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Estrada de Ferro Central do Paraná, entre Apucarana e Ponta Grossa, foi construída entre 1968 e 1975. | Gilberto Abelha/Jornal de Londrina/Arquivo
Estrada de Ferro Central do Paraná, entre Apucarana e Ponta Grossa, foi construída entre 1968 e 1975.| Foto: Gilberto Abelha/Jornal de Londrina/Arquivo

Uma história que assombra o Paraná nos últimos 50 anos está perto de um desfecho – com sabor de vitória para uma das maiores empresas do estado, mas que deixará um gosto amargo para os paranaenses, para quem sobrou a conta. O governo estadual começou a pagar os precatórios da empreiteira CR Almeida por débitos na construção da Estrada de Ferro Central do Paraná, construída entre Apucarana e Ponta Grossa, de 1968 a 1975. Trata-se de uma dívida bilionária, decidida na Justiça, que deve comprometer uma fatia considerável do orçamento do Paraná nos próximos três anos.

Tudo começou na década de 1960, quando o governo federal apontava a importância de fazer uma nova ligação ferroviária, cortando a região central do estado, principalmente para escoar a produção agrícola do Mato Grosso do Sul e também do Norte e Noroeste do Paraná. Naquela época, havia o ramal ferroviário de Cianorte, passando por Maringá e Londrina, cruzando o Norte Pioneiro, para aí descer em direção ao Porto de Paranaguá, num trajeto muito extenso, e a estrada de ferro de Ourinhos (SP) a Ponta Grossa, considerada obsoleta, com traçado antigo. 

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Sem dinheiro para fazer o trajeto mais curto e moderno, o governo federal propôs que o Paraná construísse a ferrovia e se comprometeu a ressarcir o investimento. Um convênio foi firmado em 1968 e a CR Almeida foi a escolhida para a empreitada. Ocorreram vários percalços no caminho e a obra foi interrompida diversas vezes, algumas por falta de pagamento. A cada parada, novos acordos eram feitos. Até que em 12 de março de 1975 a estrada central do Paraná, também conhecida como Apucarana-Ponta Grossa, foi inaugurada. 

A ligação realmente incrementou os negócios no Paraná, aumentando em 44% o volume transportado pelo Porto de Paranaguá. Mas foi quando o governo estadual cobrou a dívida da União que as contas não fecharam. Na esfera federal, a justificativa foi de que os repasses de US$ 89 milhões eram suficientes para saldar o débito. O Paraná contestava, argumentando que o convênio assinado determinava o ressarcimento integral e que a ferrovia custou muito mais do que o ressarcimento feito. Em paralelo, a empreiteira passou a cobrar por prejuízos pelos atrasos nos pagamentos e também exigiu valores adicionais, alegando que fez uma obra muito mais cara do que havia sido prevista pelo estado.

O caso descambou para uma ampla batalha judicial, em todas as instâncias e tribunais, com diversos processos, cada um levando muitos anos. Foram várias também as reviravoltas – quando uma situação apontava uma tendência, uma decisão apontava em contrário. A disputa judicial ainda continua, em alguns detalhes da questão, mas o cerne já foi sentenciado e não cabe mais recurso. O governo do Paraná perdeu duas vezes. Primeiro, entre os anos de 1987 e 1997, foi condenado a pagar a CR Almeida, em valores bilionários. Depois, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão de 2007, considerou que o governo federal nada mais devia ao estado. 

A fonte de tantos débitos com a empreiteira foi alvo de muita especulação, mas não para o Judiciário, que declarou o caso como incontroverso – ou seja, não mais passível de discussão. A dívida apontada referente à obra passa de R$ 3 bilhões, sendo que o precatório que deve começar a ser pago nos próximos dias é de R$ 2,2 bilhões. Na prática, nos próximos três anos, a única dívida judicial que o governo do Paraná irá pagar é com a CR Almeida – as exceções são pagamentos a idosos, inválidos ou doentes graves e a quem aceitar fazer acordo com desconto de 40%. Até quitar a conta com a empreiteira, todos os demais precatórios terão de esperar. A estimativa é de que o estado tenha R$ 9,3 bilhões para pagar e precisa saldar todo o débito até 2024, sob pena de perder benefícios federais. 

Parte dos atrasados pela construção da estrada já começaram a ser pagos – referente a outros precatórios, nos últimos anos, foram destinados à empresa R$ 668 milhões, além de R$ 218 milhões com honorários advocatícios, destinados a um dos filhos do empreiteiro, o advogado Guilherme Beltrão de Almeida, que estava responsável pela causa. Mas o desembolso ainda pode ser maior. O Judiciário já reservou outros R$ 650 milhões para a CR Almeida, mas o cálculo dos valores ainda é alvo de divergência e, por isso, não foram repassados. Além disso, a empresa luta na Justiça para que o governo reconheça outros prejuízos financeiros, com perdas inflacionárias e planos econômicos, além de metodologias diferentes de contabilidade, que ainda podem elevar, na casa de muitos milhões de reais, o tamanho da dívida.

