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| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A partir das 8 horas da próxima segunda-feira (18), todos os olhos da nação estarão voltados para a sede da Procuradoria-Geral da República (PGR), em Brasília, onde Raquel Dodge tomará posse como procuradora-geral. O cargo ganhou relevância na medida em que a Operação Lava Jato começou a desvendar uma rede de corrupção que envolve frequentadores da Praça dos Três Poderes – e é justamente essa a grande preocupação atual dos brasileiros: como ela vai lidar com essa grande investigação.

A expectativa subiu a níveis ainda mais altos com a situação constrangedora vivida pelo procurador-geral Rodrigo Janot, que se viu obrigado a voltar atrás no acordo de delação premiada da JBS que envolve diretamente o presidente Michel Temer em atos de improbidade. O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a legitimidade de Janot para denunciar o peemedebista, mas ficou para semana que vem o julgamento sobre a validade ou não das provas produzidas pela JBS, uma vez que ficou provado que o empresário Joesley Batista e o executivo da J&F Ricardo Saud omitiram fatos na delação.

Foi na gestão de Janot que a figura de procurador-geral ganhou ares de protagonista de novela. Ao longo de 2015, com a Lava Jato ampliando o raio de ação e atingindo empreiteiros e políticos de alto escalão, como Eduardo Cunha e Fernando Collor, o comandante da PGR foi bombardeado por críticas. Foi reconduzido ao cargo, mas agora, ao final do mandato, está sem apoio no Congresso, que criou a CPI da JBS com a intenção de atingi-lo.

Componente político ocupará menos espaço?

Os parlamentares se animam com a postura mais reservada de Raquel Dodge. É quase um consenso que, com ela, o componente político ocupará menos espaço do que com o antecessor. O mundo político espera que, na gestão de Dodge, as prisões preventivas diminuam, o vazamento de delações cesse e o controle na coleta de provas aumente. Também é grande a expectativa de ela apoiar uma lei de abuso de autoridade. Isso levaria a uma diminuição no ritmo da Lava Jato durante o mandato de dois anos – com possibilidade de uma recondução.

Por outro lado, apoiadores de Dodge apostam no bom andamento da operação, com rigor e responsabilização dos envolvidos. Descrita como meticulosa, ambiciosa e controladora, ela não se envolveria em uma derrapada como a que ocorreu com a delação da JBS. Ela vai se expor menos que Janot, mas isso não significa, segundo eles, que vá inibir as operações. Nos últimos dias, Dodge anunciou o nome do procurador José Alfredo de Paula Silva para coordenar a Lava Jato em Brasília. Ele atuou no mensalão e na Operação Zelotes, que investiga pagamento de propina a fiscais da Receita em troca de perdão de dívidas.

Alguns acontecimentos envolvendo Temer e a nova procuradora, porém, deixaram em alerta parcelas da sociedade que apoiam a Lava Jato. Dodge sempre foi vista como opositora a Janot. Na eleição de lista tríplice feita pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), ela ficou em segundo lugar, com 587 votos. O primeiro colocado foi Nicolao Dino (621), aliado de Janot.

Ao preterir o mais votado na eleição, Temer indicou a políticos de todos os feitios que ganhariam com Dodge no comando da PGR. A sabatina e votação no Senado para referendá-la foram marcadas com rapidez, e a aprovação foi expressiva. Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), ela foi aprovada com unanimidade, algo inédito; no plenário, teve 74 votos a favor, um contra e uma abstenção.

Encontro fora da agenda com Temer

Outra situação envolve o horário da posse, bem cedo, no dia 18: isso foi negociado em uma visita de Dodge ao Palácio do Jaburu às 22 horas, fora da agenda oficial. O encontro tarde da noite despertou desconfiança, o que foi explicado posteriormente pelo Planalto e pela procuradora como reunião marcada em cima da hora para definir o melhor dia e horário para a cerimônia. Temer tem evento em Nova York no dia 19, e viajaria já no dia 17, mas reviu a agenda para encaixar a posse de Dodge.

Antes da explicação oficial, porém, o imaginário popular lembrou-se do encontro clandestino entre Joesley Batista e Temer, também no fim da noite. “É uma comparação indevida, sem fundamento. Joesley chegou com nome falso, dirigindo o próprio carro, para se encontrar, ao que consta, no porão do Palácio”, afirma José Robalinho Cavalcanti, presidente da ANPR.

