Arte

Curitiba tem arte? Confira um panorama do cenário cultural da cidade

Gustavo Queiroz, especial para Pinó
10/05/2021 19:41
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Os murais do curitibano Poty Lazzarotto são monumentos à cidade e marcam os lugares identificados como espaços de cultura em Curitiba. | Albari Rosa/Arquivo/Gazeta do Povo

“Qual personagem do cenário artístico você acha que mais representa a cidade?”, perguntou a pesquisa “Como você enxerga Curitiba”, publicada na edição de março da Pinó, em comemoração ao aniversário da capital. As respostas funcionam como indicadores da cena local. O artista mais lembrado foi o poeta curitibano Paulo Leminski, cuja obra escrita no alto do bairro do Pilarzinho ganhou o país na segunda metade do século passado. Com apenas 13 votos de diferença, o segundo lugar foi ocupado pelo biólogo Nelson Rebello – o “Oil Man”. O trabalho que coloca um ou outro no imaginário artístico da cidade, se sabe, é essencialmente diferente, mas há um ponto em comum: ambos são presença certa nas ruas da capital. Enquanto Rebello ganhou fama ao pedalar pelo centro em trajes de banho, Leminski tem sua poesia estampada nas esquinas. “Basta um instante e você tem amor bastante”, revela um muro do Largo da Ordem. Estão, portanto, vivos no território e completam o mapa afetivo da cultura curitibana.
No Largo da Ordem, a pintura no muro lembra<br>que “Basta um instante e você tem amor bastante.”
No Largo da Ordem, a pintura no muro lembra<br>que “Basta um instante e você tem amor bastante.”
Nos resultados da pesquisa, os dois são seguidos por ícones atemporais conhecidos por trabalhos no cinema, nas artes plásticas, na literatura, na música e no teatro. São eles: o ator Ary Fontoura, o muralista Poty Lazzarotto e o escritor Dalton Trevisan. Completam a lista o comediante Diogo Portugal e o grupo Tesão Piá, seguidos de perto pela Banda Blindagem, pelo ator Alexandre Nero e pela atriz Lala Schneider. Apesar da pouca coincidência entre as respostas, o que o resultado nos mostra é que parte importante da produção artística é permitir que o trabalho seja apoiado, divulgado e percebido.
O ator, escritor e diretor curitibano Ary Fontoura foi um dos nomes mais lembrados pela pesquisa<br>"Como você enxerga Curitiba", divulgada na última edição da Pinó
O ator, escritor e diretor curitibano Ary Fontoura foi um dos nomes mais lembrados pela pesquisa<br>"Como você enxerga Curitiba", divulgada na última edição da Pinó
Consequência disso, há um desafio para as muitas gerações de artistas locais: como mostrar o que Curitiba tem a oferecer hoje? Como entender o cenário tradicional da nossa arte, para, assim, conhecer o contemporâneo? Com o objetivo de encontrar algumas pistas, entrevistamos a diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC/PR), Ana Rocha, a diretora do Teatro Guaíra, Monica Rischbieter, o fundador e diretor artístico do Olhar de Cinema, Antonio Gonçalves Júnior, o fundador do jornal literário Rascunho, Rogério Pereira, e a produtora musical que coordena, em parceria com outros artistas, o projeto Brasis no Paiol, Bina Zanette.
Algumas consonâncias marcam a fala dos especialistas. Primeiro, o momento atual é de muita pesquisa, que leva à experimentação de novas linguagens e formatos. Segundo, o isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19 nos coloca de volta nas garagens da cultura, assim como preconizado por muitas bandas de rock da década de 1980. Os profissionais não pararam de pensar a arte de dentro de suas casas e trazer, na medida do possível, diferentes expressões para o público. Finalmente, se existe um traço de identidade da arte contemporânea local, esse traço é a diversidade. Não corremos o risco de cair em bairrismos: a arte curitibana é justamente a sobreposição de mais de uma forma de ver o mundo.
O Largo da Ordem<br>concentra diversas<br>manifestações culturais, com rodas de rap, capoeira, choro, artes visuais e instituições que<br>resgatam a memória da cidade.
O Largo da Ordem<br>concentra diversas<br>manifestações culturais, com rodas de rap, capoeira, choro, artes visuais e instituições que<br>resgatam a memória da cidade.
Em Curitiba, o cenário local é um criador de janelas que escancaram a nossa história.
A verdade é que “a arte existe porque a vida não basta”. A frase atribuída ao escritor José Ribamar Ferreira, o Ferreira Gullar, funciona como um cristal para o período em que vivemos. Em uma cidade, a arte tem a missão de narrativa. Como uma história complexa que se inicia nas intervenções urbanas, nas colagens nas paredes, nas performances na rua e se completa com aquela disposta pelas curadorias dos museus e teatros. Não à toa, a mesma pesquisa identificou que os lugares que os entrevistados achavam a "cara" da cultura curitibana são uma mistura destes espaços: Largo, Teatro Guaíra, MON, Biblioteca e Passeio Público e a Cinemateca.

