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Alaídes de Paula na carvoaria em Tunas do Paraná: sem receber salário há quase um ano. | Albari Rosa/Gazeta do Povo
Alaídes de Paula na carvoaria em Tunas do Paraná: sem receber salário há quase um ano.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

O trabalho é pesado e ininterrupto. Dia após dia, Alaídes Cordeiro de Paula, de 56 anos, e o filho dela, Roberto de Paula Farias, de 39 anos, abastecem e cuidam das sete fornalhas ativas de uma carvoaria localizada na área rural de Tunas do Paraná, região metropolitana de Curitiba. Não sabem o que é domingo ou descanso. Apesar disso, desde a metade do ano passado, não recebem salário regular. Para eles, o próprio caso extrapola os limites da pobreza extrema: consideram-se consumidos pelo trabalho análogo à escravidão – uma prática que continua a se repetir ainda hoje, 130 anos depois da assinatura da Lei Áurea.

“Se a gente não é escravo, eu não sei quem é. A gente não tem uma bola de ferro amarrada no pé, mas só faz trabalhar”, define Alaídes.

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A última vez em que mãe e filho viram a cor de dinheiro foi às vésperas da Páscoa – há um mês e meio –, quando receberam R$ 100 para ser divido entre os dois. Antes disso, haviam ganhado R$ 500 só no Natal do ano passado. Cada um deveria receber salário mensal de R$ 1,2 mil, mas o pagamento integral foi feito uma única vez: em julho de 2017, quando foram registrados. De acordo com os trabalhadores, o patrão desconta tudo – do aluguel do casebre de madeira de dois cômodos onde os dois moram à cesta básica que, de tempos em tempos, o proprietário lhes leva à carvoaria. Procurado, o dono da carvoaria disse passar por problemas financeiros.

Não há botas, luvas ou equipamentos de segurança. Alaídes carrega as toras sem proteção para as mãos – já grossas pelo labor – e alimenta os fornos usando chinelos de dedo e aspirando a fumaça grossa. “Às vezes arde um pouco [os pés e os olhos], mas passa. Acostuma na marra”, diz. Para além disso, mãe e filho não têm sequer uma noite de sono: as fornalhas precisam ser monitoradas, em média, a cada duas horas, o que os fazem ficar numa espécie de “plantão sem fim”.

“Essa noite, eu fui deitar às 11 da noite. Acordei a 1 [hora], às 3 [horas] e às 5 [horas] da manhã pra ver os fornos, um por vez”, relatou Alaídes à Gazeta do Povo.

Os dois só não estão passando fome porque há duas semanas um policial da reserva – o sargento Wilson Setti – os descobriu e acionou a assistência social de Tunas, que lhes levou uma cesta básica. Mãe e filho calculam que os alimentos devam durar por mais uma semana. Por causa disso, Roberto tem se precavido e procurado “bicos” na vizinhança, se oferecendo para trabalhar em lavouras ou como pedreiro.

“O duro é que daí a carvoaria fica só nas costas da minha mãe, mas tenho de correr atrás de dinheiro”, explica Roberto. “Se não vier o tal do pagamento, vai ficar difícil pra gente”, completa Alaídes.

Se por um lado o salário “não vem”, por outro o patrão não deixa de enviar semanalmente um caminhão para recolher o carvão produzido na propriedade. Há uma meta: cada forno deve render 300 sacos de quatro quilos de carvão por semana: 8,4 mil pacotes por mês. O produto é peneirado e ensacado ali mesmo, por Alaídes e Roberto. “Dinheiro, isso aqui [a carvoaria] dá. A gente só não vê a cor”, define.

Um boletim de ocorrência relatando a condição de escravidão chegou a ser lavrado pela Polícia Militar. Procurado pela reportagem, o delegado responsável pela área, Mário Sérgio Bradock, disse que ainda não havia recebido o B.O., mas não se espantou com os relatos de trabalho escravo.

“Todas [as carvoarias] aqui são assim”, disse, em tom frio. “Mas isso quem tem que cuidar é o Ministério do Trabalho e a Polícia Federal. Eles que têm que vir aqui”, acrescentou. O entendimento do Ministério Público do Trabalho (MPT), no entanto, é outro: “Constitucionalmente, ele [o delegado] poderia ter agido e dado voz de prisão ao escravagista, porque estamos diante de um crime”, disse a procuradora Cristiane Sbalqueiro Lopes, que há 20 anos atua no combate à escravidão.

