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| Foto: Divulgação/Norte Energia

Corrupção, desvios e prejuízo ao Estado, ao meio ambiente, a consumidores e a ribeirinhos e indígenas. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, alvo da 49ª fase da Operação Lava Jato nesta sexta-feira (9), sempre foi cercada de controvérsia – desde a década de 1970, quando o projeto foi iniciado, inicialmente para construir a usina de Kararaô (que na língua indígena Caiapó é uma palavra religiosa que significa “grito de guerra”). A obra, inicialmente orçada em R$ 17 bilhões, deve chegar a custar mais de R$ 30 bilhões – sendo R$ 22 bilhões em empréstimos do BNDES. 

Em parte da obra, foi constatado superfaturamento de mais de R$ 3 bilhões. A Eletrobras, principal acionista do projeto, é tanto o vilão como a vítima de Belo Monte, tendo participado do processo que redundou em uso da máquina estatal para favorecer estatais e partidos políticos, ao aceitar a aventura de projetos não-lucrativos e também sendo forçada a assumir prejuízos que seriam de seus sócios. 

Questiona-se também a escolha de se construir uma usina gigantesca, mas que não pode gerar toda a sua capacidade instalada; os danos ambientais e sociais que causou; a forma de associação das empreiteiras que ganharam o leilão a fundos de pensão e empresas de fora do ramo (como o frigorífico Bertin, ligado à JBS) e a falta de transparência nos quase 2 mil contratos que a empresa dona da usina, a Norte Energia, tem firmados. 

Protesto de ribeiriinhos e índios contra as obras da hidrelétrica, em 2011.Foto: Atossa Soltan/AFPOLTANI

O Tribunal de Contas da União (TCU) já expôs diversos desses erros e pontos questionáveis sobre a decisão construir a usina no estado do Pará, iniciado há 40 anos. Lá atrás, quando os indígenas e até a comunidade internacional se opuseram ao projeto, a escolha das empreiteiras que fariam o estudo de viabilidade do projeto já teria colocado certos grupos em posição privilegiada para disputar a concessão da usina, apontou o TCU em relatório de novembro de 2016. 

Leia também: Delator diz que tratou com Lula sobre construção de Belo Monte

 A hidrelétrica ainda não está concluída, faltando ainda metade de suas 24 unidades geradoras entrarem em operação (previsto para janeiro de 2019), mas já é comparada a uma “história trágica” pelo ministro do TCU José Múcio Monteiro, que relatou processo sobre o projeto. Uma história “que nos atinge e que nos revolta, como cidadãos que pagamos nossos impostos à espera do melhor”, afirmou.

 Listamos abaixo os principais questionamentos e polêmicas sobre a usina. 

O projeto nos anos 1970: o grito de guerra e o facão da índia Tuira 

O primeiro projeto para se construir uma grande usina no Rio Xingu nasceu em 1975, com o Aproveitamento Hidrelétrico (AHE) Kararaô, com 8.380 MW de potência instalada, onde hoje está Belo Monte. Seriam alagados cerca de 20 mil quilômetros quadrados. O alagamento de uma área grande na Amazônia chamou a atenção internacional. 

O começo do favorecimento de certos grupos econômicos e empreiteiras em Belo Monte teria começado já nos anos 1970. O TCU questiona o primeiro processo de estudos de viabilidade técnica e econômica para a usina, conduzidos pela Eletronorte/ Eletrobras. Até 2009, participaram do estudo as empreiteiras Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Odebrecht. Outras empresas também ajudaram na elaboração do projeto, como Engevix , Themag, Intertechne e Arcadis Tetraplan. Esses agentes teriam sido privilegiados no leilão da usina, por deterem informações da obra e do local. 

A india Tuíra empunha seu facão em protesto contra Belo Monte: símbolo da luta contra a instalação da usina.Foto: Everaldo Nascimento/Diário do Pará

Em 1989, em uma audiência de representantes da Eletronorte com indígenas, um protesto contra a usina gerou uma imagem forte e que correu o mundo: a da india Tuíra, que espremeu seu facão contra o rosto do presidente da empresa, José Antônio Muniz. Presente no encontro estava o cantor britânico Sting, contrário à obra. Os indígenas exigiram a troca do nome da usina, proibindo o uso de palavra sagrada de seu vocabulário, que passou a se chamar Belo Monte. 

Em julho de 2005, o Congresso Nacional, autorizou a construção da usina, e a Eletrobras ficou encarregada de rever os estudos. Em 2009, o projeto foi considerado prioritário, acelerando seu processo rumo ao leilão, no ano seguinte.