Música

Em 2011, a Banda Mais Bonita da Cidade – de Curitiba – lançou uma versão da música “Oração”, do compositor Leo Fressato, e imediatamente viralizou nas redes sociais – hoje o clipe conta com mais de 45 milhões de visualizações no YouTube. À época, se dizia que o single colocou Curitiba no cenário nacional, mas a verdade é que a capital paranaense já tinha ganhado protagonismo no circuito musical há muito tempo. Sem dúvida, as bandas pioneiras de rock ultrapassam as fronteiras estaduais desde a década de 1980 e, não à toa, a Blindagem aparece entre os 10 dos artistas mais lembrados em Curitiba.
Também não é verdade que não exista samba por aqui, estereótipo que por vezes circula. O Conservatório de MPB de Curitiba somou grupos de cultura popular e movimentos de rua e aos poucos deu espaço para a criação de blocos carnavalescos como o Garibaldis e Sacis. Em paralelo, os corais locais entregaram apresentações memoráveis nos últimos anos como o Brasileirinho, o Brasileirão e o Curumim. Na esteira, a Orquestra Sinfônica do Paraná chamou o protagonismo da capital na música erudita e, ao mesmo tempo, novos artistas despontam na música eletrônica, no sertanejo e no rap. Na MPB, bandas recém-lançadas como a Jovem Dionísio já alcançam milhões de visualizações no YouTube e celebram parcerias nacionais.
Projeto Brasis do Paiol mudou para o formato online e dobrou o número de apresentações para cinquenta – 34 delas<br>foram com artistas de Curitiba.
Projeto Brasis do Paiol mudou para o formato online e dobrou o número de apresentações para cinquenta – 34 delas<br>foram com artistas de Curitiba.
Para a produtora Bina Zanetti, Curitiba é bastante eclética musicalmente, inclusive sendo responsável por colocar no circuito muitas produções que partem da periferia da cidade. Mas, segundo ela, esse potencial é pouco conhecido pelos curitibanos. Zanetti trabalha com música há mais de 20 anos, a maioria deles com foco na produção da música independente local. Desde 2012, junto com Heitor Humberto, é uma das responsáveis pelo “Brasis no Paiol”, um projeto que contribuiu com o processo de recuperação do Teatro Paiol. O Brasis costumava realizar até 12 shows por ano. Com a pandemia, o projeto mudou para o formato online e multiplicou o número de apresentações para cinquenta – 34 delas foram artistas de Curitiba. A exemplo da Alienação Afrofuturista, banda da capital que fez uma apresentação com o também curitibano Rodrigo Lemos no festival. “Isso foi muito bom, porque além de apresentarmos esse material, a gente conseguiu promover o intercâmbio de diversos curadores, levando muitos artistas para outros festivais online”, conta.

Artes Visuais

Museus tradicionais da cidade, como o MON e o<br>MAC, investem em exposições virtuais para<br>manter o museu vivo em tempos de pandemia.
Museus tradicionais da cidade, como o MON e o<br>MAC, investem em exposições virtuais para<br>manter o museu vivo em tempos de pandemia.
Em 1944, foi criado em Curitiba o Salão Paranaense, que premiava obras de arte de pintura, gravura e escultura. Dois anos depois, o escritor Dalton Trevisan fundou um periódico chamado Joaquim. Um dos responsáveis por fazer as capas da publicação era Poty Lazzarotto, o muralista que assina diversas obras na paisagem de Curitiba. Os dois foram lembrados na pesquisa da Pinó. Estes encontros e eventos anunciavam que haveria espaço para as artes visuais na capital paranaense. Com a criação do MAC/PR em 1970, o Salão Paranaense se tornou mais aberto, abarcando diversas linguagens artísticas. Hoje, é o Salão de Artes mais antigo em funcionamento do país e na última edição premiou 27 artistas, ampliando o acervo do Museu e colocando jovens profissionais no cenário nacional.
A diretora do MAC, Ana Rocha, acredita que a arte contemporânea se apresenta muito mais como uma pergunta do que como uma resposta. E estas dúvidas criam pontes entre a manifestação da realidade e a reflexão sobre o mundo em que vivemos. Um dos trabalhos prontos para exposição no MAC e capaz de levantar algumas destas questões é o da artista plástica Dulce Osinski. A professora da Universidade Federal do Paraná nasceu em Irati e consolidou sua carreira em Curitiba. Hoje, o Museu tem 52 obras suas produzidas nos últimos treze anos.
Para criar um museu vivo, Ana destaca também o projeto “Do It”, que aconteceu em 2020 e que posicionou o MAC no ambiente online. A iniciativa do curador suíço Hans Ulrich Obrist ganhou uma versão “home” em virtude da pandemia e foi promovida também pelo MAC. A ideia foi apresentar 16 instruções de artistas de todo o mundo para que as pessoas pudessem criar suas próprias obras de arte em casa. O resultado está disponível nas redes sociais do MAC. “Eu gosto de pensar que a internet hoje é um braço do museu. Ela era um folder que ficava na minha mão, eu podia soltá-lo e o museu ficava intacto”, afirma. “Aceleramos esse processo e a internet se consolidou como um espaço novo. A gente vai voltar para o museu, a gente vai voltar a ter exposições, mas como Instituição eu já entendi que temos que contar com ações virtuais”.
Do lado de fora, outros artistas contribuem para a criação no espaço urbano. Um deles é Rimon Guimarães. Nascido em Curitiba, ele já produziu murais com linhas características e cores vibrantes em países como Gâmbia, Itália, Holanda, Síria, Bielorússia e Dinamarca. Uma de suas obras pode ser encontrada próxima à entrada do Memorial de Curitiba, no Largo da Ordem.

