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Pequeno Cotolengo e ONGs lutam contra queda nas doações empresariais
| Foto: Divulgação

É controverso, e difícil, calcular quanto as pessoas físicas deixaram de contribuir para as instituições beneficentes nos últimos anos, mas em relação às grandes empresas, já se sabe que o impacto foi significativo: segundo o relatório 2019 do Benchmarking do Investimento Social Corporativo (BISC), ligado à Comunitas, as doações à sociedade civil caíram de R$ 453 milhões em 2017 para R$ 232 milhões em 2018.

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A partir de 2015, houve uma queda brusca nas captações individuais do Pequeno Cotolengo, uma das mais conhecidas organizações de Curitiba. Localizado no Campo Comprido, o local abriga 216 moradores – todos com deficiências múltiplas e de diversas faixas etárias – que foram abandonados pelas famílias, sofreram maus tratos ou encontravam-se em situação de vulnerabilidade.

Com necessidades imediatas – a folha de pagamento de colaboradores, com 416 pessoas, tem um custo mensal de R$ 1 milhão – a entidade buscou preencher a lacuna das doações com parcerias: Copel, Sanepar e Oi foram algumas das empresas que auxiliaram nesse processo, com doações mensais oriundas diretamente das contas desses serviços.

“Sentimos imediatamente a crise e, logo, houve um trabalho intenso pela formalização de doações. Antes, em alguns casos, tínhamos até motoboy para receber esses valores”, relembra Josemar Czornei, coordenador de marketing da ONG. O tradicional churrasco do Pequeno Cotolengo também sofreu perdas: a doação das carnes por parte das empresas não se tornou mais possível, reduzindo a rentabilidade do evento.

“Hoje, o que nos auxilia nesse sentido é o trabalho voluntário. Os bazares que realizamos se tornaram uma fonte de recursos mais importante: melhoramos nossa logística para a captação de roupas e móveis e, também, lançamos mão de projetos que melhorassem as condições desses produtos para venda. Desta forma, nos tornamos mais consistentes”.

Czornei reforça, porém, que isso “arrumou a casa” mas não tornou o Pequeno Cotolengo independente da solidariedade das pessoas físicas. “Qualquer pequena contribuição faz a diferença”, ressalta. “É importante ressaltar que quem se sensibiliza, mais que um doador, é também um replicador da mensagem para ajudar ao próximo”.

Sistema de apadrinhamento 

Em meio às incertezas, ter algo fixo é melhor que não ter nada. Esse foi a linha de raciocínio da Afece (Associação Franciscana de Educação ao Cidadão Especial), que há 50 anos auxilia pais que têm filhos com necessidades especiais e poucos recursos financeiros.

Com valores a partir de R$ 30 por mês, a entidade passou a ter cerca 86 pessoas físicas que auxiliam na compra de medicamentos, alimentos e, é claro, no custeio dos profissionais. Com 100 colaboradores e 200 voluntários, a Afece tem um gasto mensal de R$ 337 mil em pessoal. “Há quem doe mais e quem doe menos”, conta Maíra de Oliveira, diretora geral da ONG. “Também ampliamos nosso leque de captação, durante esse período de recessão, com ações de marketing, produtos artesanais, camisetas e ecobags para venda”.

2017 talvez tenha sido o ano mais difícil da década para a Afece: a escassez de recursos levou a diretoria a realizar um empréstimo de R$ 30 mil. Com a organização da casa e auxílio dos colaboradores, o valor foi quitado ao longo do ano seguinte. “O que as pessoas precisam entender é que o terceiro setor é um grande parceiro do Estado, mas ele presta um serviço que os municípios não dão conta”, avalia Maíra. “Por isso, a pessoa física tem esse poder imenso quando está de mãos dadas com a sociedade civil”.

Fachada da Afece em Curitiba.
Fachada da Afece em Curitiba.| Divulgação

Bloqueio de recursos

Em 2018, o Instituto Paranaense de Cegos (IPC) sofreu um duro golpe. Em dezembro – período crítico para a sobrevivência de ONGs devido aos encargos financeiros e trabalhistas – a instituição teve a liberação de R$ 240 mil bloqueada pela Justiça. Então, funcionários e voluntários fizeram uma campanha pela liberação dos recursos públicos, que segundo o Novo Código de Processo Civil não podem ser bloqueados. O valor foi recuperado em 2019, relembra Ênio Rodrigues da Rosa, diretor do IPC.

“Esse dinheiro, utilizado integralmente na manutenção do instituto, foi bloqueado em razão de uma dívida de quase R$ 1,5 milhão, acumulada entre 2001 e 2013 junto à Sanepar”, conta. “Temos um custo mensal de R$ 100 mil para manter a ONG funcionando e esse dinheiro era fundamental. Hoje, o que temos de parceria nos mantém mas pedimos às pessoas que disponham um certo tempo: todos são bem-vindos. Qualquer doação, em bom estado, já nos ajuda muito”.

