• Carregando...
O Rio Belém transborda no Parque São Lourenço: um dos períodos mais chuvosos das últimas décadas | Daniel Castellano/SMCS
O Rio Belém transborda no Parque São Lourenço: um dos períodos mais chuvosos das últimas décadas| Foto: Daniel Castellano/SMCS

Mais uma vez as águas de março fecharam o verão curitibano deixando um rastro de destruição – alagamentos e inundações afetaram 2 mil pessoas nas últimas semanas. Em parte, isso se deve à força da natureza. Antes mesmo de março acabar, o primeiro trimestre de 2018 já figura entre dez os mais chuvosos da série histórica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), iniciada em 1961. Mas grande parte dos estragos decorre mesmo é da ação humana: construções indevidas, herança maldita de rios canalizados e descaso com o meio ambiente impedem que a água siga seu fluxo natural.

Em janeiro, Curitiba já tinha registrado precipitação acima da média: 371,9 mm, o quinto maior valor mensal da série do Inmet. Somando o volume de fevereiro e o que caiu até 21 de março, foram 681,5 mm no trimestre, contra uma média de 487,2 mm para o período. Porém, independentemente da força das chuvas, especialistas apontam que a cidade precisa encontrar novos caminhos para evitar mais transtornos e prejuízo para a população.

“Toda chuva tem que escoar para algum lugar, ou fica retida. Na natureza, escoa pela superfície, é absorvida pelo solo ou evapora. O rio forma seu caminho e suas curvas justamente para equilibrar sua força. Mas as cidades, em todo o mundo, modificaram os rios para deixá-los retos, dentro de galerias em que a própria avenida é a tampa. Não há espaço para a água correr”, explica o engenheiro ambiental Carlos Mello Garcias, professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “A canalização é uma máscara para os problemas urbanos”, diz a geóloga Lígia Nunes Costa, professora na Universidade Federal da Bahia. Ela lamenta que muitos rios urbanos só são lembrados quando transbordam e provocam prejuízo.

CHUVA EM CURITIBA:veja as maiores médias de precipitação da série histórica

A canalização de rios foi prática comum em Curitiba até a primeira gestão de Rafael Greca (1993-1996). Na campanha eleitoral de 2016, ele ainda se gabava das realizações do passado, mas o fato é que esse tipo de intervenção deixou de ser permitida no Brasil. A Política Nacional de Recursos Hídricos (9.433/97) instituiu a necessidade de outorga para uso ou intervenção de corpos d’água; a Política Estadual de Recursos Hídricos (12.726/99) foi ainda mais clara, ao sujeitar as “intervenções de macrodrenagem urbana para retificação, canalização, barramento e obras similares que visem ao controle de cheias” à outorga e estudos de impacto ambiental.

A legislação estava apenas se adequando à realidade: a crescente urbanização em todo o mundo mostrou que encapsular rios era um erro. Infelizmente, Curitiba já tinha um alto índice de canalização. Segundo a prefeitura, dos cerca de 480 rios que cortam a cidade, entre 70 e 80% são canalizados, em todo ou em parte.

O caminho ideal apontado por especialistas é seguir o passo de metrópoles desenvolvidas, e reabrir os rios encapsulados. Está já é a realidade na Coreia do Sul (Seul) e nos Estados Unidos (Yonkers). Outras cidades pelo mundo estudam como aplicar a técnica. O investimento, porém, é alto. “Fico irritado quando falam que não há dinheiro, porque quando foi para fechar o rio, construir avenida, construir prédios, todos tinham”, lamenta o professor da PUCPR.

681,5 mm foi o volume de chuvas registrado no primeiro trimestre do ano. A média do período é de 487,2 mm

O Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea) faz argumentação parecida. “Seria muito mais inteligente e econômico respeitar a natureza do que fazer obra em cima de obra para consertar projetos errados. É um desperdício de dinheiro público, além de ficar caro para quem vê sua casa destruída. No mínimo, a água que chega na torneira vai ficar mais cara, afetando a todos”, observa Laura Jesus de Moura e Costa, diretora da organização. Ela cita o caso de alagamento em estacionamentos de shopping. Quando um empreendimento foi construído no bairro Portão, o Cedea tentou barrar, argumentando que havia nascentes no local. “Regularizaram a parte burocrática e construíram em cima de nascente. A construção civil é uma das grandes responsáveis pelas inundações que ocorrem nos centros urbanos”, critica. Segundo ela, os engenheiros responsáveis pelas obras precisam respeitar a legislação ambiental e deveriam ser responsabilizados em casos assim.

Para Lígia, a sociedade civil precisa se unir para defender os corpos d’água. Ela cita o caso de Salvador, em que há uma grande obra de canalização em curso, do Rio Jaguaribe. As obras foram paralisadas em 2017, após forte manifestação popular, mas uma decisão judicial liberou a obra.

Possibilidades

Em janeiro, a Gazeta do Povo já tinha publicado reportagem sobre os “alagados” curitibanos, uma pedra no sapato dos prefeitos desde a década de 1970. Um ponto defendido pelo professor Roberto Fendrich, do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Universidade Federal do Paraná (UFPR), são mais redes de microdrenagem (redes coletoras de águas pluviais, poços de visita, sarjetas, bocas-de-lobo e meios-fios). Ele também indica a necessidade de microrreservatórios em todas as residências e edifícios, independentemente da área permeável.

