Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

A rotina da bucólica São Mateus do Sul

Paulo José da Costa
19/03/2022 16:07
Thumbnail

A rua principal de São Mateus do Sul.

Fui chegando de mansinho, tímido, com olhos de descoberta e emoção e logo me encaminharam ao gerente da agência, onde iria assumir o cargo de "auxiliar de escrita", início de carreira no Banco do Brasil. Isso foi há cinquenta anos, em 17 de maio de 1971, em São Mateus do Sul, Paraná. Dirceu Miranda Martins, um senhor meio gordinho, com ar bonachão, me recebeu alegremente e chamou os demais treze funcionários com a festa e brincadeiras comuns aos calouros no banco.
Fizeram-me rolar a manivela para "carregar" a máquina de calcular. Também assinei um "requerimento" com uma série de pedidos que logo foram afixados no quadro de avisos internos para todos rirem à vontade. A gente encarava numa boa, no dia seguinte o trabalho começaria pra valer.
As duas igrejas de São<br>Mateus do Sul, lado a lado, a nova e a antiga, que foi depois demolida.
As duas igrejas de São<br>Mateus do Sul, lado a lado, a nova e a antiga, que foi depois demolida.
Eram tempos diferentes, onde você estudava e, mercê de suas aptidões, passava num concurso e abria perspectivas de uma vida futura com um salário digno, com progresso, crescimento, alegria. Bastava estudar, trabalhar e crescer. E assim foi comigo, naquele longínquo dia de 1971 que iria mudar meu destino, trabalhar numa grande empresa, crescer, formar família, ser respeitado. Eu estudei duramente para o concurso e os quatro primeiros colocados foram destacados para São Mateus, a agência mais próxima de nosso domicílio, Ponta Grossa. Os outros eram o João Carlos Moreira, que se bem me recordo tirou nota 100 em todas as matérias e foi o primeiríssimo lugar no Brasil, o Luís Carlos Andrade Rocha e o João Alberto Bührer. A vida nos levou para lugares diferentes depois, mas o período dos dois anos primeiros na pacata São Mateus foi inesquecível.
A agência tinha um prédio bonito, onde o cliente chegava e encostava num balcão enorme em "L" e dali podia ver todos os funcionários espalhados por uma ampla sala bem iluminada (foto 2). Lá na frente ficavam os caixas e mais para o fundo a Carteira Rural, para onde convergia a maioria da clientela e onde comecei a trabalhar. Naqueles tempos, diferentemente de hoje onde tudo está no "sistema", cada agência tinha sua vida independente, no final do dia as contas eram feitas e tudo tinha de "bater" ou passaríamos horas procurando diferenças, às vezes de centavos. O subgerente, Nilson Carlos dos Santos, tudo sabia e controlava sempre com bom humor. Como ele morava no andar de cima do prédio, era onipresente, corria almoçar e num átimo ei-lo de volta dando ordens e instruções. Não raramente víamos as luzes acesas nas noites, dedicação integral.
A agência de São Mateus e a grande sala iluminada, em 1972.
A agência de São Mateus e a grande sala iluminada, em 1972.
Guardo boas lembranças de minha estada na "rural" do Banco do Brasil em São Mateus. A carteira tinha dois funcionários, eu e o Chefe de Serviço. Os mutuários de São Mateus do Sul foram um aprendizado de vida para mim, com sua simplicidade, seu humor, suas histórias e sabedoria. Tenho saudade. Lembro de um em especial, Dídio Sampaio. Sempre que chegava ouvíamos suas gargalhadas estrondosas desde a porta de entrada e todo o serviço parava, pois ele sempre contava histórias e ria deliciosamente. Um dia ele chegou quieto, taciturno, e vimos logo que algo acontecera. Não demorou pra ele contar que sua colheita de milho queimara, o paiol todo se consumira. Ele veio solicitar o seguro. Ficamos olhando tristes ele contando sua história mas, de repente ele deu um sorriso e lá veio a gargalhada de novo: o milho estourava feito pipoca, tinha pipoca pra todo lado, e quá quá quá…
Casas antigas de madeira que davam um ar europeu à cidade.
Casas antigas de madeira que davam um ar europeu à cidade.
