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Sérgio Abranches: “Essa foi uma eleição certamente disruptiva com relação ao padrão eleitoral que começou em 1994”. | Fábio Motta/Estadão Conteúdo
Sérgio Abranches: “Essa foi uma eleição certamente disruptiva com relação ao padrão eleitoral que começou em 1994”.| Foto: Fábio Motta/Estadão Conteúdo

Autor de Presidencialismo de Coalizão, livro recém-lançado pela Companhia das Letras, o cientista político Sérgio Abranches afirma que as eleições de 2018 marcaram o fim do que ele chama da Terceira República (o período iniciado depois da redemocratização com a eleição de Fernando Collor, em 1989).

Para ele, o modelo eleitoral e político construído com financiamento privado e marcado pela polarização PT e PSDB se quebrou e está rumando para algo novo. Esse modelo, diz, pode se fixar em 2022 ou não. “A Itália nunca mais conseguiu consolidar um sistema partidário”, afirma.

Sobre o governo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), Abranches acredita que a tentativa de montar uma coalizão a partir das bancadas temáticas dará errado, mas aposta que, se a agenda econômica de Paulo Guedes for prioritária e caminhar no Congresso, há chances de o governo manter seu apoio popular e político. Acompanhe a entrevista:

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Qual a sua avaliação das eleições neste ano?

Essa foi uma eleição certamente disruptiva com relação ao padrão eleitoral que começou em 1994. E foi disruptiva de várias formas. Ela acentuou um processo de realinhamento partidário que já vinha acontecendo, com perda de cadeiras por parte dos grandes partidos na Câmara e no Senado. Sobretudo na Câmara. Hoje o tamanho médio das bancadas caiu quase pela metade. Isso é sinal de um realinhamento. O sistema partidário está em trânsito e ao longo das próximas eleições deveremos ver a consolidação de um novo padrão de sistema partidário. Ou não. Não é garantido. Você veja que a Itália nunca mais conseguiu consolidar um sistema partidário. Cada eleição você tem uma série de partidos diferentes que ganham. Nunca mais depois do colapso da Democracia Cristã e do Partido Socialista isso se estabilizou. Essa é a primeira ruptura que essa eleição produziu. Em 1994 os cinco maiores partidos controlavam 70% das cadeiras da Câmara e agora controlam apenas 41%, sendo que o PSDB e o DEM estão fora desses cinco. Foram substituídos pelo PSD e PSL. A segunda ruptura é que se rompeu o padrão de polarização entre PT e PSDB. Sempre chegavam os dois ao segundo turno. Por conta disso havia organização do que era governo e do que era oposição. DEM ficava orbitando ao redor do PSDB. Os partidos de esquerda, ao redor do PT. E o MDB e o centro buscavam quem estava no poder, na maioria do tempo. Esse eixo se desorganizou.

Como você analisa a vitória de Jair Bolsonaro, que foi candidato por um partido pequeno e sem estrutura ou tempo de televisão?

Vamos voltar um pouco. O fato de fazer as alianças para acumular recursos, o esquema tradicional de campanha sofreu interferência quando se proibiu o financiamento empresarial de campanha. E aí os partidos saíram em busca de onde pegar o dinheiro que perderam. Criaram o fundo partidário e fizeram a distribuição dos recursos para beneficiar os maiores partidos. Claramente os cinco, sete maiores levaram praticamente tudo. O problema todo em política é que você nunca toma as decisões podendo prever com certeza o efeito daquilo. Há sempre desdobramentos inesperados. Diante do fato de que não haveria recursos financeiros em abundância, os candidatos alijados da partilha buscaram outros meios. E, nesse sentido, as redes sociais tiveram um efeito enorme. Muito deputado se elegeu fazendo campanha pelas mídias. Isso explica em parte a vitória do Bolsonaro, um candidato sem partido, sem fundo partidário e sem tempo de televisão.

Isso atingiu também as eleições no Legislativo...