Com um trimestre tão chuvoso, Curitiba mergulhou outras vezes no caos. Tecnicamente, a enchente é um fenômeno natural, esperado. Os prejuízos só ocorrem, portanto, quando a ocupação humana avança sobre as áreas marginais dos rios. Para minimizar os problemas, os municípios brasileiros passaram a investir em obras de macrodrenagem, para melhorar e agilizar a condução das águas pluviais por meio de mudança na declividade dos rios, alargamento e limpeza do fundo dos rios, entre outras ações.

Obra de perfilhamento no Rio Barigui, no Tatuquara: para especialistas, efeitos são de curto prazoDaniel Castellano/SMCS

Essa é a estratégia utilizada pela prefeitura de Curitiba. Atualmente, há obras nas bacias dos rios Barigui e Belém, no valor de R$ 148 milhões. Há outros R$ 253,4 milhões de projetos já aprovados, mas que ainda dependem da liberação de recursos por parte do Ministério das Cidades, para ações nas bacias do Ribeirão dos Padilhas e Belém.

As obras atuais, informa a prefeitura, consistem em trabalhos de retificação, canalização e perfilamento de rios, com a intenção de diminuir os problemas com erosão, assoreamento e inundações ao longo dos fundos de vale. Quando se fala em perfilar o rio, significa retirar detritos, lixo e materiais diversos que se acumulam ao longo do tempo, para que a “caixa” do rio absorva maior volume de água. Dentre as obras previstas, e indicadas por especialistas, estão também bacias de detenção nos rios Atuba, Bacacheri, Juvevê, Uvú, Pilarizinho, Ribeirão dos Padilhas e Ribeirão do Mueller.

BOATO NAS REDES:Comporta do Parque Barigui causou enchente em Curitiba?

A prefeitura informa que também vai atacar em outras frentes: educação ambiental e fiscalização de imóveis. “Vamos produzir um conteúdo didático de como prevenir cheias, como não jogar lixo nos rios, respeitar a legislação de permeabilidade do solo, entre outras ações”, afirmou o prefeito Rafael Greca na quarta-feira (21), em reunião para definir as prioridades para controle das cheias. Ele também destacou as exigências da Lei do Uso do Solo de Curitiba, que prevê que ao menos 25% de cada lote seja de área permeável.

Segundo a Secretaria Municipal do Urbanismo, esse índice pode ser menor, desde que o imóvel tenha um mecanismo de contenção de cheias, como caixas de detenção que retardem a chegada do excesso de água à rede pública de drenagem, compensando a área impermeável. Denúncias sobre construções irregulares podem ser feitas pela central 156.

Por fim, a prefeitura informa que não há estudos em andamento para reabrir rios em Curitiba. “A reabertura de rios canalizados, bem como a renaturalização dos mesmos, demanda grandes investimentos. Nossos rios foram retificados para dar espaço às edificações. Hoje temos pouca área livre para esse tipo de intervenção”, diz nota enviada pela Secretaria de Obras.

Em março, alagamentos se tornaram comuns a cada chuva mais forte em Curitiba.Albari Rosa/Gazeta do Povo

Riscos

Segundo Garcias, da PUCPR, esse tipo de ação pode ter efeitos no curto prazo, mas apenas em alguns pontos; em outros, a tendência é piorar. “Ao reperfilar, vão mudar a declividade para a água chegar mais rápido ao fundo do rio. Podem parar os alagamentos do Rio Belém na região mais central, mas quando ele encontrar o Rio Iguaçu em um momento de chuva, em que os dois estão cheios, vão alagar rapidamente. De novo se faz um saneamento no centro em detrimento da periferia”, aponta.

A Secretaria de Obras argumentou que são feitos cálculos para evitar transtornos. “O aprofundamento dos rios tem o objetivo de ampliar a água a ser acumulada dentro da sua seção. Todos os projetos têm dispositivos de controle de vazão que evitam o excesso de velocidade e garantem o acúmulo escalonado de água, evitando-se assim o transbordo à jusante dos mesmos”, diz nota enviada à reportagem.

LEIA MAIS:Vítima de enchentes há 20 anos, rua da região Central de Curitiba apela a barricadas

Garcias aponta que a construção de mais bacias de retenção ou detenção é o caminho mais adequado. No primeiro caso, como no Parque Barigui, o nível do lago aumenta em caso de chuva, extravasando, mas permanece estável em períodos de seca, para lazer da população. A bacia de detenção funciona apenas para reter água e a escoar de maneira controlada. Pode ser uma praça ou, ainda, ficar embaixo da praça.

De todo modo, ele ressalta que o importante é olhar para a frente. “Temos uma herança feita por todos, até eu participei, como engenheiro. No passado, não fomos capazes de fazer essa projeção do futuro, dos problemas que causariam uma canalização. Hoje já se vive no mundo todo essa problemática. Então, voltar a errar não é possível. Repetir os erros do passado não é admissível”, argumenta.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]