São Mateus era uma pequena cidade com praticamente uma grande rua central (foto 3), por onde passava uma rodovia, algumas vias transversais e muitas casas de madeira, antigas (foto 4), que lhe davam um ar europeu. Eu gostava de passear à noite naquelas ruas desertas a pensar e … assoviar. Sim, assobiava como um rouxinol, não sei se alguém me ouvia mas eu soltava o assobio naquelas noites às vezes bem geladas, as casas fechadas, os habitantes recolhidos. Como eu era um tipo bizarro, além das músicas populares, assobiava concertos de Vivaldi, pode? Eu era bom de bico.
Meu ponto de frequência diária era a banca de revistas do Nadolny, onde pegava meu exemplar do Estadão e que passei a animar com compras de fascículos da Abril Cultural e discos clássicos encomendados em catálogos das gravadoras. Havia a loja do Toppel onde em frente morava uma linda jovem por quem meus olhos brilharam por um tempo, de sobrenome Toporovicz, ascendência polonesa, lógico… Era muito linda. E havia o rio Iguaçu, que na época da cheia nos permitia passear de barco nas áreas alagadas (foto 5).
O barco à vapor Pery, abandonado em 1972 na várzea do rio Iguaçu.
O barco à vapor Pery, abandonado em 1972 na várzea do rio Iguaçu.
Para os solteiros da agência o destino para morar era um só: a república (foto 6), experiência única na vida, passagem segura para um amadurecimento, quem passou por uma sabe do que estou falando. Cada um com suas paixões, eu com os discos clássicos, inventei audições de música, todos deitados, a sala às escuras, ao som dos bons Bach ou Mozart… O Bührer era o craque das omeletes. O Moreira e o Rocha eram os esportistas, após o expediente bancário cruzavam a ponte da estrada que levava a Curitiba e depois de sete quilômetros, lá voltavam eles pingando de suor. O Rocha era o religioso, sempre com a sua bíblia debaixo do braço. Aquela bíblia era qualquer coisa, nunca mais em minha vida eu vi uma bíblia tão anotada, tão recheada de grifos multicores.
A república, local de morada em São Mateus.
A república, local de morada em São Mateus.
Uma vez, em viagem de fim-de-semana para Ponta Grossa, estávamos já perto de São João do Triunfo, estrada empoeirada, os quatro dentro de um ônibus da Princesa dos Campos, lotado de gente simples, com malas, sacos e gaiolas, gente em pé no corredor e nós soltando a voz, cantando o "caminhando" do Vandré. Em pé, visivelmente alcoolizado e brandindo uma garrafa da marvada pinga, um indivíduo a cada solavanco dava com a garrafa no metal do ônibus. Estávamos antevendo o desastre, os cacos se esparramando em cima de uma senhora sentada com uma criança… Aí o Rocha levantou-se e foi falar com o motorista que, parando o veículo veio pedir ao borracho para se sentar. Ele não gostou e veio tomar satisfações. Estava com um seu parente, sentados justamente no banco atrás do nosso, e a coisa parecia ir de mal a pior. Foi quando na parada em São João do Triunfo vimos o nosso herói e os dois encrenqueiros descerem, a gente só olhando pela janela, preocupados, pensando em descer também mas, passados alguns minutos, eis que todos sobem abraçados, como velhos companheiros… Só faltou cantoria… O Rocha, usando da sabedoria que possivelmente adquirira com as leituras bíblicas, não só acalmara o ébrio mas também se tornara seu amigo !
Essa estrada de São Mateus a Ponta Grossa a gente conhecia até nos buracos. Quando o João Alberto comprou seu primeiro carro, um fusca, enquanto ouvíamos sucessinhos como "Summer holliday", resolveu pegar um cigarro no porta-luvas , e lá fomos todos para o barranco, rodas viradas para cima. Meu primeiro e único acidente, onde machuquei o dedo mindinho, quase fiquei sem um dedo… por pura sorte. Também cruzei essa estrada à toda, como passageiro febril no banco de trás.
Cheguei à repartição cedo com febre alta e o gerente não titubeou, viu logo que era grave a pneumonia. Em hora e meia estava na Santa Casa de Ponta Grossa, viajando à toda pela estrada empoeirada. Até hoje agradeço, obrigado, Dirceu !
Consegui localizar as imagens de S.Mateus que bati com minha RIO 400. Na sequência de fotografias, só a primeira, de 1964, não foi batida por mim. Uma pena terem demolido a igrejinha antiga, com tantas histórias. Podiam tê-la levado para outro local. Eu saí do BB em 1996, nas demissões incentivadas, para trabalhar com a livraria, mas guardo ótimas memórias desse período, um emprego digno com o qual criei minhas três filhas e forjei os alicerces de minha vida.