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Barragem de Brumadinho não era listada entre as que ofereciam risco, mas estilo de análise pode deixar escapar fragilidades. | Mauro Pimentel/AFP
Barragem de Brumadinho não era listada entre as que ofereciam risco, mas estilo de análise pode deixar escapar fragilidades.| Foto: Mauro Pimentel/AFP

Mesmo após o desastre da barragem de Mariana, o Brasil mantém uma estrutura precária de fiscalização de suas barragens. Dados do Relatório de Segurança de Barragens de 2017, publicado no ano passado, apontam que a Agência Nacional de Mineração (AMN) é responsável pela fiscalização de 790 barragens de rejeito pelo país. O trabalho de fiscalização, porém, limitou-se a apenas 211 vistorias ocorridas em 2017, o que equivale a 27% dessas instalações.

O estudo divulgado pela Agência Nacional de Águas (ANA) compila informações de todos os órgãos responsáveis por barragens. As estruturas ligadas à área de mineração estão sob a tutela da ANM, que repassa relatórios sobre suas barragens à ANA. O levantamento de 2017 traz uma lista de 45 barragens que, segundo 13 órgãos de controle, teriam situação preocupante “por possuírem algum comprometimento importante que impacte a sua segurança”. A barragem de Brumadinho, da Vale, que rompeu na sexta-feira, não aparece na relação e nem mesmo é citada no relatório.

Entre os 45 empreendimentos com problemas estruturais, a ANM apresenta cinco barragens, todas em Minas Gerais, mas nenhuma delas da Vale. A reportagem procurou a ANM para obter informações sobre as fiscalizações já realizadas na estrutura da barragem que rompeu ontem, mas não obteve retorno.

Informalidade

O cenário nacional das barragens é marcado pelo informalidade. O Brasil tinha, até dezembro de 2017, 24.092 barragens cadastradas pelos órgãos fiscalizadores. Das barragens cadastradas, apenas 13.997 (58%) têm algum tipo de ato de autorização (outorga, concessão, autorização, licença, entre outros) e estão regularizadas. Pelas informações dos órgãos reguladores, 4.510 barragens (18,7% do total cadastrado) submetem-se à Política Nacional de Segurança de Barragens. Em nota, a ANA informou que em 2017 encaminhou formulário para os órgãos fiscalizadores, que declararam as informações sobre as barragens sob sua responsabilidade.

Para o professor de Engenharia Hidráulica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Barreira Martinez, o país tem centenas de barragens mal cuidadas. “Lamentavelmente ficou tudo do mesmo jeito [depois de Mariana], tanto que o resultado é o mesmo. E esse é só mais um, ano que vem vamos ter outro e vão morrer mais pessoas. As mineradoras continuam fazendo o que bem entendem”, afirma ele.

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Martinez diz que falta investimento em monitoramento, por parte das empresas, e em fiscalização, por parte do Estado. “O monitoramento é primitivo, continua sendo feito com peças do século 19, e depois se espantam com o resultado. E há um excesso de leniência do Estado com as empresas”, afirma. Ele cita o exemplo de Mariana, em que as mineradoras criaram a Fundação Renova para implementar projetos de reparação ambiental e socioeconômica após a tragédia. “Existe uma indenização de R$ 20 bilhões, mas é a própria empresa que vai aplicar na recuperação. Isso não tem cabimento, quem tem de fazer isso é o Estado brasileiro”, diz.

Análise por amostra

No caso da barragem de Brumadinho, a estabilidade tinha sido garantida por um auditor – o sistema de gestão implementado exige que um auditor externo avalie a estrutura das barragens. Essa avaliação é feita anualmente e é baseada num check-list. Como essas estruturas são de grandes dimensões, o estudo de risco de ruptura é feito por análise amostral, explica o geólogo Jehovah Nogueira Júnior. São definidos alguns setores da barragem para fazer o levantamento de informações. “É comum estudar algumas seções, mas pode ter uma parte crítica que não foi escolhida. É um sistema que ajuda a prever riscos, mas não resolve”, diz Nogueira, que é consultor de barragens. Como a de Brumadinho, a barragem de Fundão, da Samarco, tinha estabilidade garantida.

