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| Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo

Foi uma jogada que exigiu paciência, quase uma troca de bola com Novak Djokovic – uma espécie de Messi sérvio do tênis. Mais de 14 horas na Câmara, em abril, outras sete horas no Senado, na semana passada, até finalmente a bola da reforma trabalhista tocar duas vezes o campo adversário e ser aprovada. Isso sem contar os meses de infindáveis discussões, protestos e muita pressão.

“Meu estilo é totalmente Djokovic. Ele é pé no chão, faz um jogo com mais cabeça e menos força. Não é pancada. Minha estratégia muitas vezes é desmontar o adversário, devolver tudo. Uma hora o cara pensa: ‘pô, não tem mais o que fazer’. Ganho o jogo no cansaço”, diz o juiz do trabalho Marlos Augusto Melek, uma das mentes incumbidas de formatar a nova lei. Por ironia, ele falava, de fato, sobre o esporte pelo qual é apaixonado, não sobre o tortuoso caminho até a aprovação da nova legislação. Mas, que poderia ser, ah poderia...

Se a reforma trabalhista conseguiu sua vitória definitiva, aprovada por 50 dos 77 senadores votantes e sancionada com alterações, na quinta-feira (13), pelo presidente Michel Temer, muito se deve à dedicação do juiz, nascido em Itajaí (SC), mas que no primeiro ano de vida mudou-se para Curitiba. Marlos Melek, 42 anos, fez parte da pequena equipe de cinco pessoas que redigiu a legislação – a comissão de redação.

Um trabalho difícil, que lhe custou alguns quilos, muitos desafetos e meses internado em Brasília, esmiuçando cada emenda colada ao imenso puxadinho que se transformou a Consolidação da Lei Trabalhista, a CLT, que rege as relações patrão-empregado no Brasil. “Não é fácil mudar. E estamos mudando uma lei de 1940 que precisava ser modernizada”, diz. “Estamos na era dos smartphones e a legislação fala em datilografia”.

Conhecimento de causa

Melek conhece bem as falhas da CLT. Há 12 anos é um dos juízes que enfrentam diariamente o batalhão de ações trabalhistas que lotam os tribunais do país – são 11 mil todos os dias. Uma luta cotidiana travada entre patrões e empregados e, segundo ele, estimuladas pela lei. Não precisava ser assim. “Hoje, se você não quer mais ficar no seu emprego, tem que pedir demissão. Mas às vezes você está nesse trabalho há anos e não quer perder tudo. E não é justo que perca saque do FGTS, aviso prévio, multa rescisória. As opções são: ou entrega a demissão e perde tudo ou o empregador manda embora e tem que pagar tudo. Não tem um meio-termo”, diz, sobre um dos pontos que serão alterados – a nova redação permite que o funcionário receba 80% do saldo do FGTS mesmo pedindo o fim do contrato de trabalho.

Hoje, Melek atua como mediador nesse conflito diário, mas já esteve nas duas pontas da gangorra. “Comecei a trabalhar aos 14 anos, numa tornearia mecânica no Boqueirão. Depois, trabalhei em veículos de comunicação. Pegava ônibus, tive carteira assinada por muitos anos. Só então abri uma empresa de cosméticos (a Ramelk), que começou pequena, mas teve franquias e filiais no Brasil todo. Aí passei a ter o prazer de assinar milhares de carteiras de trabalho”, relembra.

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Ali, Melek percebeu o peso das leis trabalhistas na principal força geradora dos empregos no Brasil – as micro e pequenas empresas respondem por 60% a 70% dos empregos no país. “Apesar disso, não tive trauma nem de um lado e nem do outro. Nunca fui seriamente lesado em nenhum dos lugares em que trabalhei e, como empregador, se recebi cinco ações trabalhistas foi muito”, diz. O problema, na sua concepção, é que não basta boa vontade. É preciso se desdobrar para achar o caminho no labirinto legislativo. “A primeira ação que tive foi de uma empregada que pedia na Justiça o pagamento de repouso semanal remunerado sobre as comissões. Eu, como empresário jovem, nem sabia que teria que pagar isso. Vendo que era assim mesmo, reconheci e paguei”, conta.

Sonho de ser juiz falou mais alto

A aventura de empreendedor durou até perto dos 30 anos, quando vendeu a empresa a um grupo grande e sólido. O sonho de ser juiz trabalhista falou mais alto. Era uma forma de ajudar o país com mais rapidez, ele aponta. “Dois anos depois [de vender a empresa] eu consegui a aprovação em um concurso público em Brasília. Havia milhares de candidatos e apenas duas vagas”, diz. Sua experiência como empresário, no entanto, serviu para pavimentar seu caminho até a reforma trabalhista brasileira.

Melek escreveu um livro chamado “Trabalhista! E Agora?”, em que desvenda o intrincado universo das leis trabalhista do país. Foi bem recebido de imediato. “Era para os leigos, não tem juridiquês. Normalmente o microempresário entra na sala de audiências e fala ‘não devo nada, está tudo assinado’, mas sai de lá devendo R$ 15 mil. E por quê? Porque ele cai em pequenas armadilhas da legislação. Eu somei os 40 pontos em que as empresas mais são condenadas. E são detalhes, bobagens”.

O título encantou os engravatados que percorriam as prateleiras de Administração & Negócios das livrarias em busca de socorro – foi o quinto mais vendido do gênero em 2016. O sucesso chamou a atenção da Casa Civil, que já articulava a reforma como uma forma de engrenar a economia do governo Temer. “Eles queriam sugestões e eu tinha várias. Assim me inseri neste contexto de ajudar a escrever algumas leis trabalhistas brasileiras [um pacote apresentado no fim de 2016]. Aí mandaram o projeto para a Câmara Federal. Era pequeno, com cinco coisas. Nesse meio de tempo, acabei escrevendo mais de 90 sugestões de melhoria na lei. O deputado federal Rogério Marinho [PSDB-RN, relator da reforma na Câmara], do qual eu nunca tinha ouvido falar, me chamou para fazer parte desta equipe que redigiria a mudança na legislação. Foi uma surpresa e uma alegria. Eu estava cheio de ideias”, relembra.

