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Avião pousando em Curitiba.
Avião pousando em Curitiba.| Foto: Maicon J. Gomes/Gazeta do Povo

Já era fim de tarde em Nova Esperança, no Noroeste do Paraná, nos idos de 1958. Na cidade de pouco mais de 20 mil habitantes, o jovem Anselmo Cancian, com seus 18 anos, aguardava o pouso do avião Douglas DC-3 da Real Transportes Aéreos naquilo que se chamava aeroporto, mas que estava mais para uma grande área aberta de terra que se estendia por 1,2 mil metros. Assim que a aeronave tocou o chão, a poeira subiu e o barulho dos motores foi se aquietando. O funcionário da companhia aérea agora teria de correr. Antes de ajudar a abrir a porta da máquina, colocava os calços nos pneus. Enquanto os passageiros desembarcavam, ele posicionava no bagageiro os pacotes com a carga que seguiria viagem. Na sequência, auxiliava no embarque dos viajantes. Em menos de 10 minutos, tinha cumprido sua missão e via o avião decolar para o próximo destino, Paranavaí, a pouco mais de 30 km dali.

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Nos momentos em que não tinha avião no aeroporto, Cancian ajudava na venda das passagens no escritório da empresa no centro de Nova Esperança. Os destinos eram vários: São Paulo, Jacarezinho, Cornélio Procópio, Londrina, Maringá e Paranavaí. Só em 1958, teve de lidar com o embarque de 1.898 pessoas e a chegada de outras 1.936 em 487 voos que tocaram a cidade.

De vez em quando a rotina era quebrada e o improviso tomava conta. “A estrutura da empresa era pequena e a gente tinha de dar um jeito. Se fosse preciso, fazia até balizamento noturno para os aviões que chegavam mais tarde. Juntava um monte de lampiões e espalhava pelo lado da pista”, lembra o hoje aposentado de 80 anos, que naquela época ainda colocava os pilotos e a aeromoça em um táxi para seguirem ao hotel para pernoitar. Sem iluminação, o voo tinha que terminar ali mesmo.

Douglas DC-3
Na Nova Esperança dos anos 1950, os aviões atraíam a atenção das pessoas que tinham livre acesso ao aeroporto.| Acervo/Glória Maria Uchôa Kawahisa

O que se passava com Cancian e Nova Esperança não era exclusividade na década de 1950. Todas as regiões do Paraná tinham o avião como uma personagem diária na rotina das cidades. O uso do transporte aéreo regular foi tão intenso nessa época que o estado chegou a contar simultaneamente com 31 municípios servidos por companhias aéreas, inclusive lugares que hoje sequer têm aeroportos, como a própria Nova Esperança, Mandaguari, Alto Paraná, Loanda, Jacarezinho ou Lupionópolis.

A malha de rotas ligava tanto as cidades paranaenses como outros estados, casos de São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Basicamente nove companhias aéreas operavam regularmente, todas já extintas e algumas delas famosas, como Varig, Vasp, Panair do Brasil ou Sadia, que depois viria a ser a Transbrasil. Juntavam-se a elas ainda Aerovias, Catarinense, Cruzeiro do Sul, Real e Savag.

Para ligar as pequenas cidades do interior, o eleito era sempre o polivalente Douglas DC-3, aeronave de fabricação norte-americana com capacidade para até 32 passageiros. Esse modelo foi fundamental para a expansão da aviação comercial não só no Paraná, mas em todo o país.

Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, havia milhares de exemplares sem uso, especialmente da Força Aérea dos Estados Unidos. Dezenas deles vieram parar no Brasil, vendidos a preços simbólicos, e convertidos para o uso comercial. A facilidade de compra e a falta de uma legislação rígida fizeram com que 25 novas companhias aéreas fossem criadas nos cinco anos seguintes ao fim do conflito, a maioria se valendo dos DC-3. Segundo dados do extinto Ministério da Aeronáutica, eram 169 aviões desse tipo em atividade em 1956, representando 80% de toda a frota nacional.

Com mais aviões e voos, o número de acidentes também aumentou. Tanto foi assim que a década de 1950 é até hoje a mais mortal de toda a história da aviação comercial brasileira em termos de número de acidentes fatais. Nesse período foram registrados 33 desastres com mortes, somando 484 vítimas. Havia também os acidentes mais leves. Fora das estatísticas está o DC-3 da Vasp em 1956 que não conseguiu parar antes do fim da pista em Mandaguari e matou o padeiro que passava com a sua carroça.

Viajar a bordo de um DC-3, no entanto, não era uma experiência das mais agradáveis. Os assentos eram desconfortáveis e o cheiro de vômito dominava o interior da aeronave. Com voos tão curtos - alguns duravam menos de dez minutos -, o avião voava muito baixo, então seguia quente e a turbulência era mais feroz. “Cada assento tinha uma bolsa com o saquinho de enjoo. Usava, fechava. Tinham uns que eram de plástico e amarravam para fechar. Depois a aeromoça recolhia os saquinhos de enjoo, colocava tudo num saco e levava para trás do avião”, lembra o piloto aposentado Marco Antonio Coelho Pullin, 76, que cansou de voar nessas aeronaves ainda criança a partir de Mandaguari.

Os aviões, aliás, eram a alegria da criançada. Bem diferente de hoje, o acesso às máquinas era praticamente livre. Não havia cercas para delimitar a área dos aeroportos. Em muitas ocasiões, as pessoas atravessavam a pista para chegar ao outro lado. Pousava um DC-3 e os curiosos se aproximavam sem cerimônia. E não era raro ter contato com os pilotos. Alguns deles desciam, conversavam e buscavam em um pomar perto uma laranja ou uma mexerica. Alguns iam ainda além. “No aeroporto de Mandaguari tinha um saguão com restaurante e um piano. Tinha um comandante que chegava, tocava por uns cinco ou dez minutos e já ia embora para decolar”, conta Pullin.