Linha do tempo

A história da Estrada Central do Paraná

- Anos 1960

O governo federal queria fazer uma ligação ferroviária pelo Paraná, principalmente para escoar a produção agrícola do Mato Grosso do Sul, que começava a crescer. Sem dinheiro para fazer a obra, a União propôs que o governo estadual tocasse o projeto, com a promessa de futuramente ressarcir as despesas. O Paraná topou e começou a obra em 1968, contratando a CR Almeida. 

- 1975

A Estrada de Ferro Central do Paraná, com 331 quilômetros entre Apucarana e Ponta Grossa, foi inaugurada. Foi também quando a empreiteira começou a cobrar o governo estadual, alegando que parte da obra não foi paga. Em paralelo, o Paraná começou a cobrar o governo federal.

- Anos 1980, 1990 e 2000

Foram três décadas de guerra judicial. Ora a CR Almeida ganhava, ora o governo estadual. A discussão sobre cálculo de juros e perdas com planos econômicos se estendeu por processos judiciais diversos. Cada vez que a CR Almeida vencia uma batalha processual, era gerado um precatório para o recebimento do recurso. Também pela questão sobre o reembolso do dinheiro para o Paraná, o embate se estendeu por anos. 

- 2008 

Morre o empresário Cecílio do Rego Almeida, dono da CR Almeida. O crédito dos precatórios fica para o espólio. 

- Anos 2010

Ainda que algumas ações judicias tivessem transitado em julgado – ou seja, fossem decisões que não podiam mais ser contestadas com recursos –, restavam dúvidas sobre o tamanho da conta. A fórmula de cálculo continuou sendo discutida nos tribunais e se chegou a falar em uma dívida de R$ 30 bilhões. Contudo, o Judiciário considerou como adequado o pagamento de valores na casa de R$ 3 bilhões. 

- 2018

Começou o pagamento de dois dos precatórios milionários referentes à Estrada Central do Paraná. Já foram repassados R$ 668 milhões para a CR Almeida e mais R$ 216 milhões a título de honorários advocatícios, que ficou também com a família, uma vez que a assessoria jurídica ficou com um dos filhos de Cecílio, Guilherme Beltrão de Almeida.

- 2019 a 2021 

A estimativa é de que levará três anos para o governo do Paraná quitar os precatórios da CR Almeida referentes à Estrada Central do Paraná, comprometendo mais R$ 2,2 bilhões do orçamento estadual – que representa 2% da receita do governo e mais o equivalente a 1,76% a ser sacado dos chamados depósitos judiciais. Até que se salde a dívida com a empreiteira, o pagamento de todos os demais precatórios fica bloqueado, com a exceção dos chamados superpreferenciais (para idosos, inválidos e doentes graves).

O que a CR Almeida vai fazer com essa bolada

A empreiteira CR Almeida está prestes a receber um valor maior que o orçamento anual da prefeitura de Londrina, com mais de 560 mil habitantes. O destino dos quase R$ 3 bilhões – R$ 2,2 bilhões a serem pagos e mais os R$ 668 milhões já depositados – suscita dúvidas. O diretor-presidente da empresa, Sandro Vicentini, informou que parte dos recursos deve ser investida nos negócios, atualmente concentrados em São Paulo e Rio de Janeiro.

O foco da empresa está hoje em concessão de rodovias em outros estados e também na prestação de serviços e realização de obras dentro do próprio contrato de pedágio. A empresa continua familiar, com ênfase em clientes privados e menos obras públicas. Não toca nenhum projeto no Paraná, no momento, embora continue com a sede aqui. Uma fatia dos valores dos precatórios já foi cedida, no passado, com credores da empreiteira e também houve a negociação dos títulos com interessados. Assim, somente uma porção do valor bilionário será efetivamente usada pela empresa.

Vicentini destaca que o empresário Cecílio do Rego Almeida, que criou a empresa e encampou a briga pelo pagamento das dívidas, não viu os precatórios pagos – morreu em 2008. Segundo o diretor-presidente, o empresário queria uma saída negociada, mas só encontrou o caminho judicial. “Foram 40 anos de luta”, disse. Ele também enfatiza que as decisões judiciais foram baseadas em perícias, que teriam comprovado os gastos adicionais da empresa.