Exatamente. E por que aquele esquema tradicional, da planilha de Excel do deputado, furou? Porque essa planilha funciona com os recursos tradicionais. Ela implica em um tipo de barganha, em troca de ativos que depende dos recursos tradicionais. Despeja-se dinheiro para os cabos eleitorais locais, como vereadores e líderes comunitários. Se você faz campanha sem dinheiro, você não mira na planilha, não mira nesses intermediários, você mira o eleitor diretamente. E mira por onde? Mira pelo celular dele. Whatsapp, Twitter, Facebook, Instagram, Sms. Isso explica essa mudança. Mas repare que há coisas que não mudaram nesta eleição. O que não mudou? O fato de que o regime continua sendo presidencialista. O presidente eleito continua tendo poder de agenda. O Congresso está discutindo o que o Bolsonaro fala. Teve aquela questão do aumento do Judiciário, que é uma coisa que estava dada. Mas quem usa isso contra um presidente eleito? Um presidente do Senado que não foi reeleito. Aquilo é uma bravata de fim de carreira. O que mais? Continua sendo sistema multipartidário. E isso se acentuou. Ainda mais fragmentado. O Bolsonaro vai precisa fazer uma coalização. Ele pode chamar do que ele quiser. Mas ele vai precisar negociar apoio dos partidos para sua plataforma.

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Você fala muito no seu livro da importância do partido-pivô da coalização. O partido-pivô da coalizão do Bolsonaro é o dele, o PSL, que é formado por muitos congressistas inexperientes. Como isso influencia na coalização dele?

É um partido com pouca gente com quilômetro rodado. O Congresso é uma instituição que não é fácil de lidar. Tem suas complexidades. Tem o regimento, que são as regras escritas, mas tem as regras informais, as regras sub-reptícias. Tem uma curva de aprendizado. Onde estão os gabinetes importantes? Que hora que faz sentido ir pro cafezinho? Que horas que você cruza o corredor entre Senado e Câmara? Essas coisas todas não estão escritas. Você precisa aprender os caminhos. Quem acompanha a Câmara e o Senado na televisão percebe algumas coisas. Os parlamentes ativos, que ficam negociando, fazendo questão de ordem, tentando obstruir ou dar andamento para as votações, ficam em pé, em torno de um microfone, que fica embaixo da mesa da presidência. Para chegar ali tem de ter tarimba, tem de ter certa liderança, tem de ter certa capacidade de interlocução. É um jogo complicado. E o partido pivô vai ser muito novato. O fato de o partido pivô da coalizão ser o do próprio presidente tem uma vantagem, que é a facilidade, em tese, para se dialogar. Lembremos que o partido pivô da Dilma era o MDB, com quem ela vivia às turras. Mas tem essa dificuldade da inexperiência.

Como você vê o Bolsonaro organizando a sua coalizão?

Eu acho que ele vai fazer e está fazendo uma tentativa que provavelmente não vai dar certo, mas que é um teste interessante. Tem uma literatura importante sobre presidencialismo de coalizão que diz o seguinte: a governabilidade depende da distribuição proporcional dos ministérios aos partidos. Você precisa pesar o número e a importâncias dos ministérios de acordo com o tamanho de cada partido que compõe sua coalização. O que nós vínhamos observando era uma regularidade nesse sentido. As formações ministeriais mais proporcionais ao peso da coalização no Congresso foram as que deram melhores resultados para os respectivos presidentes. Agora o Bolsonaro diz que não vai fazer essa conta, sequer de forma desproporcional. Ele diz simplesmente que não vai fazer. O que ele vai fazer? Ao invés de partidos ele vai privilegiar as bancadas. Então ele vai indicar alguém da bancada evangélica, botou alguém da bancada ruralista, e por aí vai. Então ele está fazendo coalizão sim. Com as bancadas temáticas. Mas qual o problema com as bancadas temáticas? O problema das bancadas temáticas é que não há justaposição das agendas. A bancada evangélica não concorda com algumas questões da bancada da bala, que não fecha em tudo com a bancada ruralista e por aí vai. Quando você sai do tema da bancada você não tem garantia nenhuma de que vai manter apoio dos membros da bancada. Por isso é mais fácil fazer negociação com os partidos. Acho que ele vai tentar com as bancadas e vai ver que não vai funcionar. Tem outras coisas. Pela primeira vez também, desde o Fernando Henrique Cardoso, o presidente da República terá uma oposição estruturada e combativa. O PSDB e o Democratas são a oposição que qualquer presidente da República gostaria de ter. Soft, não cria muito caso.

