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Brasil é pródigo em conceder incentivos e benefícios fiscais a determinados segmentos empresariais. | Lucio Bernardo Jr/Câmara dos Deputados
Brasil é pródigo em conceder incentivos e benefícios fiscais a determinados segmentos empresariais.| Foto: Lucio Bernardo Jr/Câmara dos Deputados

Apesar de o governo federal estar no vermelho desde 2014 e de o setor produtivo ser um dos maiores defensores da austeridade fiscal do Estado, o Brasil é pródigo em conceder incentivos e benefícios fiscais a determinados segmentos. Com esses programas, a maioria para o setor produtivo, o país deixou de arrecadar R$ 270,4 bilhões no ano passado, ou 4,1% do Produto Interno Bruto (PIB), e não se sabe a real efetividade de parte dessas iniciativas na economia.

Pelo contrário. É um dinheiro que o governo vem abrindo mão muitas vezes por tempo indeterminado e sem políticas claras de avaliação de resultado, enquanto o déficit fiscal perdura. Um desafio e tanto para o novo presidente, que, se quiser mexer nesse vespeiro, terá de enfrentar um setor empresarial acostumado há anos a “mamar em sua própria tetinha” e uma classe política habituada a usar o mecanismo como “moeda de troca”.

O que são e para que servem as renúncias fiscais

As renúncias fiscais, ou gastos tributários no jargão contábil, são políticas públicas executadas através do sistema tributário. Ou seja, em vez de prever diretamente no Orçamento que vai destinar tantos milhões a determinado setor, o governo abre mão de arrecadar determinados impostos.

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Isso é feito através de incentivos, reduções, isenções ou compensações tributárias. A justificativa para conceder esses benefícios a determinados setores é promover o desenvolvimento social e econômico, como gerar emprego e renda, melhorar as condições de uma região carente e fortalecer empresas locais em setores considerados estratégicos.

Por que as renúncias tributárias viraram um problema

Apesar de ser um mecanismo de política pública utilizada em diversos países, a renúncia fiscal se tornou um problema para o país. Ela cresceu muito nos últimos anos, sem controle e sem saber qual retorno está dando para a economia, enquanto o Brasil precisa de cada vez mais de dinheiro para sair do vermelho.

O país ainda não se recuperou da última recessão e da queda de arrecadação por três anos seguidos (2014-2016) e vem registrando déficit primário bilionário desde 2014. Isso quer dizer que as despesas são maiores que as receitas, isso sem incluir os pagamentos dos juros da dívida pública. Essa situação de desequilíbrio fiscal deve continuar até, pelo menos, 2020, o que compromete a capacidade de investimento da União e ameaça a máquina pública de paralisia.

Por outro lado, o Brasil segue abrindo mão de impostos. Segundo dados da Receita Federal, as renúncias fiscais atingiram o auge em 2015, quando equivaliam a 4,5% do PIB e 22,7% da arrecadação federal. Para efeitos de comparação, em 2006 o valor representava 3,33% do PIB e 15,35% do total arrecadado pelo Fisco em âmbito federal. Os gastos tributários cresceram de maneira mais forte de 2012 a 2014, uma média de 0,3 ponto percentual de PIB por ano. A partir de 2013, alcançaram a casa dos 4% do PIB, taxa que permaneceu até 2017.

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No ano passado, a União deixou de receber R$ 270,4 bilhões ao conceder incentivos e benefícios fiscais, o que equivale a 20,7% de tudo que foi arrecadado pela Receita Federal. Ou seja, o governo abriu mão de R$ 1 para R$ 5 arrecadados. Em 2018, a situação deve ser semelhante, já que é esperada uma renúncia tributária de R$ 283,4 bilhões, equivalente a 3,97% do PIB e 20,7% da arrecadação. O montante é bem superior ao déficit primário projetado para este ano, de R$ 159 bilhões.

Sem meta e sem fiscalização: a realidade da política de incentivo fiscal

Abrir mão de receita até que poderia ser justificável, mesmo em uma situação de crise fiscal, se o governo comprovasse os reais benefícios dos programas de incentivos fiscais. Mas estudos do Tribunal de Contas da União (TCU), do Banco Mundial e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram o cenário oposto.

Auditoria concluída pelo TCU neste ano indica que, do total de renúncias previstas para 2018, quase a metade (44%), ou cerca de R$ 125 bilhões, não têm órgão gestor responsável pela fiscalização. A grande maioria (85%) foi concedida por prazo indeterminado, ou seja, vai continuar válida até que o governo ou Congresso se lembre e resolva mexer nas regras. E 43% se enquadram na categoria mais assustadora: sem órgão gestor e sem prazo de vigência definido.