O método de análise funciona para evitar uma ruptura por deslizamentos, mas pode falhar em detectar infiltrações. “A infiltração só vai ser detectada muito tarde, ela costuma ser negligenciada. Quando vem uma chuva muito forte, o nível da barragem aumenta muito rápido e pressiona a infiltração. Com isso, a barragem pode romper”, diz.

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O professor de Engenharia de Minas da UFMG Evandro Moraes da Gama acredita que a supervisão das barragens aumentou depois da tragédia de Mariana, mas ainda é fraca. “Não foi suficiente porque aconteceu outro acidente, com a mesma empresa, mesmo tipo de minério e rejeito. E não houve um alerta que permitiria uma evacuação, por exemplo”, afirma.

Especialistas dizem que a lei federal sobre a Política Nacional de Segurança de Barragens, de 2010, ainda precisa ser implementada. Além disso, Martinez defende que o Brasil adote um modelo similar ao dos Estados Unidos, onde, segundo ele, o corpo de engenheiros do Exército fiscaliza as barragens e cobra das empresas as adaptações necessárias. “É um órgão perene, que tem pessoal competente no país todo”, diz ele, sobre o exército brasileiro.

Falta de rigor

O problema das barragens de mineradoras começa ainda na construção, segundo Jehovah Nogueira. “O processo é muito menos rigoroso do que o de hidrelétricas, por exemplo. Não se vê dique desse tipo rompendo toda hora”, diz.

Técnicos da área concordam que a barragem dá sinais de falha, mas a pressão pela produção pode interferir nas medidas de segurança. “A estrutura apresenta inconformidades, mas isso pode ser interpretado de forma otimista demais. Uma empresa como a Vale tem contratos fechados com antecedência e precisa entregar o produto. Então, alguém responsável pela operação diz: ‘não pode parar, vai tocando’”, afirma Maurício Ehrlich, professor de Engenharia Geotécnica da Coppe/UFRJ . Martinez compara a situação a um infarto. “Tem uma dor no peito, depois no braço, há sintomas. É claro que as empresas sabem o que acontece e vão levando a situação”, afirma.

Para Ehrlich, entretanto, esse tipo de problema pode ocorrer em qualquer país, porque o risco faz parte da atividade de mineração. “Já teve acidente assim no Chile, Austrália, Canadá. A exploração mineira trabalha muito no fio da navalha”, diz. Ele afirma, ainda, que há órgãos externos e organismos internacionais que ajudam a controlar a atividade das empresas. “Mas nem sempre eles conseguem saber o que está acontecendo na ponta”, afirma.

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A estrutura que rompeu em Brumadinho nesta sexta-feira não recebia rejeitos desde 2015 e seria desativada definitivamente. Em dezembro, foi obtida a licença para o reaproveitamento dos rejeitos e o encerramento das atividades, conforme a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais.

“Toda barragem tem uma vida útil. Normalmente é usada até exaurir o reservatório. Mas mesmo após desativada tem de garantir as condições de segurança”, diz Nogueira. O destino para uma barragem inativa deveria ser acabar com o barramento, “fechar de fato”, segundo Hernani Lima, da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto. “É preciso colocar esse rejeito em outro lugar, abrir o barramento, drenar e tirar toda a água, para evitar esse tipo de acidente.” Segundo Gama, da UFMG, é possível reaproveitar os rejeitos para fabricar cimento e concreto, por exemplo. “Nós compramos porcelanato da China, que é feito com rejeitos de barragem de ferro. Podemos reaproveitar os nossos para fazer base de estrada, várias estruturas”, diz ele.

O professor afirma que, antes da tragédia em Mariana, a universidade já havia apresentado essas soluções para mineradoras e para o governo, mas não houve interesse na proposta. “A UFMG tem trabalhado com esse problema desde 1996 e já vínhamos alertando o poder público de que, com essa escala de produção de minério, os rejeitos iam ultrapassar a capacidade das barragens”, diz.

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