Atraso

Apesar da abolição da escravatura, o governo brasileiro só reconheceu que ainda há escravidão no país em 1995. Foi aí que se criaram os grupos móveis, que fazem ações de fiscalização a partir de denúncias. Em 2003, a atualização do artigo 149 do Código Penal deixou claros os pré-requisitos para enquadramento da prática: submeter alguém a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, sujeitando o trabalhador a condições degradantes ou cerceando sua liberdade por meio de dívidas ou isolamento.

“Não é preciso que haja um pistoleiro com arma em punho, obrigando os trabalhadores a permanecer no serviço. Isso não ocorria nem quando a escravidão era regra. Hoje, a escravidão se caracteriza por condições degradantes ou servidão por dívida. Como o trabalhador pode ir embora, se não tem um tostão para pegar um ônibus? Se não tem nem para pôr comida na boca?”, explica a procuradora Cristiane.

Segundo Luize Surkamp, chefe da Seção de Inspeção do Trabalho e Emprego no Paraná, cerca de 95% das caracterizações de trabalho análogo à escravidão ocorrem pela condição degradante de trabalho.

“O que é essa condição? É deixar de fornecer aquilo que é obrigação do empregador fornecer. É, por exemplo, o empregador deixar de dar condições de alojamento e alimentação. Quando você reúne um conjunto de irregularidades de alojamento e trabalho é que caracteriza a condição degradante”, afirma.

Desde 2004, mais de 1,6 mil trabalhadores foram resgatados da escravidão moderna no Paraná, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A maior parte deles diz respeito a trabalhadores rurais ligados à agricultura. Isso corresponde a quase 3% dos 41,2 mil casos registrados no país no período. Apesar disso, o ritmo das operações e o das “libertações” têm diminuído.

Em 2014, o Congresso chegou a aprovar a chamada PEC do Trabalho Escravo, que previa a expropriação de propriedades em que se constatasse a exploração de trabalho análogo à escravidão. Até hoje, porém, o texto não foi regulamentado. Tanto a queda nas ações de fiscalização quanto o “engavetamento” da emenda se devem à força da bancada ruralista.

Não é difícil entender o porquê. Nas eleições de 2014, empresas autuadas por utilizar a mão de obra análoga à escrava ajudaram a financiar a campanha de 51 parlamentares: 10% dos 513 eleitos. Juntas, elas repassaram R$ 3,5 milhões às campanhas, conforme levantamento da ONG Repórter Brasil.

Um dos membros da bancada ruralista, o deputado federal Beto Mansur (MDB) – que integra a chamada “tropa de choque” do presidente Michel Temer (MDB) – chegou a ser condenado por trabalho escravo em 2014. Segundo a ação ajuizada, ele mantinha mais de 50 pessoas em condição de escravidão – inclusive adolescentes. Em 2015, no entanto, o Supremo Tribunal Federal arquivou a denúncia a pedido da Procuradoria-Geral da República.

“A diminuição [das operações de fiscalização] coincide com a resistência ao conceito de trabalho escravo, principalmente pela bancada dos ruralistas. A gente vê um movimento político para dar um passo atrás, para frear o objetivo dos que combatem o trabalho escravo”, disse a procuradora do MPT.

Comemoração?

Pelos dados do MTE, o número de trabalhadores resgatados em situação de trabalho análogo à escravidão tem caído nos últimos anos, principalmente após 2014. Sobre essa constatação estatística, as autoridades ligadas à fiscalização não discordam, mas as análises sobre as causas da queda não são consensuais. Para alguns, o dado deve ser comemorado; para outros, não.

Segundo a procuradora Cristiane Sbalqueiro Lopes, o MPT não vê motivos para festejar essa redução, porque entende que a queda decorre da precarização da fiscalização e não de alguma melhora real na situação dos trabalhadores. “Faltam diárias, faltam recursos [para operações de fiscalização]. Se a gente não vai ao local, não encontra o trabalhador escravo. Todos esses aspectos precisam ser considerados”, pondera.