A empreiteira ainda questionou as fórmulas de cálculo de juros, e mesmo a não aplicação de correções monetárias por um período. “Dez anos de juros ainda estão em discussão”, comenta. Vicentini ainda enfatiza que os valores originais devidos já eram volumosos, em época de inflação alta. Segundo ele, a título de exemplo, caso o dinheiro destinado à obra pela empresa tivesse sido destinado a aplicações financeiras teria rendido muito mais. No período que esperou para receber do governo do Paraná, a CR Almeida enfrentou duas possibilidades de concordata. “Mesmo com um crédito muito alto para receber, não tinha dinheiro para pagar as contas nem os tributos”, diz Vicentini.

Por muitos anos, o governo do Paraná deixou de pagar precatórios, incluindo o da CR Almeida. Não havia punição para quem deixasse de depositar os valores determinados por decisões judiciais. Mas isso mudou nos últimos quatro anos, com duas emendas constitucionais, que estabeleceram regras e sanções para ordenadores de despesas e gestores (prefeitos, governadores e também os presidentes de tribunais). 

A estrada de ferro foi inaugurada em 1975.Arquivo/Tribuna do Norte

A importância da Estrada Central

Das 10 milhões de toneladas que passam ao ano pelas ferrovias do Paraná, 9 milhões trafegam pela Estrada Central. A ferrovia tanto conduz grãos produzidos no Norte e Noroeste e em outros estados, para o Porto de Paranaguá, e outras cargas, como industriais e combustíveis. No sentido da importação, se destaca o trânsito de fertilizantes.

O engenheiro Paulo Ferraz, que foi chefe da Rede Ferroviária no Paraná, e o jornalista Gilberto Larsen, que escreveu um livro sobre os caminhos do estado, acreditam que a Estrada Central foi essencial para o desenvolvimento regional e nacional. “A Central do Paraná representou o mesmo que a Estrada do Cerne (1939) e depois a Rodovia do Café (1969) para a integração econômica, social e cultural do Norte com o Sul do estado”, comenta Larsen.

A estrada começou a ser idealizada em 1948, quando o governador Moyses Lupion contratou estudo com Lysimaco da Costa & Irmãos e entregou os serviços à empreiteira Byington & Cia. Começou a frente norte em 1949 e a frente sul em 1950, mas o contrato foi rescindido em 1957. Depois de acordo entre os governos estadual e federal, a CR Almeida assume a obra em 1969 e a conclui em 1975. Atualmente, a Estrada Central está sob a responsabilidade da concessionária Rumo. O trecho entre Ourinhos (SP) a Ponta Grossa, inaugurado em 1910, está sem uso.

PRECATÓRIOS

Como funciona o pagamento

Se um carro oficial bate no seu carro, você pode receber pelo prejuízo quase imediatamente ou levar muitos anos para colocar a mão no dinheiro. Depende de uma série de fatores. Se o caso for parar na Justiça, o poder público é obrigado a recorrer de decisões que sejam desfavoráveis; a demanda pode demorar muito. Se, ao final, o Judiciário definir que o governo deve pagar a você a dívida, outra série de circunstâncias vai determinar quando o depósito será feito. Se o seu automóvel for um Gol bolinha, da década de 1990, o pagamento deve ser feito em até 60 dias depois da decisão judicial. Mas se o valor que o governo deve a você for maior que R$ 16.455, é emitido um precatório. Aí, para receber, vai precisar entrar na fila definida por ordem cronológica, que atualmente está parada nas decisões judiciais referentes ao exercício do ano de 1998.

A diretora da Central de Precatórios, Patrícia Caetano, explica que apenas podem passar à frente na fila os chamados de superpreferenciais, que são beneficiários idosos, com doenças graves ou invalidez. Os valores são encaminhados para a vara judicial que deu a decisão, para encaminhar o pagamento. A ordem da fila está disponível no site do Tribunal de Justiça do Paraná. No caso da CR Almeida, há 15 precatórios na frente, totalizando R$ 17 milhões. No ritmo previsto de pagamentos para os próximos meses, a dívida bilionária com a empreiteira deve levar três anos para ser paga. 

EXIGÊNCIA

Paraná aprova plano para quitar dívidas

O Tribunal de Justiça do Paraná aprovou em novembro um plano anual de pagamento de precatórios, apresentado pela governadora Cida Borghetti (PP) , a ser executado nos próximos cinco anos. A medida atende a exigência de uma emenda constitucional aprovada em 2017.

Na prática, o governo estadual aumenta o valor destinado todos os anos para saldar a dívida. A aplicação de 2% da receita corrente líquida era insuficiente para quitar, até 2024, como determina a emenda constitucional, os R$ 9,3 bilhões devidos. Contudo, o governo estadual está se comprometendo a destinar 3,73%, incluindo na conta os chamados depósitos judiciais. Assim, dos atuais R$ 60 milhões destinados mensalmente para o pagamento de precatórios – metade por acordo, metade por ordem cronológica de decisões judiciais – o montante destinado por mês passa a ser R$ 112 milhões.

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