“Uma vez instituída a renúncia, não há, em regra, avaliação periódica de resultados, de modo que são desconhecidos os benefícios sociais e econômicos decorrentes de cada benefício tributário, o que tem sua vigência mantida a cada ano sem que haja discussão legislativa ou no âmbito do poder executivo sobre a efetividade cada incentivo fiscal”, diz relatório do TCU publicado em junho deste ano.

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Essa falta de avaliação periódica se dá, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, pela falta de uma legislação clara sobre o assunto. “As normas que regem os gastos tributários não contemplam mecanismos adequados de controle da criação e expansão desses gastos, nem criam condições adequadas para a realização de avaliação dos resultados alcançados”, explica Josué Alfredo Pellegrini em nota técnica divulgada em junho deste ano.

O Banco Mundial vai além. Em relatório encomendado pelo próprio governo Temer, o banco diz que a maioria dos programas de apoio às empresas “é ineficaz e beneficia empresas estabelecidas e ineficientes em detrimento da produtividade e da geração de empregos”. Cita como exemplo de programas de baixa efetividade o Simples Nacional, a desoneração da folha de pagamentos, o extinto Inovar-Auto e a Zona Franca de Manaus.

Um estudo recente do Ipea corrobora a tese do Banco Mundial. O instituto, vinculado ao Ministério do Planejamento, avaliou 20 programas federais de subsídios. Em quatro deles (Profota Pesqueira, PSI, Prouca e desoneração da folha), R$ 173 bilhões deixaram de ser arrecadados sem a contrapartida esperada pelo governo.

“Cada vez que eu vou dando isenção através de lei, eu vou perdendo a base arrecadatória. Cada vez que se dá um incentivo desse favorecendo um grupo ou setor econômico, ele se organiza politicamente para manter esse incentivo. Esse incentivo fiscal é um dinheiro que o estado deixa de arrecadar. Se essa política continua, cada vez mais eu vou arrecadando menos e é muito difícil voltar, porque foi tudo concebido por lei e essas leis são mantidas por grupos de interesse”, diz o tributarista Eurico de Santi, do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF).

O especialista ressalta, ainda, que o uso indiscriminado de benefícios torna o sistema tributário ainda mais complexo, além de viciado. “O resultado disso é um sistema que não arrecada em função desse monte de renúncia fiscal (em todos os âmbitos: federal, estadual e municipal), se torna altamente complexo e essa complexidade vai gerando um outro problema, porque o sistema cria diferenças e essas diferenças criam problemas jurídicos de interpretação”, completa Santi.

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Pellegrino destaca outros riscos do uso irrestrito de políticas de incentivo fiscal: possibilidade de elevar a regressividade do sistema tributário; aumento da ineficiência na alocação dos recursos públicos; e maior tributação de grupos que não são privilegiados pelos incentivos para recompor as perdas tidas com a renúncia.

O Banco Mundial estima que até 2% do PIB poderia ser economizado ou realocado com a eliminação de programas ineficazes. Já o IFI do Senado cita que os R$ 270,4 bilhões deixados de arrecadar em 2017 poderiam ser utilizados para despesas públicas como consumo, investimento e amortização da dívida ou para aliviar a carga tributária, beneficiando um conjunto bem maior de contribuintes.

Quando os políticas de incentivo fiscal são válidas

Acabar com todas as políticas de incentivo fiscal não seria uma medida necessariamente adequada. O próprio Banco Mundial reconhece isso ao dizer que os atuais programas falham, mas que isso não significa que “políticas de apoio mais efetivas são impossíveis de serem projetadas”. “Através de um projeto melhorado, parte dos recursos públicos alocados para apoiar empresas pode ser reprogramada para ajudar o setor privado do Brasil a se ajustar e a se tornar mais competitivo”, diz o banco em relatório.

Fernando Facury Scaff, professor Direito Financeiro da Faculdade de Direito (FD) da USP e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro e Scaff, cita exemplos de bons usos de renúncias fiscais. “Todas as políticas de renúncia fiscal envolvendo desenvolvimento regional, como a Zona Franca de Manaus, são necessárias para a redução de desigualdades regionais. Também (são válidas) para atração e desenvolvimento de setores estratégicos para o país. Se bem usadas, são um instrumento forte de desenvolvimento.”

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O setor produtivo defende a necessidade de incentivos fiscais devido ao chamado “custo Brasil”, ou seja, cargas tributárias elevadas em um país com um sistema tributário complexo. O Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) cita que, sem as desonerações, a carga tributário hoje seria próxima de “50% do PIB, inviabilizando o próprio consumo e prejudicando todo o país”.

