História

Curitiba a pé: uma rota para conhecer a cidade

Gustavo Queiroz, especial para a Pinó
09/04/2021 11:23
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Kur´yt´yba é uma palavra de origem Guarani que significa “muito pinhão” ou “pinheiral”, mas esse não foi o primeiro nome da capital paranaense. Se diz que um grupo de moradores estabelecidos próximos ao rio Atuba definiu o “marco zero” curitibano após seguirem a indicação de uma imagem de Nossa Senhora da Luz – ela acordava todos os dias voltada para o local que viria a ser a Praça Tiradentes. Esses primeiros registros da antiga “Vilinha” são do século XVII, período em que a busca por ouro colocou no mapa os chamados “Campos de Queretiba”. Hoje, Curitiba.
É natural que lendas e fatos históricos se confundam no imaginário urbano de uma capital próxima a completar 328 anos. Neste cenário de narrativas sobrepostas, somente a experiência de “viver a rua” é capaz de dissolver ou criar mistérios, esconder ou revelar identidades e separar a realidade da fofoca. Imprevisível, a rua manifesta os encontros e conflitos da vida urbana e, por isso mesmo, nos permite conhecer as muitas histórias que Curitiba nos conta.
A verdade é que toda cidade deixa marcas daquilo que a define. Elas estão nas paredes dos prédios, nos sotaques das pessoas e nos trajetos que a paisagem nos convida a seguir. Por isso, sair da praça Santos Andrade e caminhar até o Largo da Ordem, por exemplo, é sem dúvida uma experiência “informativa, simbólica e lúdica” – forma que o sociólogo francês Henri Lefebvre um dia sintetizou a “rua”.
Para que você também possa viver essa experiência, propomos um roteiro que pode ser feito a pé em horários alternativos e evitando aglomerações.

Praça Santos Andrade

Em 1952 um equilibrista caminhou sobre uma corda bamba que partia do último andar do edifício Marumby, vizinho da praça Santos Andrade, e atravessou a rua em direção próxima ao atual Teatro Guaíra, cuja construção se iniciou no mesmo ano. O segredo é que o Marumby foi projetado pelo arquiteto Romeu da Costa e o Guaíra por Rubens Meister, ex-colegas universitários. Lá de cima, o acrobata pode enxergar um símbolo de modernização, já que a Santos fortaleceu o processo de emancipação política do Paraná.
Contudo, se estivesse no começo daquele século, o equilibrista encontraria apenas um descampado onde se descartava lixo. Foi a chegada de um prédio cor-de-rosa, sede da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1914, e o plantio de araucárias em comemoração ao dia da independência do Brasil, em 1922, que repaginaram o local. Se visitar a praça, procure um busto da atriz paranaense Lala Schneider (1926-2007). Próximo a ele há um único e modesto pé de erva-mate. O cultivo e comercialização desta planta foram o principal motor que motivou a economia paranaense e a separação da comarca de São Paulo, em 1853.

Rua XV de novembro

A XV é uma linha do tempo viva da cidade de Curitiba. Antes chamada de Rua das Flores e Rua da Imperatriz, ganhou o nome atual em 1889 como marca da Proclamação da República. Por ter sido uma das primeiras ruas curitibanas, reúne edifícios de diversas épocas e estilos.
É a primeira via exclusiva para pedestres do Brasil. Em 1972, à revelia dos comerciantes locais, a prefeitura impediu a entrada de veículos na rua. Vinte anos depois, o petit-pavé da calçada ganhou a linha “Pinhão”. Os desenhos da semente no chão conectam prédios importantes da história da capital.
Desde então, a rua virou palco para manifestações religiosas, culturais e políticas. Entre o célebre edifício Tijucas, o Palácio Avenida e o espaço conhecido como “Boca Maldita”, correm conversas sobre a vida na capital.

Paço da Liberdade

Ao deixar a XV e subir a Rua Barão do Rio Branco, você chegará na Praça Generoso Marques, que abriga o conhecido Paço da Liberdade. O edifício construído em 1916 foi sede da prefeitura da cidade por meio século. A “Liberdade” é representada pela estátua de uma mulher localizada no alto da torre central. Ela segura uma tocha, como símbolo de uma Curitiba que enriquecia com o ciclo da erva-mate e se afirmava cada vez mais independente da prima paulista. Dois “Hércules” – poderes Executivo e Legislativo – sustentam as colunas.
Entre 1874 e o começo do século XX, as construções que cercam a praça faziam sombra no que foi o primeiro mercado público da capital. Elas dão o tom de uma imigração bastante eclética, uma vez que a alemã Galeria Heisler divide espaço com o imponente Palacete Tigre Royal e a simpática Casa Edith, ambas administradas por famílias libanesas. Mas este pluralismo cultural concorre com uma história pouco lembrada. Na antiga paisagem, o caminho até a praça Tiradentes era tomado pelo Pelourinho (1668) e a Casa de Câmera e Cadeia (1721) – instrumentos de poder português usados para aplicar castigos aos condenados pela justiça – em sua maioria, escravos.