Uso e influência estatal na empresa, inclusive via fundos de aposentadoria de servidores 

Cerca de 20% da Norte Energia pertence a dois fundos de pensão: Petros, da Petrobras, e Funcef, da Caixa Econômica Federal. Considerados sócios interessados apenas no retorno financeiro (e não em ganhos na construção da obra ou operação), a inclusão dos fundos para compor o capital do consórcio ganhador evidencia a influência estatal em Belo Monte. 

Do total da participação acionária na Norte Energia, considerando o capital de cada sócio, o TCU estima que quase 99% é influenciado pelo Poder Público, federal ou estadual. A começar pelos quase 50% detidos pela Eletrobras; seguidos pelos 20% dos fundos de pensão; 10% de capital do Banco do Brasil Participações via Previ; 9,77% ligados à Cemig; e outros 9% ligados à Vale S.A. 

Um colosso, mas que gera metade do que poderia

Ribeirinho protesta em 2009, contra os danos ambientais da construção da usina: tudo em vão.Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

A usina poderá gerar no máximo 11.233 MW, mas isso somente durante o período de chuva no Rio Xingu, em quatro meses do ano, isso porque usina não tem reservatório, gerando no sistema chamado de fio d'água, para evitar alagamento de áreas de floresta. A geração firme da usina é na verdade de 4.371,79 MW médios, energia suficiente para abastecer cerca de 40% do consumo residencial do país. 

A decisão de fazer uma usina que demandou maquinário e concreto capaz de gerar o dobro do que de fato vai produzir foi muito questionada entre especialistas da área de energia. E mesmo assim, o impacto ambiental da construção não é desprezível, como muitas vezes os defensores das usinas a fio d`água tentam convencer.

São duas as usinas do complexo de Belo Monte, no Rio Xingu, distantes entre si em 40 km e há uma série de diques e canais, que permitem desviar a água de uma usina em direção a outra, alterando o curso do rio. Esses canais e diques também causaram desmatamento na região. O principal canal tem 20 km, em concreto, cortando a mata amazônica. 

Além disso, levar a energia gerada na Amazônia para os centros de consumo é tarefa difícil, arriscada, cara e que gera perdas, o que também é uma crítica à escolha pela construção de Belo Monte. Há quem defenda que seria mais eficiente fazer várias usinas menores, próximo ao centro de consumo, com menores custos, impacto e riscos.

Erro no preço: valor da energia no leilão foi barato demais – e consórcio sabia disso 

A obra já teve seu valor total aumentado em cerca de 70%, de 2010 até agora, consumindo R$ 30 bilhões, em recursos da União (como acionista da Eletrobras e também em aportes ao BNDES) e capital privado. A Norte Energia, empresa responsável pela construção, alega que esse aumento no investimento ocorreu por correções financeiras e aditivos. 

Mas para o TCU houve erro na definição do preço do produto da usina, a eletricidade. Em um leilão de concessão de uma hidrelétrica nova, o que é vendido é a energia gerada, em megawatts/ hora (MWh). Esse valor, multiplicado pela capacidade de geração total da usina, tem de ser suficiente para que ela banque sua construção e se remunere após construída, pelos 30 anos da concessão. O TCU aponta que mesmo antes do leilão já se sabia que os R$ 19 bilhões previsto nos estudos de viabilidade que embasaram as regras do certame era montante menor do que o valor necessário para colocar a obra de pé. 

Estudos apontam que em 2010 as empresas participantes do consórcio já sabiam que precisariam de R$ 26 bilhões. A Chesf teria estimado necessidade de venda da energia a R$ 90,60 o MWh. Mesmo assim, no processo de leilão foi estipulado preço-teto inicial de R$ 83,00/MWh e na disputa, o preço final foi de R$ 77,97 por MWh, 6,02% menor. 

Mesmo a taxa de retorno do investimento aos acionistas estaria erroneamente muito baixa. Segundo o TCU, a Chesf informou que esperava retorno de 8,5% para os acionistas, mas consultoria do setor elétrico aponta que a taxa interna de retorno praticada pelo mercado privado era de 11% ou 12% em projetos do tipo. Os agentes do leilão e o consórcio ganhador permitiram receber uma taxa que não fazia sentido e levaria a empresa a quebrar.

Cálculo apresentado pelo TCU feito por consultoria aponta que o preço final da energia para viabilizar uma taxa interna de retorno de mercado estaria entre R$ 106/MWh a R$ 111/MWh, em valores de maio de 2010, muito acima dos R$ 77,97 que ganharam o leilão.

