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Na casa do seu José, todos que trabalham depositam em uma única conta o dinheiro que ganham. O montante será distribuído no pagamento das contas e rateado entre cada um dos filhos, para suas despesas pessoais. Um dia, um dos filhos se rebela. Ele ganha mais que os outros, mas recebe uma fatia menor do que arrecadou porque os filhos menores precisam de mais repasses. O “rebelado” decide que quer ficar tudo o que recebe para ele mesmo, deixando um buraco no orçamento da casa e dificultando o pagamento da escola das crianças que ainda não trabalham.

Algo parecido está acontecendo na Justiça e com órgãos do governo federal. E preocupa quem cuida do fechamento das contas, dentro do próprio governo, além de ser uma forma de burlar o chamado teto de gastos. 

Órgãos do governo e determinadas categorias do funcionalismo estão se ‘rebelando’ para administrar os próprios recursos e driblar o teto de gastos

Desde 2016, com a aprovação da emenda constitucional 95, que impede que os órgãos do governo ultrapassem os gastos do ano anterior, entidades de classe, corporações e até mesmo entes do governo têm buscado formas de evitar esse limite e fazer como o rebelde da história acima. Com isso, a arrecadação de um órgão poderá ser administrada por ele mesmo, e seus próprios dirigentes definirão como investir os recursos, que ficam de fora do teto de gastos.

Com essas manobras, recursos que deveriam ser reunidos e distribuídos dentro do orçamento federal ficam sob administração de outros entes e deixam de ser alocados no que é prioritário na visão de quem faz e aprova o orçamento: deputados e senadores, que representam a população. 

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O Ministério do Planejamento vê com atenção a tentativa de segregar valores que deveriam entrar no orçamento e ser distribuídos conforme as prioridades definidas em lei. “Os fundos orçamentários tornam mais rígida a programação orçamentária do governo federal. Cabe ao Palácio do Planalto deliberar sobre a conveniência ou não da criação deste tipo de instrumento”, afirmou o ministério em nota enviada à Gazeta do Povo.

Entre esses casos estão os juízes, que se articulam no Congresso para conseguir separar do orçamento federal a arrecadação com multas e indenizações. Outra tentativa é articulada pelo Poder Executivo, na Medida Provisória (MP) 845, que cria o Fundo de Desenvolvimento Ferroviário Nacional (FNDF), com valores que virão do pagamento de outorga de concessão de ferrovias. 

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Como os juízes pretendem “fugir” do teto de gastos

No caso dos juízes, as entidades que representam a magistratura pressionam o Congresso pela aprovação do projeto que cria o Fundo de Modernização do Poder Judiciário da União. A proposta foi apresentado no ano passado e agora voltou a tramitar nas comissões. Segundo o texto, recursos de multas e indenizações (como autuações por irregularidades em casos de direito difuso – no qual a sociedade é que recebe os valores, por exemplo) seriam recolhidas ao fundo e administradas pelo próprio Poder Judiciário. 

A gestão dos recursos ficará a cargo de entes do Judiciário (por um comitê composto por juízes) e poderá ser usada para reformas nos prédios, compra de móveis e equipamentos tecnológicos, e até mesmo para concessão de bolsas de capacitação e pagamento de cursos e treinamentos para juízes e servidores do Judiciário. 

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O projeto é tão detalhado e específico que carimba o dinheiro até mesmo entre os entes da Justiça. Na prática, quem aplica a multa ou a punição estará recebendo aqueles valores, quando enquadrados na lei do Fundo.

Segundo Guilherme Feliciano, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a criação do fundo já está prevista em lei e o novo projeto apenas o regulamenta. Ele defende a criação do fundo, pois com ele o Poder Judiciário ficaria menos suscetível aos “humores políticos” da destinação de verbas.

Ele também sustenta que o fundo é favorável ao cidadão, que poderá ter acesso a uma justiça de melhor qualidade, e que os recursos de multas e indenizações poderão ser mais diretamente aplicados para benefício da população afetada pelos atos que levaram à punição, ao invés de caírem no grande bolo do orçamento federal. 

Questionado se não seria melhor permitir que a sociedade, e não juízes, decidissem o que será feito com os valores, Feliciano afirmou: “Não sei se podemos dizer que a sociedade vai perder uma arrecadação. Falar na vontade da população é algo abstrato. A vontade é sabida pelo Parlamento. E ele mesmo achou meritório destinar parte desse dinheiro para a modernização do Judiciário [quando aprovou mudança no Código de Processo Civil que pedia a criação do fundo]”. 

A concessão de bolsas para licença-capacitação e cursos para juízes e servidores também é algo previsto no Fundo. Feliciano garantiu que tais cursos serão feitos durante a rotina de trabalho normal dos servidores, sem a previsão de afastamentos. 

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Fundo das ferrovias tira R$ 1 bilhão do orçamento federal

A MP 845 cria uma nova “jabuticaba” no setor de ferrovias e pode criar um precedente perigoso. O novo fundo, que já está criado por ter sido enviada por meio de MP, será vinculado ao Ministério dos Transportes e basicamente receberá o valor arrecadado com o leilão da Ferrovia Norte-Sul, no trecho entre Porto Nacional (TO) e Estrela d’Oeste (SP). 

O leilão da Norte-Sul está em andamento e, segundo o Programa de Parcerias em Investimento (PPI), ainda está previsto para ocorrer este ano. Nesse certame, está previsto pagamento de bônus de outorga mínimo de R$ 1,097 bilhão – recursos que iriam para o novo fundo. 

Pelas regras vigentes, valores pagos em bônus de outorga em concessões do setor de infraestrutura entram no orçamento e engordam o caixa federal. Exemplo disso são as concessões de usinas hidrelétricas e leilões de bacias de petróleo, que geram receitas bilionárias e foram a salvação do governo federal nos últimos três anos. 

A ideia de reter arrecadação dentro do próprio órgão ou setor que a gerou, para ser investido naquela área, parece interessante para estimular um setor específico. Mas, em um ambiente de restrição orçamentária, acaba retirando valores que o governo poderia definir onde teriam alocação prioritária, até mesmo em saúde, educação ou segurança pública. 

A retirada de valores de bônus de outorga por concessão, como prevista na MP 845, ainda pode ser alvo de análise pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Procurada, a assessoria de imprensa do órgão não respondeu às perguntas feitas pela reportagem. O Ministério da Fazenda, que arrecada as receitas federais, também.

Fundo Ambiental também está “imune” ao teto. E há pressão pela criação outros fundos desse tipo

Outros fundos foram criados recentemente ou estão em vias de serem criados, como o Fundo Ambiental (criado em maio por MP e que pode ter R$ 1,2 bilhão ao ano). Nesse caso, o Ministério do Planejamento destaca que a origem dos recursos (multas por descumprimento da legislação ambiental) é privada e que tais recursos não estão sob o teto de gastos.

Outras iniciativas de separar dinheiro do orçamento para uso exclusivo que do órgão que gerou tais receitas já foram sugeridas no passado. Entre elas estava a destinação da verba obtida com a confecção de passaportes pela Polícia Federal. Em 2017, quando o orçamento para essa rubrica acabou antes do fim do ano, parlamentares e integrantes da própria PF defenderam que a arrecadação com passaportes fosse mantida na PF, e não distribuída em um fundo geral de segurança. O projeto não prosperou.

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