Com cerca de 65 pessoas auxiliando no dia a dia, o IPC tem um trabalho de acolhimento das pessoas deficientes visuais para auxiliá-los em cursos, isenção de pagamentos em passagens de ônibus e, também, acolhimentos na Moradia Acolhida.

Prestes a fechar

Um dos casos mais emblemáticos da crise que as ONGs passam em Curitiba ocorreu em março do ano passado, quando Sandra de Paula Lima, presidente da ONG Fênix Ações Pela Vida, foi ao plenário da Câmara Municipal para informar que a instituição – focada no acolhimento a vítimas de violência sexual e doméstica – acumulava déficits mensais de R$ 29 mil e havia reduzido a folha de funcionários de 23 para seis pessoas.

“Para contornar essa situação nós buscamos alternativas com ações beneficentes”, conta Sandra que, apesar da iminência do fechamento da ONG, conseguiu mantê-la em funcionamento. “Contamos com a venda de bolos de pote, bazar, oferta de serviço baseado no nosso conhecimento (palestras dos temas atendidos na instituição, capacitações e treinamentos para educadores, psicólogos e pais) e outros para sobreviver”.

A principal consequência para a Fênix foi reduzir a equipe, o que acarretou em fila de espera para o atendimento de alguns casos. Com mais de 30 mil atendimentos nos últimos 12 anos, a equipe precisou focar nas pessoas que já eram atendidas e reduzir o acolhimento a novas.

“Não temos como limitar o número de sessões de cada assistido, porque tratamos de dores de alma”, detalha “Outro agravante para nós do terceiro setor é o fato das acusações e notícias sobre irregularidades em algumas organizações de grande porte, que acabam prejudicando a percepção da sociedade sobre o importante trabalho realizado pelas  entidades menores e mais sérias, mas não menos importantes para a sociedade”.

Organizações desempenham papel complementar ao Estado

Sintetizar a importância das organizações na sociedade civil é uma tarefa árdua, uma vez que existem diferentes tipos que auxiliam em inúmeras frentes. Nesta década, por exemplo, a mídia repercutiu o crescimento de instituições que auxiliavam imigrantes mas que, anteriormente, tinham outras frentes de atuação como a defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade. Em Curitiba, uma dessas ONGs foi a Cáritas, que passou a encampar o auxílio a haitianos e venezuelanos nos últimos anos.

Segundo Jucimeri Silveira, professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e coordenadora geral do Núcleo de Direitos Humanos, a prestação desse tipo de serviço é fundamental em um país com injustiça social em diferentes níveis como o Brasil. “Essas organizações cumprem um papel complementar ao Estado, como na realização das redes de atenção, prevenção da violação de direitos e trabalhos que envolvem mobilização popular, economia solidária e defesa dos direitos, só para citar alguns”, avalia.

A sociedade civil, inclusive, foi a força motriz para o avançar de políticas sociais desde a década de 90, afirma a especialista, uma vez que foram responsáveis por construir dentro da esfera pública a gestão de políticas públicas. “Quem doa para ONGs auxilia isso, de forma direta”, reflete. “Hoje, vejo com preocupação o crescimento de entidades com interesses não republicanos: é um movimento que coaduna com posturas autoritárias e cerceadoras dos direitos humanos, pois desconsideram a diversidade”.

Jucimeri Silveira: "essas organizações cumprem um papel complementar ao estado".
Jucimeri Silveira: "essas organizações cumprem um papel complementar ao estado".| Divulgação

Jucimeri reforça a importância da participação das organizações religiosas no trabalho para auxiliar essas lacunas sociais. Enaltece, por exemplo, o trabalho da Igreja Católica em regiões como o Nordeste, em prol da agricultura familiar e na solução de problemas como a falta de água em regiões distantes.

“Com o congelamento de recursos para políticas sociais – que estão ligadas diretamente às ONGs – o que temos observado é o comprometimento de avanços que surgiram a partir dos anos 90, quando as políticas começaram a ser implementadas de fato”, diz. “Nos últimos 20 anos, tivemos um aumento de nove anos na média de expectativa na vida da população brasileira. Isso se dá por conta das políticas locais construídas, especialmente, pelas organizações não-governamentais”.

Em Curitiba e no Paraná, o Fundo Estadual para a Infância e Adolescência (FIA/PR) é uma importante forma de captação e que demonstra uma boa tradição do estado em se relacionar com as ONGs. Jucimeri ressalta, porém, que a participação ativa do Ministério Público é o que mantém parte desses recursos existindo. “O governo passado retirou esses recursos, algo revertido pelo MP posteriormente”, diz. “Já na capital, tivemos alguns CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) fechados, centros que tradicionalmente já estão posicionados em territórios mais vulneráveis e em que, por exemplo a taxa de analfabetismo chega a 8%. O que precisamos entender é que Curitiba não está isolada do resto do Brasil, há várias ‘Curitibas’ nela mesma”.

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