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O Cânion Guartelá, o maior do Brasil, escavado pelo Rio Iapó, que atravessa a Escarpa Devoniana, paredão que separa o primeiro do segundo planalto paranaense | Brunno Covello/Gazeta do Povo/Arquivo
O Cânion Guartelá, o maior do Brasil, escavado pelo Rio Iapó, que atravessa a Escarpa Devoniana, paredão que separa o primeiro do segundo planalto paranaense| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo/Arquivo

No meio do Paraná tem uma pedra. Muitas pedras, uma formação rochosa gigantesca que corta 13 municípios, da Lapa à divisa com São Paulo. É a Escarpa Devoniana, um ecossistema único, que reúne campos nativos, florestas de araucária, afloramentos rochosos, cânions e que guarda tesouros arqueológicos e pré-históricos. Ela faz parte de uma Área de Preservação Ambiental (APA) de 392 mil hectares, cujos limites estão em risco devido a um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa, propondo a redução de 68% de sua área. Ao longo do ano passado, uma forte reação em defesa da escarpa uniu diversas entidades, as quais têm boas perspectivas para 2018: o texto tem poucas chances de ser aprovado pelos deputados.

A área é sustentada pela formação furnas, um tipo de rocha que teria sido formada no período devoniano, há 400 milhões de anos, e corta importantes regiões produtivas dos Campos Gerais. De maneira simplista, o embate opõe ambientalistas e ruralistas. Mas o tema é muito mais complexo e já virou até caso de polícia.

INFOGRÁFICO:onde fica a Escarpa Devoniana no mapa do Paraná

O presidente do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), Luiz Tarcísio Mossato Pinto, foi um dos que prestou depoimento em um inquérito que investiga se houve omissão na conservação da APA da Escarpa Devoniana. Em abril de 2015, ele assinou um pedido de estudo técnico para a Fundação ABC, ligada a cooperativas rurais da região dos Campos Gerais, para “refazer o perímetro” daquela unidade de conservação. No ofício, ele afirma que o estudo foi aprovado pelo Grupo Gestor da APA – apesar de não haver nenhuma ata confirmando isso.

Além disso, o Ministério Público do Paraná (MP-PR), que requisitou o inquérito, apontou que não houve licitação e tampouco alguma decisão administrativa que justificasse a contratação daquela instituição. Nem o IAP nem o presidente do órgão se pronunciaram sobre o caso até o momento.

O estudo da Fundação ABC é a base do Projeto de Lei nº 527/2016, apresentado em novembro de 2016 pelos deputados Ademar Traiano (PSDB) e Plauto Miró (DEM). Luiz Claudio Romanelli (PSB), também assinava o projeto, mas posteriormente retirou a assinatura.

Na justificativa do projeto, os autores sustentam que o perímetro da APA da Escarpa Devoniana foi definido em 1992 com “tecnologia pouco avançada na época”. Agora, dizem eles, há dados “mais apurados e confiáveis”. O projeto então, propõe a retirada de 237 mil hectares da APA atual, que correspondem, segundo o estudo, a áreas de agricultura, pecuária e reflorestamento.

Antes mesmo de detalhes polêmicos do estudo virem à tona, entidades de proteção ambiental questionaram o projeto por mudar drasticamente o propósito da APA, que é o de unir produção sustentável com a preservação ambiental. A Lei nº 9.985/2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, define que a APA pode ser constituída de terras públicas ou privadas, com o os objetivos de “proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais”.

“Os bitolados proponentes do projeto de lei que pretende mutilar 70% da APA da Escarpa Devoniana não conseguem vislumbrar ganho que não seja o trazido pela monocultura de pinus e pela soja encharcada de agrotóxicos”, pontua o advogado Aristides Athayde, vice-presidente do Observatório de Justiça e Conservação.

