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| Foto: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP

O Brasil está nas mãos dos caminhoneiros. Eles transportam nosso alimento, nosso combustível e nossos remédios. Os insumos agropecuários e industriais passam pelas estradas, assim como os grãos para exportação e os bens manufaturados e processados, que em tempos normais lotam as prateleiras do varejo. Com uma paralisação de alguns dias, a categoria conseguiu parar todo o país, e o impacto disso será sentido por muito tempo. Considerando os dados de apenas 13 segmentos, os dias parados resultaram em perdas de cerca de R$ 50 bilhões – a metade do orçamento da União com Saúde em um ano, para colocar em perspectiva.

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Foi um movimento que angariou muito apoio popular nos primeiros dias, o qual só caiu quando os prejuízos ficaram mais evidentes e com a capitulação do governo federal, que atendeu às reivindicações feitas. O abastecimento e o transporte de cargas estão, aos poucos, voltando à normalidade, mas as condições estruturais que provocaram essa crise estão longe de ser resolvidas. Com ajuda de especialistas, a Gazeta do Povo elencou os principais fatores que levaram à “tempestade perfeita” provocada pelos caminhoneiros. Confira:

1. Aposta em rodovias

O governo federal passou a priorizar o modal rodoviário nos anos 1930, com a instituição do Plano Geral de Viação Nacional (1934), segundo os estudos do geógrafo Daniel Monteiro Huertas, professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor do livro Território e Circulação: Transporte Rodoviário de Carga no Brasil. Outro impulso foi a criação do Fundo Rodoviário Nacional (FRN) em 1945, vinculando parte predominante dos recursos arrecadados com o Imposto Único sobre Combustíveis e Lubrificantes (IUCL) à construção e conservação rodoviárias.

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As rodovias passavam cada vez mais a representar a modernidade que o país pretendia atingir. Também serviam para desbravar o interior. Houve uma nova fase de investimento maciço a partir 1969, com a Taxa Rodoviária Única, dentro do projeto de integração nacional do governo militar. Com a primeira crise do petróleo, em 1973, o governo reviu seus planos e passou a desvinculou essas receitas. Em meados dos anos 1980, a recessão e o alto endividamento público barraram de vez os investimentos, ocasionando uma deterioração na malha rodoviária, que nos anos 1990 começou a ser repassada à iniciativa privada por meio de concessão.

Mas a União continua priorizando esse modal. Dados do Ministério dos Transportes referentes ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no período de 2005 a abril de 2018 mostram que o setor rodoviário recebeu 68% dos investimentos, contra 12,7% do setor ferroviário, 8,7% do aeroviário e 5,9% do aquaviário. Outro fator criticado por Paulo Resende, gerente do Núcleo de Logística da Fundação Dom Cabral, é a falta de uma visão sistêmica. Cada setor tem uma agência reguladora, e não há uma integração de fato entre os modais. “O governo anterior e o atual se preocuparam mais em sobreviver para acordar vivo na manhã seguinte e por isso não tinham cabeça alguma para pensar o país de forma estratégica”, observa.

2. Rodovias para grandes distâncias

Pela complexidade do setor de transporte rodoviário – grande número de autônomos, malha de 1,4 milhão de quilômetros, áreas de transbordo, não há dados atuais sobre o transporte de cargas no Brasil. Mas as estimativas usadas pela Confederação Nacional de Transportes (CNT) apontam participação de 61,1% no total. Essa dependência, por si só, não é um problema, já que outros países também apresentam percentuais altos. Na União Europeia, por exemplo, chega a 76,4% a participação do modal rodoviário no transporte interno dos 28 países do bloco.

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Segundo a engenheira Mônica Maria Mendes Luna, professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apenas algumas cadeias produtivas podem ser escoadas por outros modais. “O escoamento de soja por caminhão não tem sentido. É um custo muito alto para as commodities que viajam grandes distâncias e vão para os portos para exportação. Mas, na cadeia do leite, por exemplo, o caminhão é fundamental. Além disso, mesmo que muitas cargas cheguem de trem nos grandes centros urbanos, a entrega porta a porta é via caminhão”, observa ela. Além disso, governantes sempre preferiram inaugurar rodovias. “O gestor público, que é um político por natureza, sabe que é muito mais rápido inaugurar estrada do que ferrovia e hidrovia, que não dão voto”, observa Paulo Resende.

3. Há caminhões de sobra

Como forma de enfrentar a crise mundial de 2008, o ex-presidente Lula promoveu uma série de benefícios e isenções para fomentar a economia interna. Uma das medidas implantadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi o Procaminhoneiro, em 2009, o qual reduziu os juros anuais de 13,5% para 4,5% na compra de caminhões novos. Isso estimulou a produção: no auge, em 2011, as montadoras entregaram 223,3 mil veículos pesados, alta de 84% em relação a 2009. Em vez de representar uma renovação da frota, houve mesmo a ampliação: o total de caminhões em circulação no Brasil passou de 1,3 milhão em 2009 para 1,8 milhão em 2017.

