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Procuradora-geral da República (PGR), Raquel Dodge enfrenta rebelião com a proposta de reforma do MPF. | EVARISTO SA/AFP
Procuradora-geral da República (PGR), Raquel Dodge enfrenta rebelião com a proposta de reforma do MPF.| Foto: EVARISTO SA/AFP

Em um momento em que Judiciário e Legislativo se estranham e levam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a se fechar no espírito de corpo, o Ministério Público Federal (MPF) enfrenta uma disputa interna que coloca em risco a recondução ao cargo da atual procuradora-geral da República (PGR), Raquel Dodge.

As divisões ideológicas na corporação estão expostas. A disputa tomou corpo com a reação da maioria dos procuradores da ativa a uma proposta de reforma do órgão patrocinada por Dodge, mas também envolve a discussão sobre a reposição do pagamento de auxílios, após o ministro do STF Luiz Fux revogar liminares que autorizavam o pagamento mensal de R$ 4,3 mil pelo auxílio-moradia. Em retaliação, mais de 30 procuradores renunciaram a grupos de trabalho, comitês e subcomitês no MPF.

Reforma do MPF

Procuradores se dividem entre os que se dizem “perplexos” com a proposta que Dodge apresentou no dia 8 e os que veem uma tentativa de manutenção da ascendência ideológica do grupo da atual PGR em temas sensíveis à opinião pública, como as pautas de costumes e de questões ambientais.

A proposta de Dodge é criar “Ofícios Especializados de Atuação Concentrada em Polos” em razão de “matéria, função, território ou outro critério relevante”. Pelo texto, os procuradores seriam designados pela cúpula da instituição para atuação nos ofícios especiais, que tratariam de temas urgentes e complexos, como o desastre de Brumadinho, por um período de dois anos. Críticos da proposta aventam a possibilidade de ingerência política e de perda da impessoalidade na condução das investigações.

Críticas: reforma do MPF produziria “procuradores biônicos”

Nesta quinta-feira (14), o sub-procurador-geral da República Mário Bonsaglia oficiou a PGR com uma petição, assinada por 619 procuradores da ativa, criticando a proposta de reforma do MPF. Isso é mais da metade dos 1.141 membros da instituição. Dodge foi eleita com 587 votos.

“A radical e pouco debatida proposta da Exma. Procuradora-Geral da República concentra nas mãos da cúpula da instituição um enorme poder e pode vir a resultar, em algum momento, como efeito colateral deletério, na criação de mecanismos de ingerência, ainda que de forma indireta, sobre a atuação dos Procuradores da República, em prejuízo de sua plena independência para atuar”, diz o texto do manifesto.

ENTENDA: Como funciona o Ministério Público hoje

O texto começou a circular no domingo (10) após uma mensagem encaminhada pela PGR a todos os procuradores, acusa Dodge de tentar criar “procuradores biônicos”. Em redes sociais, procuradores se referiram também a “procuradores de aluguel” e “marionetes”.

“Imagine o juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba [responsável pela Operação Lava Jato], para citar a vara mais famosa, só poder atuar por dois anos. Fora disso, para ele continuar, é preciso uma concordância de órgãos de cúpula. Isso cria insegurança e a independência funcional fica afetada”, explicou um procurador ouvido pela reportagem. “Ninguém imputa à atual PGR a intenção de violar esses princípios, mas nós nos preocupamos não só com o curto prazo, mas com o médio e o longo prazo”, completou.

Disputas ideológicas

Muitos procuradores questionam a intenção de Dodge em patrocinar a proposta, especialmente porque o ritmo que a atual PGR quis dar à aprovação foi considerado afoito. Um deles se declarou “perplexo” com o que acontece. Mas há outro grupo que vê no texto uma tentativa de garantir postos chaves em temas sensíveis a procuradores progressistas, mais próximos de Dodge.

“A cúpula do MPF defende pautas como esta que está no Supremo hoje [de criminalização da homofobia]. Se o STF disser que homofobia é crime e algum procurador da república concluir no ato da sua atuação independente que nesses casos não é possível denunciar fulano ou beltrano, a PGR poderia criar ofícios especiais para persecução criminal de casos de homofobia. E para esses ofícios ela vai escolher exatamente os procuradores que atenderem a determinação de denunciar”, avaliou um procurador.