Robalinho diz que encontros fora da agenda são bastante comuns, por causa do ritmo atribulado do Palácio do Planalto. “Pedi audiência com antecedência de três semanas para entregar o resultado da lista tríplice, mas me ligaram às 13h50 do dia 28 de junho para estar lá às 14h30. Duvido que eu constasse da agenda oficial”, observa.

Ele também rechaça questionamentos quanto à independência de Dodge para dar seguimento às investigações da Lava Jato. “Ela tem o respaldo da classe e vai manter a impessoalidade sempre, mas isso não significa que não terá reuniões com as autoridades”, observa. Segundo ele, o fato de Temer ter escolhido o segundo mais votado não tem relevância. “Havia oito candidatos experientes, e foram indicados os três mais votados, de altíssimo gabarito. Ficamos muito orgulhosos da escolha”, diz.

Ônus e bônus da lista tríplice

A indicação de um nome da lista tríplice, aliás, é um acordo informal que vem desde 2003, sob a gestão do ex-presidente Lula, uma forma de dar respaldo à atuação do procurador-geral. Ficou famoso durante os anos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o apelido de “engavetador-geral da República”, em referência a Geraldo Brindeiro, que ocupou a PGR durante todo o período. Em 2001, a revista Veja fez um levantamento mostrando que de 626 inquéritos recebidos por ele, apenas 60 tinham sido aceitos; 217 foram arquivados e 242 repousavam nas gavetas.

Robalinho diz que houve injustiças com Brindeiro, mas ressalta que ele foi indicado por livre-vontade de FHC, sem eleição dentro do Ministério Público Federal (MPF). “Isso tem suas consequências. Mesmo que tenha atuado com independência, não parecia, pois era uma indicação direta. E não tinha a liderança na classe, por não ter sido eleito”, acrescenta. Como Dodge foi eleita por um expressivo número de procuradores, ela não terá esse tipo de problema, avalia o presidente da ANPR. Ele observa que mudanças de rumo são naturais.

Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça do governo Dilma, em artigo sobre a nova procuradora, ressaltou qualidades de Dodge, com quem estudou na faculdade, e também afastou a possibilidade de ela se alinhar a Temer. Mas ele disse à Folha de S. Paulo que ela é bastante ambiciosa e, por isso, “atropela quem se coloca no seu caminho”. No artigo, sugeriu que Dodge não vai se contentar com apenas uma recondução ao cargo – como tem sido praxe desde 2003, e tentaria permanecer no comando da PGR por muitos mandatos. Ainda assim, a descreveu como uma “pessoa espiritualizada, que nada tem a ver com o perfil hedonista-materialista de Janot”.

Ela pediu prisão de governador

Dodge tem o apoio dos procuradores e também uma carreira de respeito no combate à corrupção. É da lavra dela o inédito pedido de prisão de um governador no exercício do cargo: José Roberto Arruda, em 2010. Ela era a subprocuradora responsável pela Operação Caixa de Pandora, que desvendou um esquema de corrupção no Distrito Federal – ele foi flagrado em vídeo recebendo dinheiro de propina. Segundo Dodge, Arruda estava atrapalhando as investigações.

Foi com tranquilidade que ela narrou tudo ao então procurador-geral Roberto Gurgel, segundo a Folha de S. Paulo. Reportagem da revista Época relatou que a prisão ocorreu uma semana depois do previsto, porque Dodge ficou no aguardo de uma perícia em um bilhete escrito por Arruda.

Ela também ganhou notoriedade ao coordenar a Câmara Criminal do MPF entre 2012 e 2013 – Janot, por exemplo, não tinha experiência na área penal. Um dos focos do trabalho de Dodge era ampliar o número de ações penais por corrupção em todo o país, de olho na verba que era transferida pela União para municípios.

Antes disso ela tinha participado da equipe que processou o “deputado da motosserra” Hildebrando Paschoal, que em 1999 foi condenado a 130 anos de prisão por sua participação em um esquadrão da morte no Acre.