Mônica destaca que esse setor não tem barreira de entrada, e como o valor do investimento necessário não é muito alto, os incentivos fizeram a frota aumentar muito. Daniel Huertas diz ainda que a região Sul do Brasil reúne muitos caminhoneiros autônomos, uma característica dos descendentes de imigrantes. Notadamente as serras gaúcha e catarinense, em que sempre foi comum o “colono” vender um de seus lotes de terra para comprar um veículo pesado, como possibilidade de crescimento. Tanto que o maior número de bloqueios de estrada no início da greve e, depois, pontos de aglomeração (chamados assim pela Polícia Rodoviária Federal com o arrefecimento da greve e liberação de passagem), se concentravam no Sul do Brasil. Na noite de quarta-feira (30), quando a situação já estava se normalizando, havia ainda 267 aglomerações no país, das quais 186 (70%) eram na região Sul.

4. O valor do frete ficou estável

O setor produtivo reclama do custo Brasil e do valor do frete. Mas, para Huertas, isso reflete apenas um lado da moeda. “O embarcador, que é a indústria que contrata o transporte, parece falar assim: ‘a mim cabe o papel nobre de produzir, você que transporta, se contente com o que pago’. Mas, enquanto isso, a situação vai se precarizando cada vez mais, principalmente para o autônomo”, observa. No caso do frete da soja, o valor pago hoje é inferior ao praticado em 2010. Mônica e Resende também concordam com esse ponto de vista. Com muitos caminhões disponíveis, sempre há alguém que aceite o valor baixo pago pelo frete.

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O frete mínimo, anunciado pelo presidente Michel Temer, não é solução, apontam especialistas. Por outro lado, mesmo num cenário de livre concorrência, há espaço para negociações mais equilibradas. “Há uma exigência de nível de serviço, em que as transportadoras e caminhoneiros precisam respeitar prazos e horários para o setor produtivo funcionar no sistema just-in-time (leia mais na sequência), mas não se quer pagar por esse nível. Cada vez é exigido mais no transporte, mas se paga ainda pelo valor do frete, não pela qualidade. No médio prazo, o governo precisa intermediar um diálogo entre indústria e transportador, sustentado nas expectativas e necessidades de cada elo”, sugere Resende.

5. O caminhão carrega o estoque da indústria e varejo

Na época da hiperinflação, ter estoques era fundamental para a sobrevivência do negócio. Mas, em tempos de inflação estável, estoque parado virou custo, e muitos setores deixaram de operar assim. Proliferou-se o sistema just-in-time, em que as peças e insumos precisam chegar “na hora certa” para serem usados. “Isso melhora o fluxo de caixa. Quanto mais estoque tiver hoje, menor é a possibilidade de usar o dinheiro para outra coisa”, observa Resende.

Isso ficou muito visível com a paralisação dos caminhoneiros. Já no segundo dia de greve, as montadoras fecharam as portas. Com cinco dias de paralisação, fabricantes de bens de consumo, como a Electrolux, também suspenderam as atividades. “Apesar das condições de infraestrutura, transportar é algo relativamente barato no Brasil hoje, por isso muitas empresas adotaram baixos estoques. Melhor fazer o transportador levar a carga diária”, explica Mônica.

Não há dados atuais sobre o varejo, mas a indústria reduziu sua capacidade de estoque, segundo o IBGE. A capacidade útil das unidades armazenadoras caiu de 46,9 milhões de metros cúbicos no segundo semestre de 2007 para 35,1 milhões m³ no primeiro semestre de 2017. No caso da produção agropecuária, houve aumento, de 14 milhões m³ para 30,9 milhões m³.

6. Assaltos são frequentes

Com tanta carga rodando por aí, aumentou também o número de roubos. Segundo relatório da NTC Logística, foram 11,8 mil ocorrências em 2007; 14,4 mil em 2012; e 25,9 mil em 2017. A maioria está concentrada no Sudeste, mas por essa região trafegam cargas de todo o país. “O caminhoneiro já está cansado. Aprovaram a lei que prevê descanso a cada quatro horas, mas cadê a estrutura para isso? E ele sai de casa sem saber se vai voltar, com esses roubos acontecendo a cada momento. Muitas vezes, gasta-se com rastreamento, para tentar manter a carga. São muitas coisas que vão pesando sobre quem atua nas rodovias”, diz a professora da UFSC.

7. Caminhão é demonizado nas cidades

Dentro dos centros urbanos, o caminhoneiro não tem vida fácil. Em nome da fluidez do trânsito, as grandes cidades restringem o horário de tráfego, o que implica em várias questões logísticas, observa Mônica, da UFSC. “Estive agora em Florença, na Itália. No centro só podem entrar os veículos de moradores, e o transporte de cargas. Isso porque, sem carga, o centro não funciona. O Brasil faz o contrário. Os caminhões não entram ou só entram em períodos limitados. Para nós circularmos com nossos veículos individuais”, relata.