“Eu não tenho dúvidas de que o objetivo é ter um controle maior, centralizar os casos mais emblemáticos e mais sensíveis, que sejam do interesse da cúpula da instituição no sentido que ela entenda que deve seguir”, concluiu.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

O que preocupa essa ala de procuradores é o âmbito do Ministério Público Eleitoral e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que são dois dos três grandes braços do MPF juntamente à atividade comum, que, por exemplo, cuida dos casos criminais e de corrupção. O entendimento corrente no MPF hoje é que, conforme a Lei Orgânica da categoria, a PGR pode normatizar diretamente os âmbitos dos direitos do cidadão e eleitoral, enquanto não houver lei específica em outro sentido.

“Matérias da PFDC são, por exemplo, saúde, educação, segurança pública em sentido amplo, direitos humanos, reforma agrária, direitos sexuais e reprodutivos. Hoje os procuradores que estão lotados nesses ofícios o são por critérios objetivos, mas pela proposta em discussão, a PGR em conjunto com a PFDC irá escolher quem vai atuar”, explica um procurador.

A portaria em discussão para a criação dos ofícios no âmbito da PFDC diz que “os ofícios de atuação concentrada em polos especializados em matéria de cidadania serão exercidos por designação da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão”. A atual chefe da PFDC é a procuradora Deborah Duprat, notória progressista em questões de costumes, que fica no cargo até maio de 2020. Temendo reações, a proposta está aberta para consultas no prazo de 30 dias.

Já no âmbito eleitoral, os ofícios especializados já foram criados pela Portaria PGR/MPF 76, editada no último dia 7 de fevereiro, mas diferentemente da proposta geral e da PFDC, os procuradores que vão desempenhar essas funções “são escolhidos conjuntamente com o Procurador Regional Eleitoral pelo Colégio de Procuradores da respectiva unidade”.

Pressa na discussão

Independentemente dos pormenores, o que também assustou os procuradores foi a pressa com que Raquel Dodge quis tratar um tema tão sensível, fechando-se ao diálogo com seus pares. Dodge apresentou a proposta como substitutivo de outra que já estava em andamento no Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF), de relatoria da conselheira Maria Caetana Cintra Santos e que estava na pauta de 5 de fevereiro.

A questão acabou entrando em discussão apenas em uma reunião extraordinária na sexta-feira do dia 8, e durou mais de quatro horas. O clima esquentou várias vezes, com conselheiros acusando Raquel Dodge de cassar a palavra dos colegas. Os conselheiros, segundo relatos, receberam a proposta “com apenas alguns dias de antecedência”.

A percepção geral dos procuradores é que “a falta de debate efetivo” minou o apoio a Dodge e que, quando a atual PGR percebeu que não teria os votos suficientes para aprovar a proposta, adiou a reunião.

Mensagem interna de Raquel Dodge

O clima já estava quente desde o último domingo (10), quando Dodge fez circular na rede interna e chegar a todos os procuradores uma manifestação sobre sua “preocupação com a credibilidade da instituição”.

“Devo zelar para que a exposição pública já desencadeada de pauta reivindicatória corporativa – reitero – de difícil compreensão por formadores de opinião e pela sociedade, não seja compreendida como ato contrário à lei, nem desproporcional ao justo, e muito menos indiferente à fase da vida nacional marcada por grandes tragédias evitáveis, por elevado déficit público e por milhões de desempregados e excluídos”, escreveu Dodge.

Naquela que foi a passagem de tom mais ameaçador para os procuradores, soando para alguns como uma ameaça velada, Dodge disparou ainda:

“Estarei atenta para que o movimento da classe – que está levando jornalistas a pedirem esclarecimentos à PGR sobre regulamentações em curso no Conselho Superior – não leve ao descrédito de qualquer membro, nem da instituição. A transparência pública e o direito constitucional à informação exigem que a administração disponibilize as informações que vierem a ser solicitadas, inclusive sobre eventuais impedimentos legais, bem como sobre as consequências para o modo de prestação de serviço pelo MPF”.

A mensagem respondia a demandas por regulamentação do pagamento de auxílios, mas precipitou a decisão dos organizadores do abaixo assinado, que se alastrou como pólvora durante a semana e foi protocolado na quinta-feira (14).

Demanda salarial e falta de diálogo

A disputa em torno da nova regulamentação, que deve voltar à pauta do CSMPF na segunda semana de março, se insere em um contexto de falta de diálogo e demandas remuneratórias mal atendidas. Os procuradores se esforçam para dissociar a oposição à nova regulamentação de Dodge da questão salarial. De fato, há muitos elementos nesse sentido, mas o “cabo de guerra”, como resumiu um procurador ouvido pela reportagem, é mais um capítulo de uma erosão na condução da atual PGR.

A principal demanda dos procuradores é a revisão da regulamentação interna da Gratificação por Exercício Cumulativo de Ofícios (Geco), prevista pela Lei 13.024/2014 e que arrasta desde outubro de 2017. Em nota divulgada nesta terça-feira (12), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) reclama a equiparação salarial com membros do Judiciário.