Segundo ele, as potencialidades econômicas da APA são enormes, principalmente no turismo. Até mesmo a soja e o pinus, diz ele, podem ser produzidos na área, mas de forma sustentável, sem contaminar lençóis freáticos. “Existe a possibilidade, mas, em uma APA, se incentivam os produtos com mais valor agregado, como a agricultura orgânica, e a fruticultura, algo que possa fazer referência ao local onde foram fabricados”, explica ele.

O paredão da Santa, em Jaguariaíva, na Serra de Furnas, e seus cerca de 100 metros de alturaDivulgação/Guartelá Filmes

O decreto nº 1231/92, que criou a APA da Escarpa Devoniana, proíbe: agricultura mecanizada que demande alta quantidade de agrotóxicos; reflorestamento com essências exóticas; implantação de atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente; e a alteração de sítios arqueológicos e de valor histórico e cultural. Por sua vez, o Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE) da APA, que consta no Plano de Manejo feito em 2004, dividiu a área em 25 zonas, das quais três são de proteção ambiental; 12 áreas de conservação ambiental; oito zonas de usos especiais; e três zonas de proteção especial, caracterizadas pela grande fragilidade ambiental.

A Federação da Agricultura do Estado do Paraná (Faep) apoia a redução da Escarpa Devoniana, ainda que recentemente tenha se mantido distante da discussão. Em artigo publicado em março pela Gazeta do Povo, o presidente da entidade, Ágide Meneguette, defendeu que a população dos municípios abrigados na APA precisa de investimentos, renda e emprego. Nessa mesma época, o boletim da Faep destacou a opinião de representantes de produtores, defendendo a mudança para permitir novos projetos de cooperativas rurais e segurança jurídica para o produtor. Eles dizem que o erro ocorreu no passado, com a delimitação errada da APA. Na semana passada, a entidade estava em recesso.

Entretanto, muitas entidades embarcaram na defesa da Escarpa. A seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se posicionou institucionalmente contra a redução da área. A regional no Paraná da Cáritas Brasileira – organismo da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – emitiu uma nota “Reduzir a APA da Escarpa Devoniana é colocar em risco a vida”.

Uma moção de apelo, com outra dezena de instituições, tenta convencer os deputados a não aprovar o projeto – o documento está no site www.osultimoscamposgerais.com.br. No mês passado, diversos artistas paranaenses gravaram uma música e um clipe, enfatizando as belezas naturais da área e o criticando o projeto de lei.

Futuro

Para estes, um alento: segundo o líder do governo na Assembleia, deputado Romanelli, dificilmente o texto será aprovado pelos deputados, pelo menos da forma que está hoje. Segundo ele, por questões técnicas. “Quando assinei o projeto de lei, fui induzido ao erro. É um belo estudo, mas um estudo de uso de solo somente, não o suficiente para redimensionar a APA”, afirma.

Ele, porém, ressalva que é necessário atualizar o perímetro. “Algumas áreas que deveriam estar na escarpa não estão, e outras que estão deveriam sair. Mas é preciso um estudo tecnicamente correto. Tendo isso, não há porque não avançarmos na questão”, diz.

As falhas no levantamento que propõe a redução já haviam sido apontadas por pesquisadores. Não há dados sobre a fauna e a flora da região, nem sobre as atividades culturais – o tropeirismo é uma das características essenciais dos Campos Gerais. “No caso da escarpa, ela diz muito a respeito da nossa identidade como paranaense, como sulista. A redução causaria uma descaracterização total da área”, aponta Athayde, do Observatório de Justiça e Conservação.

Crimes ambientais

A imensa área da APA da Escarpa Devoniana é protegida por leis ambientais, mas, na prática, diversas localidades sofrem com a exploração inadequada dos recursos naturais e até mesmo com a extração ilegal.

No fim de dezembro, os ciclistas Bento Aleixo, 40 anos, e Marcelo Vieira, 46 anos, estiveram no Paredão da Santa, em Jaguariaíva, e flagraram a movimentação de blocos de pedra retirados da formação rochosa. “O pessoal deve ter visto que a gente estava chegando e se mandou de lá, não vimos ninguém. Mas as pedras estavam à beira da estrada, para comércio ilegal. É um crime irreversível que está ocorrendo por lá, e é feito à luz do dia. É impressionante a inércia do poder público em relação a isso”, relata Aleixo.