Marlos era o cara certo no lugar exato.

Desenvoltura e clareza

Em junho, quando Melek entrou no estúdio da Gazeta do Povo para gravar uma série de vídeos explicando os pontos da reforma trabalhista (assista aos vídeos), não foi difícil entender porque ele era uma escolha óbvia para estar à frente da mudança. Ex-repórter de rádio e apresentador de tevê, o juiz fala com desenvoltura invejável e uma clareza que em nada lembra o linguajar erudito-pomposo idolatrado pelo Judiciário. Não precisou repetir um dos oito takes gravados. Provavelmente, poupou um belo trabalho do editor de vídeos do jornal.

A convicção e a desenvoltura do juiz foram fundamentais para desmitificar uma série de pontos na proposição, aqueles apontados como “sequestro de direitos” por seus opositores. “Mostre onde teve perda de direitos?”, é a resposta dele.

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A interpretação errada, para ele, vem de dois fatores. “O primeiro é que o projeto é muito extenso; teve muita gente que não leu. O segundo é que a oposição ligada a sindicatos e federações bateu no projeto porque ele acaba com a contribuição sindical obrigatória. Eu tenho um livrinho da CUT [Central Única dos Trabalhadores] que dizia que a reforma ia fazer os trabalhadores terem jornada de 12 horas por dia. Isso não é verdade. Falaram que ia acabar com as férias, que ia acabar com 13º salário. Não acabou coisa nenhuma”, diz.

“O que precisamos é extrair do debate a ideologia e a emoção e ficarmos num plano de racionalidade. E se nós conseguirmos fazer isso, não só na reforma trabalhista, mas em todos os problemas brasileiros, a sociedade só tem a ganhar. Nunca vamos conseguir dialogar nem com a extrema direita e nem com a extrema esquerda”.

Claro, as pressões vieram de todos os lados. Das centrais sindicais era de se esperar. Do setor produtivo, ok. Mas, dentro de casa, foi mais difícil lidar. “É delicado falar de coisas que aconteceram no Poder Judiciário, mas estas pressões foram significativas, a ponto de eu ser proibido de dar entrevistas. Mas eu reconheço que há uma hierarquia e tenho que atender e respeitar estas determinações. Concluo que todos querem o melhor para o país, embora com pensamentos diferentes”, pondera.

Tenista, baterista e piloto de ultraleve

A votação no senado foi o ponto do jogo, o matchpoint. Aos poucos, Melek parece retomar a rotina que lhe foi roubada pelos quatro meses de trabalho intenso. As três refeições por dia voltaram – “antes, quando tomava café não almoçava, quando almoçava não jantava”. Sua bateria voltou a fazer as levadas de “With or Without You” e outros sucessos do U2 na casa em Santa Felicidade. A raquete de tênis está preparada para disputar um melhor posicionamento no ranking da Federação Paranaense. E, mais importante, o convívio com os pais – um dono de indústria química e uma dona de casa – e com o filho adolescente, o Alessandro, foi restabelecido.

E é pilotando o pequeno RV-9, um ultraleve de pouco menos de meia tonelada, que pai e filho mais se conectam.

A aviação é assunto sério para os Melek. É a profissão que o filho quer levar. E um estilo de vida que o pai não quer abandonar. “O que fizemos com a aviação no Brasil? Nós destruímos a Pan-Air, Transbrasil, Varig, Variglog, Nordeste, Webjet e VASP. Acabamos com todas em um país de dimensões continentais”, diz. “Precisamos de mais aviadores no Brasil”.

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Sua conta parece fechar. “Um avião pequeno custa a partir de R$ 100 mil, é mais barato que muitos carros. Isso é parcelado a perder de vista, igual um veículo. De Curitiba para Maringá, leva-se em uma hora e meia e se gasta 30 litros de combustível. A gasolina de aviação está R$ 5,60. Ou seja, são cerca de R$ 170 de gasolina, mais R$ 50 do plano de voo e só R$ 5,75 de estadia no hangar. Aí você fala: ‘ah, mas a manutenção é cara’. A manutenção do avião é feita somente a cada 100 horas de voo e custa R$ 600. Viajar assim é mais barato que de carro”, calcula.

Para ele foi além, foi mais prático. Dessa forma, Melek conseguiu percorrer o Brasil e fazer mais de 80 palestras nos últimos meses. A mais recente delas, aliás, foi em Cuiabá (Mato Grosso), na mesma terça-feira em que o projeto de lei foi ao plenário do Senado. E foi falando para a plateia que o juiz soube de sua vitória. Comemorou, mas com uma discrição, novamente, à la Djoko: sem confetes ou champagne. Ainda há trabalho a fazer, afinal. O juiz foi nomeado membro de um grupo que implementará a mudança na lei trabalhista nos próximos 180 dias.

“A história nos julgará. Dentro de um tempo vamos ver se isso funcionou ou não funcionou. Se nós queremos saber se isso vai gerar mais empregos ou não, não temos que perguntar aos burocratas de Brasília, e não estou me referindo a ninguém, mas temos que perguntar a quem tem a caneta na mão e assina as carteiras de trabalho”, diz.

Pelo menos um ponto parece certo: quando chegar a sua sala, o juiz encontrará uma mesa bem menos apinhada de processos trabalhistas.

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