“Juízes federais percebem atualmente, em média, 15% a mais no vencimento líquido. O percentual foi comprovado por meio de estudo no qual a Associação, a partir de dados disponíveis no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), verificou que magistrados federais recebem a Gratificação por Exercício Cumulativo de Jurisdição (Gaju) de forma significativamente mais frequente que os membros do MPF”.

Procuradores já estão entregando cargos que exercem voluntariamente e sem remuneração extra como “um passo” da mobilização que pretendem levar à reunião presencial do Colégio de Procuradores da República, que reúne todos os membros na ativa do MPF. A ANPR argumenta, ancorada em decisão de assembleia da categoria, que a Geco poderia ser revista por ato da PGR, mas que Dodge escolheu levar à questão a voto no CSMPF.

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A disputa se acirrou desde o final de novembro quando, após negociação com o Poder Executivo, o ministro Luiz Fux, do STF, revogou as liminares que garantiam o pagamento amplo do auxílio-moradia. Em dezembro, o Senado aprovou um aumento de 16,38% para o Judiciário e para o MP que já está valendo.

Mesmo assim, procuradores relatam um descontentamento difuso da categoria, porque outras carreiras tiveram ganhos reais bem maiores que o de procuradores nos últimos dois anos. Delegados, Receita Federal, Defensoria Pública e Advocacia-Geral da União (AGU) são sempre lembrados. Alguns enxergam até mesmo uma retaliação à Operação Lava Jato, porque o discurso da austeridade do governo só atingiria a corporação.

Procuradores de aluguel

Os procuradores questionam o que veem como duplo padrão de Dodge. Isso porque a PGR tem insistido no discurso de aperto das contas públicas para postergar a regulamentação da Geco, mas, em sua proposta de mudar a estrutura do MPF, ela prevê o pagamento extra para os procuradores que venham a ser designados para os Ofícios Especializados que quer criar. Por essa razão, um membro da instituição apelidou a proposta de “procuradores de aluguel”.

“Se nós aderíssemos à proposta dela [Dodge], o nosso reclame financeiro estaria solucionado. Se nós concordássemos com a proposta de criação dos ‘procuradores biônicos’, seríamos todos beneficiados com essa gratificação para a qual ela diz que não há recursos”, avaliou um dos procuradores ouvidos. Mais de um membro da instituição insistiu nesse ponto para argumentar que os procuradores “não são mercenários”.

Consultada, a Procuradoria-Geral da República afirmou que “reiterou ao presidente da ANPR a disposição para dialogar e discutir as questões apresentadas. Também esclarece que se tratam de funções cujas designações não cabem à PGR, e assim, os autores dos ofícios estão sendo orientados a encaminhar esta manifestação às autoridades competentes para a providência cabível”, mas não se pronunciou sobre as críticas aos Ofícios Especializados.

Como funciona o Ministério Público hoje

A atuação na atividade fim do MPF, a instrução dos processos, é pautada por critérios objetivos com base territorial. Em cada divisão territorial onde há um grande número de procuradores, com divisões temáticas. Cada procurador ocupa um ofício.

Quando um ofício fica vago por remoção ou aposentadoria de um profissional, há um concurso de remoção com regras objetivas para o preenchimento, como é o caso também no Judiciário – e aconteceu recentemente para substituir o hoje ministro da Justiça Sergio Moro. Esse esquema garante o princípio do “procurador natural”: quando surge um caso que deve ser investigado, já se sabe de antemão ofício ou divisão, onde houver, investigará o caso.

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As Câmaras Temáticas, que pela proposta de Dodge seriam “ouvidas” sobre a designação de procuradores para os Ofícios Especializados, não têm atribuição na atividade fim. Na linguagem da procuradoria, elas não são órgãos de execução, mas apenas de coordenação – emitindo opiniões não vinculantes aos procuradores, a partir do que está sendo produzido em todo o país – e de revisão. Esta última atribuição das Câmaras é vinculante: se um procurador decide arquivar um processo, as Câmaras podem decidir por reverter a decisão.

Foi o que ocorreu no caso em que apura denúncias de que o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) teria subfaturado o valor de imóveis em sua declaração de bens à Justiça Eleitoral. O procurador regional eleitoral do Rio de Janeiro, Sidney Madruga, pretendia encerrar a investigação sem fazer nenhuma diligência, afirmando que o TSE tem jurisprudência consolidada de que não haveria crime, mas a 2ª Câmara Criminal de Revisão do MPF vetou a iniciativa.

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