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A ponte que leva os estudantes de Guaratuba (PR) até a escola em Garuva (SC): péssimas condições | Albari Rosa/Gazeta do Povo
A ponte que leva os estudantes de Guaratuba (PR) até a escola em Garuva (SC): péssimas condições| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Todos os dias, o estudante Dênis Gabriel se equilibra sobre a ponte pênsil de cabos enferrujados e madeiras podres, estendida sobre o caudaloso Rio Pequeno, em Guaratuba, no Litoral do Paraná. Não o faz por espírito de aventura, mas por necessidade: atravessar aquela passagem improvisada é parte dos obstáculos que ele e outros adolescentes e crianças do bairro Pedra Branca do Araraquara têm de superar para chegar à escola. A odisseia inclui, ainda, longas caminhadas por trilhas de terra e cerca de 20 minutos de estrada, a bordo de ônibus escolar.

“Não tem o que falar. É uma vergonha. Não pra a gente, que mora aqui. A gente é vítima. É uma vergonha pra sociedade”, disse o rapaz de 17 anos, que cursa o 2.º ano do ensino médio e sonha em ser veterinário.

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Principal perigo da jornada, a ponte se estende por cerca de 70 metros entre as margens do rio, escondendo armadilhas impostas pelo mau estado de conservação – tábuas soltas, frestas, pontas de arame e pregos expostos. Os cabos de aço que a sustentam estão enferrujados e as telas laterais, soltas. Nos dias de chuva, o madeiramento se torna ainda mais escorregadio, demandando mais cuidado e atenção. A cada passo, a estrutura balança, a ponto de trair mesmo quem já se “acostumou” ao desafio. Os relatos sobre acidentes e ferimentos se sucedem.

“No fim do ano passado, o fio de aço arrebentou. O piá ficou pendurado. Escutei os gritos e corri aqui. Tive tempo de puxar ele pra cima. Já teve gente que não teve a mesma sorte e caiu”, contou o chacareiro Luiz Antônio Lago. A filha dele, Aline Lago, de 13 anos, é uma das estudantes que precisa passar pela ponte todos os dias para ir ao colégio. Por causa das condições da estrutura, ele faz questão de, diariamente, acompanhar a garota na travessia. “É perigoso. A gente fica com o coração apertado. Mas precisa estudar e não tem nada aqui”, lamentou.

Falta de manutenção expõe crianças e adolescentes ao perigoAlbari Rosa/Gazeta do Povo

Desvios e abandono

Apesar de serem moradores do Litoral do Paraná, os jovens são alunos de escolas de Garuva, na divisa com Santa Catarina. Até por isso, a indignação dos estudantes e de seus pais aumenta diante dos mais de R$ 20 milhões desviados da construção e reforma de colégios paranaenses e investigados na Operação Quadro Negro. As apurações indicam que parte do dinheiro teria sido destinada à campanha de reeleição de Beto Richa (PSDB) e detalham o pagamento de propina a um núcleo político do estado.

“Com um pouco disso [dos recursos desviados], dava pra construir uma escola pelo menos mais perto. A gente está esquecido aqui faz anos, enquanto o dinheiro some ”, disse o pedreiro Luiz Carlos Felski, que viu os três filhos se formarem em escolas catarinenses. É ele quem se encarrega, pessoalmente, de fazer reparos na ponte. A cada dois ou três dias, o morador pega as ferramentas e lança mãos à obra.

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“Eu penso nas crianças. Meus filhos precisaram passar por isso. Então, eu não ligo de arrumar o que dá. Se for depender da prefeitura, a gente fica esperando”, afirmou.

Única unidade perto dali, a Escola Municipal Pedra Branca de Araraquara está fechada há três anos. Nas salas de aula, apenas a lousa e alguns livros empilhados lembram que o imóvel já recebeu alunos. Fechado, o prédio parece estar abandonado e parte do telhado desabou. Se estivesse aberta, a escola poderia, ao menos, poupar as crianças que cursam até a 5.ª série de ter que pegar a estrada.

“Tem criança que tem que ficar passando por isso. Tem um menino de seis anos que faz esse trajeto. Se os grandes já sofrem, imagine os pequenos”, destacou Lago. “Fecharam [a escola] sem dizer nada pra gente”, completou.

Situação da Escola Municipal Pedra Branca de Araraquara, fechada há três anosAlbari Rosa/Gazeta do Povo

Alicerces

Em Campina Grande do Sul, na região metropolitana de Curitiba, a construção do Colégio Estadual Ribeirão Grande deveria ter sido concluída em janeiro de 2015, possibilitando o atendimento de 1,8 mil alunos. As obras, no entanto, não passaram do alicerce e de algumas paredes que hoje se deterioram ao tempo. A escola é um dos alvos da Quadro Negro e medições atestam que menos de 7% da obra foi executada. Ainda assim, o governo do Paraná chegou a repassar mais de R$ 3,3 milhões à empresa responsável pela construção, a Valor Construtora.

“Faz três anos que era pra ter aluno ali, mas [o terreno] hoje virou ponto de droga. O material [de construção] que tinha, carregaram tudo. Parou tudo. Está tudo acabando em nada”, lamentou o eletricista Delson Gomes, vizinho da construção. Segundo o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Educacional (Fundepar), em novembro de 2017, foi assinado um convênio com a prefeitura de Campina Grande do Sul para a retomada das obras. Mas até agora não há mínimo sinal de operários na construção.