Em São Paulo, por exemplo, há diversos tipos de restrições. Na Zona de Máxima Restrição de Circulação (ZMRC), criada em 1986 e que atualmente abrange uma área de cerca de 100 quilômetros quadrados, os caminhões não podem trafegar entre as 05h e 21 horas de segunda a sexta-feira e das 10h às 14 horas aos sábados. Também há várias avenidas com a mesma restrição (vias estruturais restritas). “O motorista de caminhão, quando consegue entrar, tem que ficar circulando até conseguir uma vaga. Isso dificulta muita coisa. Os centros vão morrendo, ficam abandonados, porque achamos que veículo de carga é incômodo e indesejável”, critica a professora.

8. O preço do diesel ficou muito alto e instável

A política de preços da Petrobras implantada em julho de 2017 mudou a sistemática de reajuste de preços; de mensais, passaram a ser quase que diários, de forma a se ajustar ao mercado internacional. A princípio, houve uma sequência de reduções. Em outubro de 2017, porém, o diesel teve uma leve alta, e começaram a surgir questionamentos. Nos últimos meses, com a alta dos preços internacionais, o combustível teve muitas variações. Na semana de 18 a 24 de março, o litro do diesel era vendido em média a R$ 3,22 nos postos de São Paulo, o maior centro consumidor. Um mês depois, o litro subiu para R$ 3,36 em média; na semana de 6 a 12 de maio, para R$ 3,48; na semana seguinte para R$ 3,54.

“O que o Brasil faz não é diferente do que Estados Unidos, França e Alemanha fazem, no sentido de seguir os preços internacionais. Mas há duas diferenças: não faz dia a dia. Faz mensalmente ou de três em três meses”, diz Resende. Segundo ele, a variação constante prejudica o planejamento de toda a cadeia logística. “Funciona melhor em mercados maduros. Além disso, é como uma semente que não germina. Na hora em que o frete começa a ser negociado, sobe de novo o diesel”, observa. Em outros países, os governos também adaptam os impostos incidentes. “Se sobe o preço, o imposto cai. E se cai o preço, o imposto sobe. Na média, fica praticamente estável. Ainda que tenha subida permanente, imposto não sobe tanto, como tem ocorrido no Brasil”, aponta.

9. Governo fraco não previu problemas

O caos causado pela paralisação dos caminhoneiros foi intensificado pela falta de habilidade do governo federal. Em primeiro lugar, não soube prever o impacto de uma greve como essa, anunciada pelas entidades representantes, como a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam) com antecedência. Em 14 de maio, a entidade havia enviado um ofício ao presidente Michel Temer, pedindo providência sobre o preço do diesel, e anunciando a greve que teve início no dia 21. Deflagrado o movimento, o governo errou diversas vezes. Não soube negociar e depois ameaçou com a repressão das Forças Armadas.

“Na primeira negociação, o governo foi e ofereceu algo que a categoria nem queria. Mas não se pode oferecer uma coisa que não resolve. O grevista, nessas situações, acaba aceitando essa primeira oferta, mas exige também as outras reivindicações”, destaca Paulo Resende, da Dom Cabral. A situação de Temer, que já gastou todo seu capital político para barrar no Congresso o andamento de investigações contra ele, e sua baixíssima popularidade contribuíram para um apoio popular em massa aos caminhoneiros nos primeiros dias de manifestações, a despeito do impacto negativo do desabastecimento.

Como sair dessa?

A complexidade do sistema logístico brasileiro exige soluções em várias frentes, opina Paulo Resende, gerente do Núcleo de Logística da Fundação Dom Cabral. Ele disse que, no curto prazo, a única saída para o governo federal era mesmo ceder à pauta dos caminhoneiros, para com mais tranquilidade dar encaminhamento a outras questões estruturais. “Mas é claro que isso significa que quem vai pagar a conta seremos todos nós. A conta vai chegar na minha casa, na sua, disfarçada em mais impostos ou no corte de mais serviços públicos”, lamenta.

No médio prazo, ele sugere que o governo faça o papel de conciliador para mediar o diálogo entre embarcador e transportador. “Porque vai furar essa questão do preço mínimo do frete. A força do mercado é muito grande, então pode ter um preço tabelado, mas se oferecerem um valor 20% abaixo, vão acabar aceitando”, observa. Ele diz que o diálogo precisa ser sustentando entre normas técnicas e expectativa entre cliente e fornecedor, de forma mais colaborativa. No longo prazo, o caminho é apostar em ferrovias ou outros modais, para reduzir a dependência de algumas cadeias do modal rodoviário. Outro caminho são dutos, que podem abastecer grandes demandas de combustíveis, como a de aeroportos. Resende destaca o caos nos aeroportos causado pela paralisação dos caminhoneiros: “Hoje apenas Guarulhos e Galeão têm dutos. Os demais dependem todos de caminhão para a querosene de aviação”.

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