Qual seria o tamanho ideal e modelo

A questão é que do tamanho que estão, sem controle e fruto de “moeda de troca”, as renúncias fiscais viraram uma bomba-relógio. O secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, é um dos maiores críticos do atual sistema de gastos tributários. Ele defende que a renúncia seja a metade do que é praticada hoje, passando para a casa dos R$ 130 bilhões a R$ 140 bilhões, em torno de 10% da arrecadação federal anual.

Rachid defende, ainda, prazo determinado para os benefícios tributários; medidas compensatórias para a criação de um novo benefício; análise da sustentabilidade do benefício antes da concessão; definição de metas e avaliação periódica dos resultados; definição de órgão gestor; e mudança na sistemática de aprovação do benefício.

Scaff diz que, apesar de mais complexa, a implantação de um sistema de controle dos benefícios tributários é possível em âmbito federal. “Fórmula aqui é você ter os controles de maneira efetiva. É claro que são mais difíceis de serem implementados, mas não são impossíveis. No caso da União, é mais fácil verificar. A coisa fica mais complexa quando você passa pelos estados e no âmbito municipal.”

Presidenciáveis vão enfrentar dificuldades para mexer no sistema...

Apesar de ideal, diminuir as renúncias tributárias e rever os mecanismos de criação e controle dos benefícios não é – e não será – tarefa fácil. Os setores produtivos se acostumaram com os incentivos e usam de todo o poder de barganha para manter a sua “boquinha”. Os políticos também se habituaram a conceder tais regalias, já que representam os interesses de muitos desses setores ou são de regiões beneficiadas por essas políticas.

Um exemplo da dificuldade para barrar essas renúncias é o programa de incentivo ao setor automotivo. O Inova-Autor, que teve pontos condenados pela Organização Mundial do Comércio (OMC), venceu em 2017 e governo vinha postergando a criação de uma nova política para o setor.

O Ministério da Fazenda discordava de forma e da duração de alguns incentivos dados à indústria automobilística, mas acabou cedendo à pressão das empresas e do próprio Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Com isso, lançou em junho deste ano o Rota 2030. O programa saiu com até R$1,5 bilhão em créditos tributários ao ano para serem usados no abatimento de IRPJ e CSLL. A justificativa é estimular a pesquisa e o desenvolvimento e a adoção de novas tecnologias, como veículos híbridos e elétricos. O programa vale até 2030.

…mas será benéfico para as contas públicas

Mas, apesar de difícil, será preciso “desviciar” o setor produtivo e político, pelo bem da saúde financeira do próprio Brasil. E uma ação deverá ser obrigatoriamente tomada pelo próximo presidente, de acordo com a Lei de Diretrizes Orçamentários (LDO) de 2019.

A LDO estabelece que o novo governo terá de encaminhar um cronograma para redução da renúncia fiscal para 2% do PIB em até dez anos. O texto, porém, não estabelece um prazo para o projeto ser enviado, ou seja, poderá ser feito a qualquer momento dentro do mandato. Além disso, a nova equipe econômica terá de estabelecer prazo de vigência para os benefícios tributários e priorizar medidas voltadas à redução de renúncia.

Os presidenciáveis ainda estão falando pouco sobre o tema neste período eleitoral, mas há quem prometa mexer no vespeiro da renúncia fiscal. Ciro Gomes (PDT) fala que vai fazer um pente-fino no sistema, reduzindo em pelo menos 15% as renúncias. Ele, porém, não quer mexer na Zona Franca de Manaus. Marina Silva (Rede) fala em fazer uma revisão completa das renúncias fiscais, em especial do Refis, que deve ser suspenso, na sua visão. O economista de Geraldo Alckmin (PSDB), Pérsio Arida, já defendeu rever as renúncias e acabar com a isenção de IR de papéis como LCA e LCI.

Os demais candidatos que mencionaram ser favoráveis à revisão ou acabar com parte das renúncias são Alvaro Dias (Pode), Guilherme Boulos (PCdoB), João Goulart Filho (PPL) e o economista de Jair Bolsonaro (PSL), Paulo Guedes. Eles, porém, não dão mais detalhes.

João Amoêdo (Novo) diz que não gosta da ideia de dar incentivos fiscais às empresas, pois a conta sempre cai no bolso do cidadão, mas não fala diretamente em cortes, cita apenas que vai fazer uma revisão. Henrique Meirelles (MDB) e o economista do PT, Marcio Pochmann, mencionam apenas discutir o tema. Os outros presidenciáveis ainda não tocaram no assunto.

Em tempos de eleições, é sempre bom lembrar, como disse Rachid em entrevista à Rádio Gaúcha: “Essa (a renúncia fiscal) é uma conta paga por todos os contribuintes. (...) É preciso garantir que isso não se transforme apenas em margem de lucro”.

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