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Mas fizeram o impeachment da Dilma.

Quem fez foi a própria coalizão. Foi a centro-direita da coalizão da Dilma que comandou. O fato é que agora você vai ter uma oposição combativa. Isso cria dinâmica que define limites da coalizão. Como a maior bancada da oposição será a do PT, teremos ainda um sentimento antipetista forte. Esse sentimento levará a bancada a apoiar o governo. Agora, a coalização será com MDB, centrão, esses aí. Ele pode não formalizar. Mas vai ser. Será um governo de coalizão, mas pode ser um governo de coalizão diferente. O ciclo que eu trato no livro foi interrompido com essas eleições. É o começo de um ciclo. Não dá pra saber exatamente o que vai vir no lugar. No início da Terceira República teve o Collor e ele não definiu os rumos. Quem definiu os rumos foi o governo Itamar Franco com Plano Real e depois a eleição do Fernando Henrique. Esse novo ciclo começa com Bolsonaro, mas nós não sabemos como irá se definir. Temos uma data marcada para avaliar melhor esse realinhamento nas eleições de 2022. Porque nela o fim das coligações proporcionais vai valer e aí as eleições mudam completamente de natureza. E com isso teremos nova aceleração do processo de realinhamento partidário com as eleições sem coligações. Essas eleições podem produzir consolidação do quadro partidário mais compacto? O que eu acho é que vamos conseguir reduzir mais significativamente a fragmentação partidária, o multipartidarismo. Mas até um limite. Na verdade, o que o multipartidarismo expressa, e é o que eu tentei mostrar no livro, é que isso começa na Primeira República. Desde lá você tem sistemas partidários estaduais que são diferenciados. A soma dos poderes regionais garante sete, oito partidos no Congresso, só por conta dessa variação nos estados. Isso é um dado estrutural da política brasileira.

Não temos tendência ao bipartidarismo?

Temos tendência estrutural ao multipartidarismo. Mas esse ciclo provavelmente terá um novo desenho de partido. Provavelmente caindo de 30 para 10, 12.

O quanto você acha que uma retomada da atividade econômica pode beneficiar a formação da coalização para o governo Bolsonaro?

A agenda econômica, ao que parece, é a menos problemática. Ao longo dos últimos anos foram se formando convergências em alguns pontos. Pode haver divergência sobre como fazer e a intensidade de como fazer, mas me parece haver consenso de que é preciso fazer ajuste fiscal, de que é preciso uma redução da máquina pública com as limitações tributárias, há consenso sobre ajuste da Previdência, sobre reforma tributária e descentralização dessa carga tributária. Acho que há consensos no geral sobre isso. Em política a parte mais decisiva é criar esse entendimento. Porque com o entendimento você passa a discutir o tamanho e a velocidade de como fazer isso. Parece que essa agenda é a que gera menos conflito que as outras.

E se essa agenda caminhar pode criar dividendos políticos para o presidente?

O movimento da economia hoje é dominado pelo mercado financeiro e ele tende a reagir ao início da implementação dessa agenda positivamente. Deve haver mais investimentos e alguma recuperação da economia com aumento na sensação de bem-estar das pessoas. E tem um dado histórico que está no livro. Do Collor a Dilma, todos os presidentes nesse período tiveram muito sucesso na implementação da sua agenda nos oito primeiros meses de governo. A agenda que eles apresentaram como crucial foi encampada. Mas qual será a agenda inicial do Bolsonaro? Se ele entrar com agenda que é prioritariamente econômica, com alguns outros itens, eu acho que ele tem chance de aprovar muita coisa na lua de mel. Se ele der mais ênfase na parte de comportamento, acho que irá enfrentar problemas mais rapidamente. Não só com o Congresso, mas acho que pode enfrentar resistência no Supremo. Então vamos ver qual combinação que ele vai fazer.

