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Quadrinho CWB
| Foto: Reprodução/ José Aguiar

Imagine-se subindo a pé a Avenida Cândido de Abreu sentido Praça Tiradentes, quando uma multidão de pessoas envolta em uma correnteza de água desce com a força de um tsunami pelo centro da cidade. O rio transborda a partir de uma lata gigante carregada por Anita Cardoso Neves, eternizada na estátua “Água pro Morro” de Erbo Stenzel, e renova as marcas físicas e simbólicas das ruas da capital paranaense. Este é apenas um dos cenários épicos criados na narrativa “CWB”, um título de quadrinhos assinado pelo premiado quadrinista curitibano José Aguiar e lançado em novembro passado.

Quadrinhos CWB
| Reprodução/ José Aguiar

O livro é uma narrativa surreal para uma Curitiba real. Nele, a própria cidade se torna um personagem vivo compelido a encarar suas verdades por meio de uma ficção cheia de referências às lendas e paisagens urbanas. A águia de duas cabeças da Praça Zacarias, as estátuas do Homem e da Mulher Nú e personagens célebres dos quadrinhos paranaenses ganham vida – como vilões ou como heróis – e funcionam como aviso para que o passado seja sinônimo de aprendizado e não de esquecimento. “Por mais que minha história seja sim uma declaração de amor para a cidade em que eu nasci, onde vivi a maior parte de minha vida, não deixa de ser um apontamento de coisas as quais eu não gosto que fazem parte da cidade”, escreve Aguiar no prefácio da obra.

São duas histórias paralelas de dois protagonistas principais. Uma delas é contada da esquerda para direita, conforme o formato de leitura ocidental. A segunda, da direita para a esquerda. Nas histórias, os cenários se misturam e se completam, num formato desafiador e ainda pouco explorado. Aguiar faz questão de brincar com estes elementos gráficos para contar o que mora no imaginário de seus moradores. “Curitiba é mesmo europeia? Por que temos tão pouca representação de negros na cidade? Onde estão os indígenas que participaram da fundação do município?”, pergunta o quadrinista. “Tudo isso faz parte da jornada dos meus personagens, inclusive eu fiz questão de desenhá-los em uma aparência mais ambígua. Eles não são de forma alguma um estereótipo. Essas preocupações fazem parte do meu pensar sobre a cidade.”

Quadrinhos CWB
| Reprodução/ José Aguiar

Os personagens vêm de bairros afastados – uma referência ao Capão da Imbuia, onde o autor viveu. Durante toda a história um elemento narrativo funciona como fio condutor: uma maleta que carrega guerra e paz, prestes a se abrir e revelar estigmas que a cidade construiu ao longo do tempo. Para isso, uma bomba de aquarelas de cores quentes e frias criam um bonito espetáculo visual – que também explica a linha tênue do humor curitibano.

Esses símbolos sobrepostos são chamados pelo autor de “geografia do inconsciente”. Nas primeiras páginas já é possível encontrar a residência do escritor Dalton Trevisan, o Prédio da Reitoria da Universidade Federal do Paraná, as flores dos ipês que marcam a paisagem de Curitiba e até os lambrequins dos telhados dos bairros coloniais. Em meio ao caldeirão de contradições que a constitui, “Curitiba é um lugar com potencial de ser fantástico”, explica Aguiar. Portanto, “CWB” não tem uma narrativa óbvia. Curitiba também não. Eis a sorte do leitor.

“Eu considero a história em quadrinhos como se fosse um grande quebra-cabeças onde você exclui as peças certas, porque são essas peças que cada leitor vai completar da sua forma.” José Aguiar.

Quadrinista curitibano José Aguiar
| Divulgação

Os quadrinhos em Curitiba

A CWB também é um convite para conhecer a história gráfica da capital. De acordo com José Aguiar, os quadrinhos curitibanos podem ter tido sua gênese no início do século 19. O pesquisador Newton Carneiro conta no livro “O Paraná e a Caricatura” que aquarelas assinadas por “João Pedro, o Mulato”, encontradas em um acervo de Lisboa, indicam que o primeiro caricaturista brasileiro possivelmente viveu na capital paranaense. As obras eram uma sátira da ornamentação dos militares do Paraná em 1807.

Desde então, os quadrinhos em Curitiba começaram a ganhar terreno junto com o desenvolvimento da imprensa e se solidificaram na primeira metade do século 20 com o trabalho de Alceu Chichorro. Em meados dos anos 1970, já havia um pequeno movimento de autores de tiras nos jornais quando surgiu a Grafipar. A editora especializada em quadrinhos deu projeção nacional a autores locais e, na década seguinte, viu nascer a Gibiteca de Curitiba, que hoje é o ponto focal dos quadrinhos na cidade.

Foi por meio deste movimento que José Aguiar começou a produzir. Em meados dos anos 1980, quando ainda era adolescente, fez 30 tirinhas de seu primeiro personagem, o Boi, e deixou na portaria da Gazeta do Povo. Seis meses depois, estava publicando pequenas histórias na Gazetinha e não parou mais. Ele também foi um dos autores responsáveis pela criação do Gralha – super-herói curitibano que defende uma metrópole futurista de vilões.

Quadrinhos José Aguiar
Livros José Aguiar| Divulgação

Todo esse contexto é retratado em CWB. A própria Gibiteca serve de abrigo a um dos protagonistas, por exemplo. Também há referência aos “Urbormes”, ônibus-robôs curitibanos que viram gigantes, ao consagrado Zequinha, criado por Nilson Müller, e ao mais recente “Los Três Inimigos”, de Tiago Recchia. “Eu queria uma cidade viva independente das pessoas, por isso que os personagens fictícios estão andando pela cidade, por isso que os monumentos criam vida e criam obstáculos para os protagonistas”, conta Aguiar.

Um rio para renovar

Em meio ao caos da aventura dos protagonistas, há um momento de respiro. O ápice da história é justamente o momento em que tudo para: os dois personagens se encontram sem cenário, sem nada. E a mensagem existe no escondido desse espaço em branco. “De repente você tem esse vácuo onde os dois se encontram, que é onde eles recarregam a energia juntos para continuar a jornada”, lembra Aguiar. “Eu considero a história em quadrinhos como se fosse um grande quebra-cabeças onde você exclui as peças certas, porque são essas peças que cada leitor vai completar da sua forma.”

Em Curitiba, os rios se tornam personagens esquecidos no imaginário de uma capital acostumada a tê-lo canalizado sob os pés. Mas em CWB, por mais que seja furioso, ele vem para romper com aquilo que “há de ruim”, como diz Aguiar. Ainda que tenha iniciado a produção do livro antes da pandemia da Covid-19, ele acredita que há um aprendizado latente deixado na história. “Eu espero que quando a gente for sair de casa, onde o tsunami de pessoas venha pra rua novamente, a gente faça isso da melhor forma possível para não perpetuar o que tinha antes, mas sim para trazer algo mais limpo, mais puro e melhor”, conclui.

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