Literatura

O protagonismo de<br>Dalton Trevisan na<br>literatura curitibana do século 20 abriu espaço para que os atuais escritores produzam suas obras na cidade.
O protagonismo de<br>Dalton Trevisan na<br>literatura curitibana do século 20 abriu espaço para que os atuais escritores produzam suas obras na cidade.
“Curitiba sempre foi um espaço privilegiado para a literatura”. É o que afirma o escritor Rogério Pereira. Ele fundou o jornal literário Rascunho em Curitiba, publicação que completa 21 anos com 253 edições, 120 colaboradores e 50 mil leitores em todo o mundo. O lugar da capital na área está fundamentado no trabalho de escritores como Cristóvão Tezza e o chamado “Vampiro de Curitiba”, Dalton Trevisan. Na poesia, estes patronos encontram o lembrado Paulo Leminski e também a importante poesia de Helena Kolody.
“A história da literatura em Curitiba é muito forte. De alguma maneira, conseguiu um espaço bem generoso, de projeção nacional”, afirma Pereira. Hoje, essas referências indiscutíveis contribuem para o caminho de uma pluralidade de jovens autores e autoras que diluem a ideia de “centro”, fundamentada no eixo Rio-São Paulo e posicionam outras visões de mundo.
Um dos projetos que permite encontrar escritores daqui é o Paiol Literário, que em junho será retomado de forma virtual. Organizado pelo Rascunho, serão sete encontros mensais que seguem o modelo de outros setenta já produzidos: um diálogo com autores sobre sua obra. Já em abril se encerrou a Mostra Literatura Paraná, que através de lives conversou com novos e antigos autores do estado. Uma das entrevistadas foi a colunista do Rascunho, Giovana Madalosso, curitibana formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autora de quatro livros, se destacou internacionalmente com seu último romance, "Suíte Tóquio", publicado pela editora Todavia. A obra conta a história de uma babá que decide sequestrar uma criança. Segundo a autora, o texto fala sobre casamento, relações extraconjugais e conflitos de classe.
Leia na coluna do Reinaldo Bessa nessa edição, um perfil da Giovana Madalosso.

Teatro

Teatro Guaíra fomenta a produção local e, na pandemia, criou iniciativas para levar o teatro para dentro das casas, como o Guaíraflix<br>e o Guaíra em Casa.
Teatro Guaíra fomenta a produção local e, na pandemia, criou iniciativas para levar o teatro para dentro das casas, como o Guaíraflix<br>e o Guaíra em Casa.
Curitiba acompanhou uma série de espaços e escolas de teatro que vieram fomentar a cena local e apresentar ao público grandes talentos. São exemplos o Barracão em Cena, o Teatro Lala Schneider, o Teatro João Luiz Fiani, e o Ave Lola Espaço de Criação. Alguns destes locais emprestaram seus palcos como continuidade da rua em grandes festivais como o Festival de Teatro de Curitiba. Em 2018, o festival assistiu à estreia de uma peça que atingiu sucesso de crítica e público: “Para Não Morrer”, do dramaturgo Francisco Mallmann, artista residente na Casa Selvática – um coletivo de artistas que atua em Curitiba. Com o trabalho, a atriz Nena Inoue, que também trabalha em Curitiba, venceu o Prêmio Shell de Melhor Atriz em 2019. Francisco também se consolidou na poesia e conquistou o 3º lugar na categoria Poesia do Prêmio da Biblioteca Nacional, pelo livro “Haverá festa com o que restar”, da editora Urutau.
Para Monica Rischbieter, a pesquisa realizada por estas companhias é fundamental para o teatro curitibano. Muitos atores e atrizes saíram daqui e alcançaram sucesso também na televisão. São exemplos: Ary Fontoura, Alexandre Nero, Letícia Sabatella e Katiuscia Canoro. Outro exemplo é o ator curitibano Luis Melo, que criou a “Fantástica Fábrica da Arte” em São Luiz do Purunã.
No Teatro Guaíra, o desafio do novo momento foi chamar a atenção do público em formatos amigáveis e digitais. “A gente fez duas coisas: primeiro foi o Guaíraflix que está no YouTube. O Guaíraflix é tudo que a gente já tinha gravado, tudo que a gente tinha disponível, colocamos no Youtube. E a segunda parte é o Guaíra em Casa, que é a parte que nós produzimos na pandemia”, conta Rischbieter. O Guaíra também fomenta o cenário local por meio do Teatro de Comédia do Paraná, em que todo um ano a direção escolhida faz uma nova audição com atores daqui.