Praça Tiradentes

Dois monolitos localizados próximos à Catedral Basílica de Curitiba elevam o status da Praça Tiradentes – antes chamada de Largo da Matriz. Um deles carrega a Cruz de Cristo e representa o poder legalmente constituído de Portugal. Ali foi feita eleição pública em 29 de março de 1693, data considerada posteriormente como a fundação da então Vila da Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. O segundo é o Marco Zero da capital, usado para referências geográficas.
A lenda conclui que o marco foi escolhido por um personagem conhecido como Cacique Tindiquera. Ele teria guiado as poucas famílias que moravam próximas ao Rio Atuba (hoje Bairro Alto) até o atual centro da cidade. Ali fincou um bastão e definiu que um lugar com “muito pinhão” seria a medida certa para a fundação de uma vila. Na ausência de uma história mais assertiva, a disponibilidade do cacique em dar um local às indicações milagrosas de Nossa Senhora da Luz iluminam a história curitibana. No final do século XVII foi instalada a primeira capela, ainda feita de barro. Reconstruída mais de uma vez, hoje dá lugar à Catedral de Curitiba, erguida entre 1876 e 1893. Há controvérsias, mas se diz que o estilo neogótico da igreja foi inspirado na Igreja da Sé de Barcelona.

Cavalo Babão

Caminhar entre a Praça Tiradentes e a Fonte da Memória – popularmente conhecida como “Cavalo Babão” – é uma experiência única. “O Largo da Ordem é uma entidade, é o ar que você respira”, diz uma guia do Curitiba Free Walking, projeto voluntário de passeio guiado, sobre o Centro Histórico. Por lá é possível encontrar a casa Romário Martins, considerada a mais antiga de Curitiba. Também há o maior mural cerâmico do Brasil, feito pelo artista paranaense Poty Lazzarotto, e intervenções urbanas em homenagem ao poeta curitibano Paulo Leminski. Curiosidade: em frente ao Memorial de Curitiba está enterrada uma das cápsulas do tempo escondidas pela cidade.
Mas é subindo a Rua São Francisco que você chegará ao polêmico Cavalo Babão, de 1995. A fonte já entrou na lista dos monumentos mais bizarros de Curitiba. Apesar da controvérsia, ele reconta a rotina de feirantes tradicionais que traziam verduras, leite e outros produtos dos bairros para o centro. Uma delas foi Dona Hermínia Perussi, a última verdureira tradicional da cidade. Ela vinha de carroça de Santa Felicidade com seu cavalo Baiano. O animal sabia o caminho de cabeça, e Hermínia voltava para casa dormindo. Certo dia, a dupla sofreu um acidente com um ônibus e o animal não resistiu. Se diz que a fonte é uma homenagem a ele.

Igreja do Rosário e Ruínas

De acordo com o projeto Linha Preta, a Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito foi construída em 1737 por e para negros livres e escravizados. Reconstruída na primeira metade do Século XX, manteve um bonito conjunto de azulejos originais na entrada. No altar, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida divide espaço com o santo africano São Benedito.
A menos de 200 metros dali estão as Ruínas de São Francisco. No início do Século XIX, o local recebeu uma capela – projeto inicial para a constituição da Igreja São Francisco de Paula. Um dos mitos que explicam o motivo da construção nunca ter sido finalizada diz que uma possível rixa com a Igreja Matriz interrompeu a obra. As pedras, inclusive, chegaram a ser usadas na construção da atual Catedral. Hoje, o espaço é tombado pelo patrimônio do estado.
Ao finalizar o passeio, dê meia volta e olhe para trás. Foi deste ponto que o francês Jean-Baptiste Debret pintou em aquarela o que seria a primeira imagem da Vila de Curitiba, em 1827. É possível identificar as ruínas, os arruamentos do Largo da Ordem e o então Largo da Matriz. Ao fundo, está a acolhedora serra do mar. No primeiro plano se encontra o primeiro curitibano retratado na história: um homem negro que trabalhava nas obras da capela.
  • Serviço: Os lugares elencados fazem parte do roteiro proposto pelo Curitiba Free Walking (FW). Um projeto voluntário que existe desde 2014 e convida turistas e moradores a conhecer Curitiba caminhando. Em virtude da pandemia da Covid-19, as atividades presenciais estão suspensas. Conheça o projeto no instagram:(@curitibafreewalking) ou no site www. curitibafreewalking.com