Estrada de acesso às primeiras obras da usina de Belo Monte, no Pará, em 2011.Lunae Parracho/AFP

Leilão apressado e empreiteiras em ajuda mútua 

O leilão foi realizado em 20 de abril de 2010, ano eleitoral, como destaca o próprio TCU. O processo teria sido “conturbado”, na análise do órgão, com alterações nas composições dos consórcios na última hora, pedido de saída da disputa, e pouco tempo para processo de audiências prévias. O TCU fala em falta de transparência, participação de um grupo restrito de empresas nas diversas fases do empreendimento (em especial na fase de estudos anteriores à licitação da concessão), que pode ter levado a um arranjo de interesses e esvaziamento da concorrência. 

Havia dois consórcios na disputa, sendo que a Eletrobras e suas subsidiárias pertenciam aos dois grupos. No final, as empreiteiras do grupo perdedor acabaram sendo contratadas para prestar serviços aos vencedores.

“No final das contas, ninguém saiu perdendo. Ao contrário, todas elas, projetistas e empreiteiras, garantiram seu espaço, no mínimo uma vez, na lista de pagamentos de Belo Monte, não obstante serem teoricamente concorrentes de mercado. É como que num campeonato entre só duas equipes (consórcios do leilão), que têm o mesmo técnico (Grupo Eletrobras) e que, ao final, independentemente de quem ganhe, repartem o prêmio entre todos os jogadores participantes (projetistas e empreiteiras), antes supostos adversários. Só que o prêmio é substancialmente o dinheiro público da Eletrobras, Chesf e Eletronorte”, afirmou o relator do processo no TCU. 

Uma fatia para cada empreiteira – e tem até para Joesley Batista 

O Consórcio Norte Energia foi o vencedor do leilão, composto pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco(Chesf)/ Eletrobras (49,98%), Construtora Queiroz Galvão S/A (10,02%), Galvão Engenharia S/A (3,75%), Mendes Junior Trading Engenharia (3,75%), Serveng-Civilsan S/A (3,75%), J. Malucelli Construtora de Obras S/A (9,98%), Contern Construções e Comércio Ltda (3,75%), Cetenco Engenharia S/A (5%) e Gaia Energia e Participações (10,02%). 

A Gaia Energia destaca-se nesse grupo: nasceu dentro do Grupo Bertin, originalmente um frigorífico, que foi comprado em 2009 pela JBS, de Joesley Batista, que depois protagonizaria uma polêmica conversa gravada com o presidente Michel Temer em 2017. O grupo J. Malucelli, que se apresentava dentro do consórcio como um sócio técnico, detinha apenas uma pequena usina hidrelétrica, de 32 MW, mas também participou se apresentando como especialista na construção de usinas. 

Depois do leilão ganho, a maioria das construtoras do consórcio ganhador saiu da SPE, criando o Consórcio Construtor Belo Monte, que também contou com a inclusão de outras empreiteiras que não ganharam o leilão, como Andrade Gutierrez, Odebrecht e Camargo Corrêa. 

Esse novo consórcio foi contratado pela Norte Energia para fazer a maior parte da obra da usina, que custaria em torno de R$ 14 bilhões. Levantamento do TCU apontou que neste contrato houve superfaturamento de R$ 3,2 bilhões.

A então presidente Dilma Rousseff visita Belo Monte em cerimônia que marca início da operação comercial da suina, em 2016.Roberto Stuckert Filho/PR

Dificuldade de receber empréstimo por erro – e sócios querem que prejuízo fique com a Eletrobras 

No leilão, foi definido que a Norte Energia teria liberdade para vender 20% da eletricidade gerada ao mercado livre. Porém, a empresa não vendeu contratos ao mercado já em 2010 ou nos anos seguintes, quando o preço da energia no mercado de curto prazo estava alto, chegando a mais de R$ 800/ Mwh.

Em 2016, quando a crise econômica fez os preços da energia despencarem, a Norte Energia se viu com um problema na mão: não teria como provar ao BNDES que teria receitas suficientes para receber mais uma parte do empréstimo que precisava para concluir a obra. Pelo contrato com o BNDES, a energia precisaria ser vendida ao mercado livre a algo em torno de R$ 184/ Mwh a preços de 2016. Naquele ano, os preços no mercado livre de curto prazo chegaram a R$ 50/ Mwh. 

Os acionistas da empresa tentaram exigir que a Eletrobras comprasse essa energia a preços muito superiores que os de mercado na época. O TCU aponta que, segundo a Eletrobras, os prejuízos totais até o final da concessão decorrentes da compra dessa energia em situação desfavorável podem variar de R$ 11 bilhões a R$ 23 bilhões.

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