“Quando anunciaram a obra, teve um monte de político aqui. A gente ficou feliz porque ia ter escola perto. Agora, os jovens estão se formando sem ter visto a cor da escola”, acrescentou Gomes.

Em Campina Grande do Sul, governo e prefeitura prometeram retomar construção de escola parada por desvio de recursosAlbari Rosa/Gazeta do Povo

Na estrada

Vizinha da obra abandonada, Raíssa dos Santos Beira, de 12 anos, poderia ir às aulas caminhando, se o Colégio Ribeirão Grande tivesse sido concluído. Agora, ela precisa acordar 40 minutos mais cedo, viajar quase 50 quilômetros por dia, entre ida e volta, para se sentar à carteira escolar. Para moradores do bairro Divisa, a distância é ainda maior: 100 quilômetros por dia.

“O ônibus é superlotado. Tem dias que tem que ir em pé, porque não tem lugar pra todo mundo. É ruim porque cansa e é perigoso. Dá uma freada e a gente voa pra frente”, contou Raíssa. A menina pretende cursar medicina, mas reconhece que o tempo gasto na estrada pode fazer falta aos estudos. Por isso, ela se sente vítima de uma conjuntura da qual não tem culpa. “Enquanto eu estou na estrada, tem gente estudando. Eles vão levar vantagem lá na frente. Eu vou ter que correr atrás”, observou.

Toda semana, tem dois ou três acidentes que acabam fechando a pista. Aí, os alunos da manhã vão chegar em casa 8 ou 9 horas da noite. Os da tarde chegam de madrugada

Paulo Cézar Alexandre diretor do Colégio Estadual do Campo da Terra Boa

A preocupação em relação aos riscos da estrada tem justificativa. No ano passado, um aluno de 9 anos de idade que trafegava no ônibus escolar fraturou o braço, depois que o veículo foi atingido por um caminhão em plena BR-116. Na ocasião, o garoto chegou a ficar inconsciente e foi hospitalizado em estado de choque. O tacógrafo do ônibus estava inoperante e não tinha certificação.

Neste ano, os relatos de pais e alunos dão conta de outros dois acidentes envolvendo ônibus escolares, cujas vítimas sofreram ferimentos leves. “Essa estrada é perigosíssima. É uma BR, né? E os ônibus rodam num estado que a gente nem sabe. Ninguém fica sossegado”, disse Jane Bonfim, cuja sobrinha é uma das alunas-viajantes. “A gente fica com o coração na mão com os filhos pegando estrada todo dia. Não é fácil pra ninguém e é uma situação que era pra estar resolvida se tivessem entregado a escola, como deveriam”, acrescentou a cozinheira Luzia Aparecida Santos, mãe de Raíssa.

A demanda gerada pelo atraso na conclusão do Ribeirão Grande é absorvida pelo Colégio Estadual do Campo da Terra Boa. O diretor desta escola, Paulo Cézar Alexandre, destaca que a construção da nova unidade não só “desafogaria” o Colégio Terra Boa, como acabaria com a exposição dos alunos a risco.

A estudante Raíssa dos Santos Beira, de 12 anos: 50 quilômetros de viagem porque a escola mais próxima não foi construídaAlbari Rosa/Gazeta do Povo

“Aquele trecho entre o Ribeirão Grande e o Terra Boa é o mais perigoso da nossa BR. Toda semana, tem dois ou três acidentes que acabam fechando a pista. Aí, os alunos da manhã vão chegar em casa 8 ou 9 horas da noite. Os [alunos] da tarde chegam de madrugada”, contou. “A construção da escola evitaria isso”, complementou.

A operação

Deflagrada em julho de 2015, a Operação Quadro Negro começou a partir de contratos da Secretária de Estado de Educação (Seed) com a Valor Construtora. As investigações, no entanto, se aprofundaram e avançaram: hoje, 36 obras de 24 construtoras diferentes são investigadas. No ano passado, 17 pessoas foram denunciadas à Justiça, entre os quais o dono da Valor Construtora, Eduardo Lopes de Souza, e o ex-diretor da Seed, Maurício Fanini.

Lopes de Souza já fechou acordo de colaboração premiada e implicou o núcleo político do Paraná nos desvios – como os deputados Ademar Traiano (PSDB), Valdir Rossoni (PSDB) e Plauto Miró (DEM), além do ex-governador Beto Richa (PSDB). Todos negaram relação com as irregularidades e colocam em descrédito a palavra do delator, a quem classificaram como criminoso. Fanini, por sua vez, negocia para também se tornar um delator. Ele está preso na sede da Polícia Federal (PF), em Curitiba.

Segundo a Fundepar, pelo menos duas das obras que haviam sido paralisadas pela Quadro Negro foram retomadas e já foram concluídas. Outras sete escolas tiveram os contratos relicitados e as obras estão em andamento. Quatro colégios estão com os trâmites licitatórios em vias de serem concluídos ou com os respectivos contratos por assinar. A Seed sempre ressaltou que as investigações começaram a partir de auditorias feitas pela própria secretaria.

Outro lado

A Secretaria da Educação do Paraná (Seed) limitou-se a informar que jamais recebeu pedido de construção de uma escola na região de Pedra Branca do Araraquara. A pasta diz que os pais poderiam matricular os filhos na rede estadual, no Colégio Estadual do Campo de Cubatão, em Guaratuba, mas que optam por direcioná-los a Garuva por causa da distância.

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