Cinema

O longa “A Alma do Gesto” foi um dos<br>filmes exibidos na última Mirada Paranaense, do Olhar de Cinema.
O longa “A Alma do Gesto” foi um dos<br>filmes exibidos na última Mirada Paranaense, do Olhar de Cinema.
Em 2013, um curta-metragem produzido por uma equipe paranaense foi pré- -selecionado para concorrer ao Oscar, mas não chegou a entrar na lista dos cinco finalistas. A obra “A Fábrica” contou com a participação do cineasta Antonio Gonçalves Júnior, que junto com outros artistas começou a fomentar o cenário curitibano com a fundação do festival “Olhar de Cinema” um ano antes. Naquele período, filmes da produtora Grafo Audiovisual começaram a circular o mundo e mostrar que havia um cenário fértil para a arte na capital paranaense.
A primeira edição do Olhar contou com 72 filmes e desde o início garante no seu catálogo a mostra “Mirada Paranaense”, dedicada ao audiovisual local. “Nós tínhamos essa clareza de trazer o cinema independente, cinema autoral, feito no mundo inteiro, E, na grande maioria das vezes, o cinema que está à margem do grande mainstream do cinema autoral”, lembra Gonçalves. “Para nós, desde o começo, era extremamente importante essa conexão com Curitiba. A Mirada é um espaço exclusivo e dedicado, super bem cuidado e com curadoria, com horários de exibição bem fáceis, para otimizar e dar a possibilidades para os filmes feitos no Paraná”.
Mais do que divulgação, o festival cumpre um papel importante no mercado audiovisual. Primeiro, porque formam pessoas de Curitiba, que se tornaram realizadores a partir do contato com o projeto. Depois, porque também contribui comercialmente para que os filmes e profissionais se sustentem. “O Festival quer valorizar o cinema feito localmente, nacionalmente, e levar esse cinema para o mundo, levar as nossas histórias para o mundo e possibilitar também expressões artísticas ousadas, inovadoras, inventivas”, pondera.
Em outubro, aconteceu a primeira edição 100% online do projeto, que permitiu que pessoas de 27 unidades da federação acompanhassem os filmes. “A gente vai continuar aqui existindo, a gente vai fazer o Festival mesmo numa pandemia, a gente vai se reinventar e vai continuar a estar presente”, afirma Gonçalves. Afirmar a resistência de um festival que completa nove anos em 2021 é uma necessidade em meio à pandemia. Em especial, ao saber que o projeto é responsável por apresentar vários nomes da área aos curitibanos.
Entre os muitos destaques que devem ser conhecidos estão Nathália Tereza, diretora do drama “A mulher que sou” (2019); Rafael Urban, produtor do documentário “O Touro” (2015) e Laís Melo, vencedora do prêmio de melhor curta no Festival de Brasília com o filme “Tentei” (2017). Em 2019, Carol Sakura e Walkir Fernandes ganharam o kikito, nome do troféu de Melhor Curta-Metragem Brasileiro do Festival de Gramado pela animação "Apneia".

Futuro

A mesma pesquisa da Pinó, de março, também perguntou aos 2,4 mil respondentes qual seria o presente de aniversário ideal para Curitiba. A resposta mais frequente foi “vacina”. Os realizadores concordam. Ainda que seja possível criar novos cenários digitais, nada substitui a experiência de viver a arte presencialmente. O afastamento também é um desafio para técnicos e artistas que precisam da produção cultural como forma de renda. Em qualquer cenário, um pedido se repete: políticas públicas para a cultura. Se a arte existe em complemento à vida, vivenciá-la é também uma necessidade.