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Carli Filho em seu carro, saindo do julgamento | Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Carli Filho em seu carro, saindo do julgamento| Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

Carli Filho não pareceu se abater. Do banco dos réus, dirigiu-se para o lado de seus advogados para ouvir a sentença proferida pelo juiz Daniel Ribeiro Surdi de Avelar após dois extenuantes dias de julgamento. Foram mais de 20 minutos de leitura. Nenhuma reação. O ex-deputado estadual acabara de ser condenado a 9 anos e 4 meses de prisão por uma colisão de trânsito que matou dois jovens em 2009. Os jurados consideraram que o réu assumiu o risco de matar (dolo eventual, na linguagem jurídica), o que lhe aumentava a pena. Ainda assim, a notícia não devastou o condenado. O desfecho é, para bem da verdade, muito mais um ponto e vírgula do que propriamente um ponto final. Isso porque ainda cabe à defesa recursos. Ainda assim, foi um desfecho. Necessário e emblemático. A conclusão, ainda que momentânea, de uma história que se arrastou por longos nove anos com um gosto amargo entalado na garganta das famílias envolvidas, mas também da sociedade. Era um jogo de poder e influência que, por vezes, pareceu invencível para quem estava do lado mais fraco.

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Foi de parar a cidade. Era a primeira vez que um político paranaense ia a júri popular. O julgamento de Luiz Fernando Ribas Carli Filho trazia uma carga emocional que o alçou ao status de um evento cinematográfico. As senhas para as 200 vagas abertas ao público interessado em sentar no Tribunal do Júri e acompanhar o procedimento acabaram muito antes do esperado – era para serem distribuídas às 13h30 do dia 23; mas pessoas que esperavam em barracas desde a madrugada daquele dia conseguiram retirá-las antes. Estava claro que o julgamento mexia com os brios. Era um crime cada vez menos tolerado pela sociedade. “Este caso é um divisor de águas. O júri popular manifesta o que decide a sociedade. E a sociedade vai dizer se pode permanecer incólume esse tipo de conduta [direção alcoolizada] ou se isso deve ser penalizado como um crime”, disse no início da semana o advogado Juarez Xavier Kuster, assistente de acusação que representa a família de uma das vítimas.

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E mais. O personagem principal era um nome forte da política local. Carli Filho era tido como o sucessor de uma família de cacife político em Guarapuava, cercada de pessoas influentes. Na cidade, pouco se fala sobre o caso. O medo da impunidade se tornou algo palpável nos últimos nove anos. Desde aquela madrugada.

Era a primeira hora do dia 7 de maio de 2009. O então parlamentar dirigia seu Passat blindado em alta velocidade quando atingiu um Honda Fit conduzido por Gilmar Rafael Yared, com Carlos Murilo de Almeida na carona, em um cruzamento no bairro Mossunguê. Naquela noite, havia bebido em um restaurante no Batel. A colisão gerou algumas das imagens mais fortes vistas em acidentes de trânsito. E terminou com a morte violenta dos dois jovens. Segundo o hospital que o atendeu, Carli Filho tinha 7,8 decigramas de álcool por litro de sangue: quatro vezes mais que o permitido. Além disso, laudos do Instituto de Criminalística comprovaram que, no instante da colisão, o Passat dirigido pelo ex-deputado estava a uma velocidade entre 161 km/h e 173 km/h.

Carli Filho estava com a carteira de habilitação vencida e sequer poderia estar dirigindo.

O ex-deputado passou dias entre a vida e a morte. Sobreviveu e a partir dali começou uma batalha de gato e rato para fugir de um júri popular, adiar o julgamento e postergar uma decisão. Não teve sorte. Principalmente pela obstinação de Christiane Yared, mãe de uma das vítimas e hoje deputada federal, que se tornou uma ativista ferrenha pela segurança no trânsito.

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Dezessete minutos. Foi no fim do primeiro dia o ápice do julgamento. Carli assumiu sua culpa de beber e dirigir e pediu desculpa às famílias das vítimas. Apesar disso, destacou que o acidente não teria ocorrido se o carro das vítimas não tivesse “invadido” a preferencial – uma estratégia para tentar classificar seu crime como culposo (sem intenção de matar) e não com dolo eventual (quando se assume o risco). Nos dois dias de julgamento, a estratégia de defesa estava clara: era reduzir o tempo de prisão. Homicídios culposos têm pena máxima de 4 anos de prisão, um quinto da pena máxima dos crimes dolosos.

Na avaliação dos advogados do réu, as vítimas causaram o desastre, ao ingressar na via preferencial em que Carli Filho trafegava.

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Não convenceu um júri formado por cinco mulheres e dois homens. O corpo considerou que o ex-deputado assumiu o risco de matar. Ao ler a sentença, o juiz foi aplaudido. Era um desfecho necessário, mas não o ponto final. O julgamento do caso Carli Filho não acaba com a sentença. À defesa, cabe recurso. O trâmite de apelação costuma ser demorado. Em casos comuns, é analisado em um a dois anos, em média. Mas há alguns aspectos que podem fazer o recurso demorar mais. Primeiro, Carli Filho não está na prisão. A legislação brasileira estabelece que os prazos judiciais são mais curtos quando o réu está preso. Como ele responde o processo em liberdade, o tempo de tramitação é normal. O segundo ponto a ser considerado é que a defesa do ex-deputado é profícua em apresentar novos elementos ao processo, acumulando todos os tipos possíveis de recursos. Isso faz com que o julgamento aconteça somente depois de esgotadas todas as possibilidades jurídicas.

Ainda assim, é uma sinalização positiva para a sociedade. “Os jurados de Curitiba reconheceram o dolo na conduta do motorista que sai com o seu veículo, sem condições, e mata alguém. Não estou afirmando que todo mundo que bebe e dirige deva ser condenado por dolo eventual. Mas o que estou comemorando é que quem bebe e dirige pode eventualmente responder por dolo eventual”, afirmou o promotor de Justiça de São Paulo Rogério Sanches, coordenador do curso de Ciências Criminais da Pós-Graduação do CERSS, à Gazeta do Povo logo após a sentença. “É um precedente importante porque reconheceu uma tese que é cara ao Ministério Público, que luta para que casos assim não sejam automaticamente tratados como ‘homicídio culposo’. Ou seja, dá uma oportunidade para o Ministério Público, a depender das circunstâncias, comprovar que houve dolo”

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Carli ainda estava no Tribunal do Júri quando cessaram as palmas de fim de sessão. Passava das 17 horas. O ex-deputado cumprimentou seus advogados. Seu irmão, o deputado Bernardo Ribas Carli, que acompanhou todo o julgamento, desceu então ao espaço reservado à defesa e lhe deu um abraço demorado. Um carro esperava na saída dos fundos. Bernardo e Carli embarcaram, sem falar com a imprensa. O carro saiu rapidamente. Era o final de um capítulo.

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