A tese da procuradora encontra certa repercussão dentro do Ministério do Trabalho, mas não é aceita como única explicação para a redução dos casos. Para a secretária de Inspeção do Trabalho do MTE, Maria Teresa Pacheco Jensen, o número de auditores fiscais do trabalho – que são os responsáveis pela fiscalização do trabalho escravo – de fato tem caído nos últimos anos, mas, segundo ela, “a instituição se reorganizou para não haver prejuízo à sociedade”. Isso tem sido feito por meio do uso de tecnologias que possam reduzir o tempo dos auditores em trabalhos burocráticos para que possam dedicar mais tempo às fiscalizações.

“Normalmente se faz uma conexão dessa queda com a redução do número de auditores fiscais. Mas esse não é o fator absoluto. Nós temos mudanças nas formas de produção; você já não encontra mais um número tão grande de escravizados nos locais de trabalho. Diminuiu bastante. Por exemplo, na questão da cana de açúcar, nós chegamos a constatar em uma certa ocasião mais de mil pessoas em condição análoga de escravo. Esse era o perfil que flagrávamos lá em 1995, quando começou o funcionamento dos grupos móveis; hoje as situações são mais pontuais, os grupos são menores”, afirmou.

Luize Surkamp, chefe da Seção de Inspeção do Trabalho no Paraná, também não descarta o impacto das dificuldades estruturais de fiscalização na queda dos casos, mas ela destaca, além disso, que a dinâmica dos setores econômicos interfere nos dados. “Por exemplo, recentemente tivemos um boom da construção civil e ali aconteceram alguns focos de trabalho escravo. Hoje isso diminuiu, então a parte econômica também deve ser levada em conta. Além disso há alguns setores que se organizaram, como é o caso do reflorestamento, que melhorou”, analisa.

O Paraná conta hoje com 69 auditores para fazer as atividades externas de fiscalização em todo o estado. Na região de Curitiba, são 28. Não há uma definição de qual seria o número ideal de profissionais, mas Luize Surkamp estima que para suprir as necessidades de trabalho a quantidade de auditores deveria ser dobrada.

Outro problema enfrentado pela fiscalização é a falta de motoristas: são apenas dois em todo o Paraná. Além disso, os auditores se queixam também de diárias defasadas. Segundo eles, quando existe a necessidade de viagens para fiscalização é comum que os profissionais tenham que tirar dinheiro do bolso para arcar com parte das despesas de hospedagem e alimentação. Apesar desses pontos, as apurações de denúncias relacionadas ao trabalho escravo são tratadas como prioridade.

Dono de carvoaria alega problemas financeiros

O dono da carvoaria, José Alves, conhecido como Egito, alega que a empresa passa por “graves problemas financeiros” e que, em razão disso, não tem conseguido pagar o salário integral aos seus trabalhadores. Apesar disso, ele nega que esteja mantendo seus funcionários em regime análogo à escravidão.

“Eu tive muito prejuízo que acarretou tudo isso, esses graves problemas financeiros. O que sai de lá mal dá pra pagar o capital de giro”, disse Egito.

O empresário confirma que está “faz um tempinho” sem fazer o pagamento aos empregados, mas afirma que eles “não estão descobertos”. “Eu faço uma comprinha e mando levar lá pra eles, pago um vale, faço o que dá (...). Eu já deixei de socorrer a minha própria casa para socorrer eles lá, mas, realmente, a situação está muito difícil”, alegou.

Diferentemente do que a reportagem apurou no local, Egito nega que a carvoaria tenha, atualmente, sete fornos em atividade. Diz que não tem matéria-prima para abastecer todas as fornalhas. Ele argumenta que, em razão disso, a produção caiu.

“Eu sentei com todos eles, fiz reuniões e expliquei. Disse que eles poderiam sair. Eles não estão lá forçados. Mas eles preferem continuar, porque têm uma casinha, tem um recurso. Mas eu sempre expliquei as dificuldades”, afirmou o carvoeiro.

Egito garante, ainda, que pretende fazer “um acerto” com os funcionários, a fim de pagar os salários atrasados. Ele disse que a carvoaria está “se encaminhando para uma melhora” e, a partir disso, a expectativa é de que o negócio recupere a saúde financeira. “Eu quero sentar com eles e fazer um acerto. Neste momento, eu estou correndo atrás de recursos pra socorrer eles lá”, disse.

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