E qual análise que você faz até agora?

A impressão que se tem é que vai entrar com pauta de enxugamento da máquina pública e com algumas medidas do Sergio Moro no combate à corrupção. Ao que parece, essa será a agenda inicial a ser enviada para o Congresso. O que eu acho é que essa aposta nas bancadas temáticas vai produzir as primeiras fissuras. Por outro lado, o que esses 30 anos de regime democrático mostraram é que o sistema de freios e contrapesos do Executivo reduzem muito a capacidade de aprovação de medidas extremas. Então eu acho que pode ser que muito do que se falou em relação a certas pautas morais e de comportamento não prospere. E se prosperar encontrará barreiras. Vamos ver como isso vai se acomodar. Ele demonstra uma mentalidade autoritária por um lado, mas, por outro, dá mostras de que entende o jogo parlamentar em que esteve envolvido por vários mandatos.

Livro de Sérgio Abranches é manual de instruções da relação Executivo/Legislativo

O livro Presidencialismo de Coalizão, do cientista político Sérgio Abranches, serve como uma espécie de manual de instruções para que se compreenda a relação entre o Executivo e o Legislativo brasileiro.

Ao examinar o vínculo entre os poderes, da Primeira República (1889 a 1930) até o impeachment de Dilma Rousseff, Abranches faz constatações que transpassam diferentes períodos históricos e políticos. A primeira, por óbvio, indica que dificilmente um presidente elege maioria no Legislativo. O que ocorre é que essa maioria tem de ser formada, a partir de uma coalizão de partidos. Nesse sentido, quanto mais forte e mais próximo do presidente o partido-pivô da coalização, melhor. Do mesmo modo, quanto mais equilibrada politicamente a coalização, mais fácil será a vida do presidente na relação com o Congresso. A regra valeu nos arranjos políticos estaduais da Primeira República, com a política dos governadores, até os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, que conseguiram equacionar com êxito o tamanho e a representatividade de cada partido da coalizão em seus respectivos governos.

Nesse sentido, alerta Abranches, os insucessos dos presidentes brasileiros sempre passaram por relações conflituosas com o Legislativo. Feridas abertas com o Legislativo deram no golpe de Getúlio Vargas e das Forças Armadas em 1964. Do mesmo modo, inviabilizaram os governos do próprio Getúlio, impediram a posse de Café Filho, derrubaram Fernando Collor e Dima Rousseff.

O grande termômetro dessa relação com o Congresso é a popularidade do presidente. É a regra de ouro descrita por Abranches: popularidade atrai, impopularidade repele. E popularidade presidencial, no geral, cai quando há piora da atividade econômica e insatisfação popular baseada na percepção da corrupção. Quando as duas caminham juntas fica mais fácil perder o controle da coalização. A perda do controle da coalizão pode ser revertida ou ao menos equacionada até o final do mandato. Quando isso não ocorre, mandatos são abreviados por golpes ou processos de impeachment.

A literatura da coalizão traz também boas notícias para os presidentes. A história demonstra que os presidentes eleitos conseguem, pelo respaldo das urnas, implementarem sem dificuldade sua agenda legislativa nos primeiros meses de governo. Seja ela qual for, como diz Abranches: “neoliberais, reformistas, redistributivas ou modernizantes”. O acerto inicial desta agenda e suas consequências influi diretamente na continuidade do governo e no equilíbrio da coalizão.

Serviço: Presidencialismo de Coalizão: Raízes e evolução do modelo político brasileiro, de Sérgio Abranches. Companhia das Letras, 480 páginas, R$ 55,90.

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