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 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Daqui a alguns anos, quando historiadores olharem para trás e se debruçarem sobre a derrocada do petismo e a ascensão de Jair Bolsonaro, talvez se faça justiça a um personagem desse período tão conturbado da política brasileira: o general Eduardo Villas Bôas, de 67 anos.

O comandante do Exército deixou o posto na sexta-feira (11), após quatro anos sendo a voz, olhos e ouvidos de uma força que reúne cerca de 220 mil militares. Entrou para história, literalmente, sem nenhum exagero. Há quem diga que fará falta pelas palavras de moderação e bom senso durante a recente crise política e econômica do Brasil.

Durante sua gestão, Villas Bôas demonstrou ser antes de tudo um legalista, defensor número um da Constituição Federal e das leis que garantem a democracia no país. Mostrou como se deve agir até mesmo ao Supremo Tribunal Federal (STF), que vez ou outra dá seus tropeços ao tentar interpretar a carta magna. 

Cabeça e ao mesmo tempo coração, o general gaúcho de quatro estrelas não se deixou levar por tentações autoritárias vindas da caserna e de meios políticos – de esquerda e de direita, é bom que se diga. 

Em diversas aparições públicas, mesmo nos momentos mais graves da convulsão política que arrastou o país para a lama, Villas Bôas sempre refutou qualquer hipótese de intervenção das Forças Armadas que rompesse com a ordem democrática – e falava isso claramente, com todas as letras. Uso da força? Só em defesa da Constituição.

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Tinha o “corpo fechado” para qualquer sanha golpista num país que se acostumou ao longo da história a ver homens de coturno virando a mesa e interferindo de forma violenta nos rumos da nação. Ele não, jamais sujaria sua farda.

Ditadura deixou aprendizado

Com mais de 50 anos de carreira, Villas Bôas vivenciou todo o período que se convencionou chamar de ditadura militar (1964-1985). As feridas abertas pela desgastante luta contra um inimigo doméstico, com emprego de métodos de tortura e violação de garantias individuais, nunca cicatrizaram. 

As Forças Armadas jamais se conformaram com o julgamento moral da opinião pública que os transformou em vilões. Logo eles que, em 1964, atenderam aos anseios da sociedade por uma resposta militar ao suposto “perigo comunista” que ameaçava a democracia brasileira.

Os mesmos pedidos de intervenção que ecoaram pelas ruas das grandes capitais brasileiras de 2015 para cá. Mas o trauma deixado por 21 anos no poder permanecia vivo. Villas Bôas sempre soube que a solução para a crise não viria pelas armas e sim com uma vigilância profunda sobre as instituições e seus personagens. Essa era sua doutrina: “devemos ser protagonistas silenciosos”, disse o general em palestra, em março de 2017. E assim foi.

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Sem vaidade e de cadeira de rodas 

Portador de uma doença degenerativa no neurônio motor, que afetou sua capacidade de caminhar e até mesmo de falar, com dificuldades de respiração, Villas Bôas se manteve impávido no cargo até o último dia. 

Os últimos meses e anos foram particularmente mais difíceis. Ele se viu obrigado a usar cadeira de rodas e um respirador auxiliar, equipamentos visíveis em cerimônias públicas. 

Villas Bôas de cadeira de rodas e respirador: doença degenerativa.Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Como era possível um comandante de tropas deixar transparecer tamanha fragilidade? Villas Bôas nunca ligou para vaidades. Como bom militar que é, pensava apenas em cumprir com o seu dever.

Nem por um momento cogitou desistir da última missão. “O que está em pé e muito vivo hoje é minha mente, além dos princípios e valores aprendidos no Exército desde a minha adolescência”, disse em entrevista à Folha de São Paulo, em janeiro de 2018. 

No centro do poder 

Nascido em Cruz Alta (RS), Eduardo Dias da Costa Villas Bôas entrou para o Exército em 1967 e foi promovido a general quatro estrelas – o mais alto posto da hierarquia militar – em julho de 2011. 

Quatro anos depois, pelo critério de antiguidade e pelas mãos da ex-presidente Dilma Rousseff, assumiu o comando do Exército Brasileiro – um cargo prestigioso, mas que nos últimos 30 anos havia perdido relevância diante da opinião pública. 

A política no Brasil não ia nada bem. As jornadas de junho de 2013, quando milhares de brasileiros protestaram contra governos, políticos e partidos, abalando o centro do poder em Brasília, e a Operação Lava Jato, que a partir de 2014 expôs a corrupção brasileira de um modo nunca antes visto, já estava em curso. Havia uma agitação nas ruas.