Atuação destacada na área de direitos humanos

Dodge não se intimidava na atuação de casos relacionados a violência. Alguns anos antes, em 1999, acompanhou de perto um conflito envolvendo tribos pataxó na Bahia. Eles invadiram 14 fazendas, reivindicando a área. Em confronto com policiais militares, dois soldados morreram, o que elevou a tensão. Na época, a Funai era presidida por Carlos Frederico Marés, ex-procurador-geral do Estado do Paraná.

“Era uma situação grave. Os índios estavam cercados pela polícia e muito amedrontados. Era preciso entrar e dizer que estava tudo bem, que estávamos cuidando da situação”, relata Marés, professor de Direito na PUCPR. Dodge, então na 6ª Câmara do MPF, que trata de populações indígenas e comunidades tradicionais, estava no local e foi uma das poucas a acompanhar Marés na conversa cara a cara com os índios. “Falei que não era preciso ninguém me acompanhar. Era uma situação tensa, podia acontecer qualquer coisa, mas ela fez questão de ir e acompanhar de perto os acontecimentos”, relata.

Marés prefere não falar das expectativas em relação ao trabalho da nova procuradora. “Uma coisa é enfrentar índio, outra é enfrentar a República”, resume. Sobre a possibilidade de Dodge se posicionar sobre a demarcação de terras indígenas, em confronto com a bancada ruralista, forte apoiadora de Temer, o professor não se mostra tão otimista. “Se fosse em outra época, poderia dizer que estava exultante, com a ascensão de alguém que passou pela 6ª Câmara. Infelizmente, estamos em uma época de completo desmanche da República, e assim a questão indígena vira um assunto menor, sem espaço na agenda”.

Se a nova procuradora vai se dedicar a esses temas é difícil dizer, mas pelo menos há a intenção. Nas últimas semanas, ela anunciou a criação de secretarias próprias para as áreas de Função Constitucional e de Direitos Humanos e Defesa Coletiva, temas caros para ela. Outro assunto no qual ela é especialista é o trabalho forçado: ela participou do grupo responsável pelo 1º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil.

Ainda no campo dos direitos humanos, Dodge pertence à linha de procuradores que defendem a revisão de alguns pontos da Lei da Anistia, com o argumento de que sequestro e ocultação de cadáveres, por exemplo, são crimes permanentes e imprescritíveis. O STF já confirmou a validade da norma, mas essa linha de entendimento do MPF, construída no projeto “Justiça em Transição”, ainda não passou pelo crivo dos ministros.

No STF, aliás, Dodge passa a ser responsável por propor ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) e arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADFP). Segundo Robalinho, da ANPR, a “judicialização da política” é um dos motivos que elevou a importância do procurador-geral da República. “O Congresso tem sido disfuncional, e deixado de legislar sobre muitas coisas. Muitas vezes o Supremo é levado a decidir sobre questões cruciais, e quem fala pela sociedade brasileira é o procurador-geral”, explica.

Justiça para todos

Para ampliar o acesso das pessoas à Justiça, Dodge participou de um ato político no Senado em 2013 para defender a criação de novos Tribunais Regionais Federais – o que tinha sido proibido pelo então presidente do STF Joaquim Barbosa por meio de uma liminar. “Onde não há juiz, dificilmente o cidadão tem os seus direitos assegurados. Se os tribunais e juízes estão acumulados de processos, o acesso à Justiça fica comprometido. O desenho atual dos tribunais não atende às necessidades”, disse ela à época.

A garantia aos direitos é uma preocupação recorrente. Durante a campanha pela disputa da PGR, e também na sabatina no Senado, Dodge lançou mão de seu mote: “um projeto de trabalho em que ninguém esteja acima da lei e ninguém esteja abaixo da lei”. Ela defende que políticos e empresários poderosos devem se submeter à Justiça, mas o Estado brasileiro também precisa resgatar da miséria e proporcionar os direitos básicos de milhões de pessoas.

Do seu novo gabinete, na cobertura de um dos blocos da PGR, um complexo de vidro e concreto aparente com formas arredondadas, Dodge terá uma ajuda visual para recordar do seu compromisso. É o Bosque dos Constituintes, formado por árvores plantadas em 1988, quando a Constituição deu garantias universais aos cidadãos, nem sempre cumpridas. Se ela vai olhar para o entorno e se inspirar para o trabalho de procuradora-geral, só o tempo dirá. O que é certo é que os olhos da nação estarão voltados para ela.

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