima renda os gastos com transporte público representavam 30% dos ganhos, contra 15% nas famílias mais abastadas. Esse é o ponto: o acesso igualitário é princípio da democracia. E, como o Estatuto das Cidades não é cumprido, os municípios se espraiam cada vez mais, os pobres seguem pagando a conta e demorando eternidades para chegar em casa, condenando sua vida, que ironia, ao ir e vir.

Infelizmente, a classe média – a quem as ruas servem – encontra dificuldade em enxergar o tamanho do problema e em se posicionar contra essa precarização do transporte público, pois o usa cada vez menos: em uma década, a frota de carros individuais mais do que dobrou. Prefere-se escorar nesse e naquele exemplo de um e outro que mora longe e venceu todas as barreiras, reduzindo o debate a uma questão de mérito.

Raciocínios simplistas não resolvem. É preciso ter claro o que afirmam urbanistas e pesquisadores de ponta, rápidos em indicar que não vamos longe se aceitarmos o crescimento sem desenvolvimento. As periferias ainda incham muito, mas não enriquecem – e boa parte da estagnação se deve ao sistema de transporte. A isso, nomes como Mike Davis chamam, com sabedoria, de "antiurbanismo". Termo preciso: de nada vale viver numa cidade grande e arredores se não for para ter acesso ao que é próprio do urbano, em tese, o melhor dos mundos.

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