Mas essas preocupações passavam ao largo dos objetivos de Villas Bôas no comando do Exército. Cuidar das fronteiras, equipar as Forças Armadas e atuar, quando necessário, no combate à violência urbana eram as prioridades elencadas pelo militar em entrevista à Rádio Gaúcha, em 2015. Mal sabia ele o que estava por vir. 

A conturbada reeleição de Dilma, o processo de impeachment, a prisão de grandes políticos e empresários, e a condução coercitiva do ex-presidente Lula se seguiram e alimentaram um sentimento de indignação do povo brasileiro contra a corrupção que pedia, em protestos de rua, pela volta do regime militar.

Um apaziguador nato

No auge da crise que culminou no afastamento de Dilma, em 2016, coube a Villas Bôas o papel de apaziguar os ânimos daqueles que defendiam uma intervenção das Forças Armadas, a exemplo do que ocorreu em 1964. O general foi firme, disse que o Exército defendia “a manutenção da democracia, a preservação da Constituição e a proteção das instituições”. “Desde 1985 não somos responsáveis por turbulência na vida nacional e assim vai prosseguir. O emprego das nossas forças será sempre por iniciativa de um dos poderes [Executivo, Legislativo e Judiciário]”, afirmou, na ocasião.

Já no governo Michel Temer, os escândalos de corrupção entre auxiliares próximos do presidente, como o caso JBS, e tentativas de desmontar a Lava Jato, causavam desconforto na caserna. De tal modo que o até então desconhecido general Hamilton Mourão, auxiliar e amigo de Villas Bôas, tornou pública a insatisfação, em setembro de 2017. 

“Ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso”, afirmou Mourão, durante palestra em uma loja maçônica. “Os poderes terão que buscar uma solução, se não conseguirem, chegará a hora em que teremos que impor uma solução e essa imposição não será fácil, ela trará problemas”, prosseguiu o atual vice-presidente da República.

As declarações repercutiram mal entre os políticos e o comandante do Exército se viu obrigado a punir Mourão, afastando-o do cargo que exercia. Mas não sem antes contemporizar as declarações do colega de farda. Cinco meses depois, Mourão entraria para a reserva, numa cerimônia prestigiada por Villas Bôas.

Paciência tem limite

A paciência do general com a crise chegava a seu limite. Em abril de 2018, na véspera do julgamento de um habeas corpus preventivo no Supremo Tribunal Federal (STF) que poderia livrar o ex-presidente Lula da cadeia, o comandante do Exército fez postagens no Twitter que causaram rebuliço.

“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, indagou Villas Bôas. “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”, completou.

Os tuítes foram interpretados como uma tentativa de intimidar os ministros do STF, para que não revissem o entendimento de que condenados em segunda instância judiciais devem começar a cumprir a pena imediatamente, caso de Lula, condenado duas vezes no caso do tríplex do Guarujá.

Àquela altura, mandar Lula para cadeia significava tirá-lo das eleições e atender ao anseio de boa parte dos brasileiros, que viam no ex-presidente petista a encarnação da corrupção na política.

Ameaçado ou não, o STF decidiu no dia seguinte, por 6 votos a 5, manter a prisão em segunda instância e recusar o habeas corpus, com as consequências que todos conhecemos. 

Dois meses atrás, em entrevista à Folha de S. Paulo após a vitória de Jair Bolsonaro nas urnas, Villas Bôas deu a entender que pretendia “intervir” caso o Supremo livra-se Lula da cadeia. “Temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo”, disse. “É melhor prevenir do que remediar”, resumiu. 

Gratidão no adeus ao general

Entre os vários elogios dispensados aos militares na posse do novo ministro da Defesa, no dia 2 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro dedicou uma fala especial ao general Villas Bôas.

Disse que o comandante do Exército era “um dos responsáveis” por ele ter chegado à Presidência da República, citando uma misteriosa conversa que ambos tiveram. “O que já conversamos fica entre nós”, disse Bolsonaro, demonstrando uma eterna gratidão que marejou os olhos do velho oficial. 

Oficiais, questionados sobre o real significado da fala enigmática de Bolsonaro, apenas disseram que ele queria se dizer agradecido pelo papel de Villas Bôas, recusando a ideia de tutela militar sobre o novo governo.

Com coragem, disciplina e muita fisioterapia, o general se manteve firme no comando do Exército até a despedida do posto. Passa o bastão para o colega de farda Edson Leal Pujol, de 63 anos. Militares presentes na posse do novo ministro da Defesa fizeram fila para cumprimentá-lo – um reconhecimento pelos incalculáveis serviços prestados à democracia brasileira. 

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