Pedras extraídas ilegalmente encontradas pelos ciclistas Bento Aleixo e Marcelo Vieira, da expedição Ciclo-Tropa Pró-EscarpaArquivo Pessoal

O paredão é um ponto de turismo religioso e que recebe peregrinações e romarias ao longo do ano. Fica a 2 quilômetros da cidade, na Serra das Furnas, e é formado por uma escarpa abrupta de cerca de 100 metros de altura. Os dois ciclistas foram até o local como parte da expedição Ciclo-Tropa Pró-Escarpa, uma das diversas iniciativas lançadas nos últimos meses para divulgar as belezas naturais da região e lutar contra o Projeto de Lei nº 527/2016.

Aleixo e Vieira são policiais militares, e o ciclismo virou mais que um hobby. “Queremos ser ciclistas funcionais, usar a bicicleta além da diversão. Entendemos que é importante fazer ações e despertar o interesse das pessoas para a bike. A ideia é fazer uma viagem do Pacífico até o Atlântico em 2020, e a cada ano fazemos uma rota preparatória”, conta Aleixo, que nasceu na região do Guartelá, em Tibagi. Os dois ficaram sensibilizados pelas notícias recentes de redução da área, e decidiram partir em defesa de uma área sustentável usando um meio de transporte sustentável.

Eles rodaram 540 quilômetros da APA em oito dias pedalando, com o apoio de diversos patrocinadores e apoiadores. Em parceria com o Observatório Justiça e Conservação, definiram a rota para incluir pontos importantes para o tropeirismo. “Em Castro a gente teve uma aula no Museu do Tropeirismo com uma historiadora e também fomos à Fazenda Capão Alto, que teve um ponto alto para mim. Quando estávamos saindo, chegou um ônibus com estudantes Escola Municipal Fabiana Pimentel, de Castro, e o Aleixo deu uma aula lá, e foi muito bom interagir com eles, falando tanto da Escarpa como das bicicletas”, diz Vieira.

Os dois contam que a expedição feita com bicicletas ajudou a abrir portas: os moradores se interessavam e, sabendo da causa, logo se colocavam à disposição e prestavam auxílio. “Para os tropeiros, a redução da área é prejudicial, porque isso aumenta as áreas para latifúndio, expulsando os pequenos produtores da terra e acabando com a cultura e tradição no cultivo da terra”, observa Aleixo.

O tropeirismo é uma das mais tradicionais atividades econômicas dos Campos Gerais e pode ser prejudicado com a redução da área da APA da Escarpa DevonianaDivulgação/Guartelá Filmes

Uma das “pragas” encontradas em boa parte do trajeto foram áreas de reflorestamento com pinus. No próprio Plano de Manejo da APA da Escarpa Devoniana, consta que “este é extremamente prejudicial ao equilíbrio ecológico das comunidades vegetais, especialmente as campestres rochosas”. A literatura científica aponta que essa monocultura causa impacto ambiental negativo, pela acidificação da floresta e consequente diminuição da atividade dos microrganismos no solo, prejudicando também a sobrevivência de animais que ali vivem.

Por outro lado, os viajantes contam que presenciaram atividades exitosas, como as praticadas no Assentamento do Contestado, na Lapa. “Há pouco mais de 100 famílias sobrevivendo da agroecologia, um bom exemplo de que as políticas públicas voltadas para a pequena produção deram certo”, observa Aleixo. Nessa cidade histórica, outro belo exemplo: a Gruta do Monge, com infraestrutura adequada para receber turistas. “A população local usa bastante o local para atividades de lazer e esportivas, aproveitando bem a área. A estrutura que tem ali pode servir de exemplo para outros pontos de interesse turístico dentro da escarpa que ainda não estão bem preparadas”, diz Vieira.

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