Era a mesma facilidade que encontrava o piloto Edmundo Macowski, 69, em Campo Mourão. Com os irmãos e amigos, passeavam tranquilamente pelo aeroporto da cidade. “Na época não tinha controle nenhum, entrávamos no pátio e ficávamos ali. Tinha muito movimento e sempre íamos de bicicleta até lá. Era uma época muito mais romântica”, recorda. A única coisa ruim era a poeira, que judiava de quem estava por perto, principalmente na hora em que os aviões se movimentavam. “A pista era de terra, daquela terra vermelha mesmo. Na época de seca, quando um DC-3 decolava ou pousava no aeroporto dava para enxergar a poeira lá da cidade. E olha que a pista era isolada da cidade naquela época”, diz Macowski, que se tornou piloto muito por influência do que acompanhou na infância.

Café na proa

O avião chega onde o carro não passa. Essa era a lógica do transporte no Paraná naquele período. As companhias aéreas precisavam apenas de uma pista, mesmo que improvisada, para realizar seus voos. Já o modal terrestre era bem mais complicado. Não havia estradas suficientes para ligar todas as regiões do estado e as poucas que chegavam ao interior eram de péssima qualidade, de terra, cheias de buraco e sujeitas às intempéries do tempo. Uma viagem de carro entre Curitiba e Maringá poderia levar até três dias.

Não à toa que o Norte do Paraná foi a região que mais se beneficiou da aviação comercial e a que mais tinha cidades atendidas pelos aviões. Entre 1923 e 1966 foram fundadas 96 cidades na área, todas por companhias imobiliárias, que recebiam as terras do governo estadual em troca da criação de cidades e o consequente povoamento. O que antes era um grande vazio demográfico e uma paisagem de mata nativa, transformou-se rapidamente em uma extensa rede de cidades, especialmente à Oeste de Londrina, avançando para Maringá, Paranavaí, Cianorte e Umuarama.

Os cafezais giravam a economia. Enquanto outros estados, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, reduziam a produção do café, o Paraná foi na contramão para atrair imigrantes de outras partes do país. A estratégia fez com que o Paraná se tornasse o principal produtor de café do Brasil no fim da década de 1950. Com tanto dinheiro circulando, não dava para esperar o carro chegar. Na imagem abaixo (reprodução feita do Guia Aeronáutico), um material promocional da empresa Cruzeiro do Sul mostra os horários das rotas que ligavam Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul em 1957.

“O Norte do Paraná foi um país dentro de um país. Foi um processo tão forte de colonização que até então não se tinha visto”, explica o professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e autor do livro ‘Cidades novas do café: história, morfologia e paisagem urbana’, Alessandro Filla Rosaneli. “O avião, ao contrário das outras fronteiras até então estabelecidas no Paraná e São Paulo, foi muito utilizado no Norte do Paraná para trazer compradores e moradores para as fronteiras”, prossegue.

A atividade do café exigia centros urbanos desenvolvidos. Era nas cidades onde o produto era beneficiado e ensacado antes de ser transportado. Por isso que o perfil de quem embarcava e desembarcava dos aviões DC-3 era de empresários e fazendeiros. O avião acelerava os negócios. “Os grandes compradores iam de avião. As fronteiras agrícolas são um ‘velho oeste’, com risco de assalto de todo o tipo de coisa. Sem comunicação fácil, o jeito era ir de avião”, esclarece Rosaneli.

Os habitantes das cidades também viajavam de avião, mas não era para todos. Um voo entre Curitiba e São Paulo em 1960, por exemplo, custava 3.300 cruzeiros, valor cinco vezes maior do que a tarifa de ônibus para o mesmo trecho. Já na rota entre Maringá e São Paulo a tarifa era de 1.970 cruzeiros. Naquele ano, o valor do salário mínimo era de 9.600 cruzeiros.

O avião vai embora

O café, que girava a economia no Norte do Paraná, começou a mostrar sinais de esgotamento a partir da primeira metade da década de 1960. A expansão desenfreada da área plantada gerou um excesso de produção. Com muita oferta e pouca demanda, o preço do café caiu significativamente, levando o governo do estado a desenvolver programas de diversificação de cultura, como a soja.

Ao mesmo tempo, as companhias aéreas que se aproveitaram do momento pós-guerra para crescerem se viram em graves dificuldades financeiras. Os benefícios do governo federal, principalmente àqueles voltados para quem voasse para o interior, foram reduzidos. Assim, voar para pequenas cidades deixou de ser vantajoso. Sem contar a concorrência com as estradas, que antes não existiam, mas que passaram a ser mais interessantes e baratas para as pessoas. A Rodovia do Café, que liga Paranaguá a Maringá, por exemplo, foi inaugurada em 1965, com piso asfáltico em toda a sua extensão. Na década de 1960 o cenário do transporte aéreo regular já era diferente daquele da segunda metade dos anos 1950. Com menos companhias aéreas interessadas em voar para o interior e com estradas encurtando o tempo de deslocamento, houve uma redução gradual no número de cidades servidas pela aviação comercial. Em 1961, eram 23 municípios com voos regulares. Em 1966, menos ainda: dez.

Avião DC-3 da Real Transportes Aéreos sendo abastecido no aeroporto de Londrina na década de 1950.
Avião DC-3 da Real Transportes Aéreos sendo abastecido no aeroporto de Londrina na década de 1950.| Yutaka Yasunaka /Museu Histórico de Londrina
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