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Uma loja tem um vendedor e uma gerente que são negros. Ambos foram vítimas de discriminação racial por parte de um superior hierárquico e decidiram processar a empresa em que trabalham para buscar uma reparação. O tipo de ofensa praticada contra eles foi o mesmo, mas a indenização que cada um receberá será diferente. A gerente ganhará uma reparação maior que a do vendedor.

Pode parecer injusto, mas é isso que vai acontecer a partir de novembro, quando a reforma trabalhista entrar em vigor. O novo texto da CLT agora também prevê a reparação para o dano extrapatrimonial, que é tudo aquilo que extrapola o que é considerado patrimônio: vale para dano moral, estético, discriminação religiosa e sexual, por exemplo.

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Para fixar alguns parâmetros, a nova lei estabelece níveis da ofensa – que vai de leve a gravíssimo – e vincula a indenização ao último salário recebido pelo ofendido – entre três e cinquenta vezes esse valor. Esse é um dos pontos mais polêmicos da nova lei – e um daqueles que seriam alterados via medida provisória, que até agora, ninguém nem sequer viu.

Disciplinar é importante...

O advogado especialista em relações do trabalho Fabiano Zavanella, sócio do escritório Rocha, Calderon e Advogados Associados, explica que a reforma trabalhista se propôs a disciplinar a situação do dano extrapatrimonial. “Ao longo do tempo, isso causou uma série de dissabores. A figura do dano moral, em especial, foi muito banalizada. Foi tornada algo normal, rotineiro, e perdeu força”, argumenta.

Para ele, a banalização desse tipo de ação acabou fazendo com que houvesse sentenças muito duras para coisas não justificadas e outras muito brandas para situações que eram graves. Com a reforma, há uma busca por estabelecer parâmetros. A configuração desse tipo de dano vai levar em conta quem foi vítima da ofensa, quem causou essa ofensa, o potencial de reparação, grau de responsabilidade, se houve alguma tentativa de reparação ou perdão e a situação econômica das partes.

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E é nesse ponto em que ela está amarrada ao salário dos envolvidos. “Há críticas porque, em tese, haveria um tratamento discriminatório. Quando se fala de situação econômica do agressor e do agredido, já vai para um caminho do direito comum. Você tem que confortar quem sofreu a agressão e coibir quem maltratou, mas não é passar um cheque em branco”, pondera.

... mas a solução é questionável...

Avaliar e mensurar em dinheiro quanto vale um sofrimento causado é uma tarefa difícil. O professor de Direito do Trabalho Duarte Batalha, da Universidade Presbiteriana Mackenzie Elton, lembra que historicamente a Justiça do Trabalho não costuma aplicar indenizações altas para dano moral. É comum ver casos de humilhações com danos graves receberem indenizações baixas. Agora, com quatro tetos, o problema é que uma ofensa a uma pessoa de hierarquia superior custa mais caro. “Se o mesmo xingamento for usado para uma faxineira e um gerente, a faxineira vai receber uma indenização menor que a do gerente. Em vez de proteger a pessoa que é mais vulnerável, o efeito é o contrário: ela vai se tornar ainda mais vulnerável”, argumenta.

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Para Batalha, o problema é vincular o valor da indenização ao último salário. “Poderiam usar um outro parâmetro, que é o teto do maior benefício previdenciário pago pelo INSS”, sugere. A questão, nesse caso, é de não estabelecer uma vinculação entre o grau de desenvolvimento profissional da vítima e os valores a serem recebidos – a opção por algo que não fosse pessoal seria mais adequada.

... e pode criar um problema constitucional

Trazer a previsão de dano extrapatrimonial para dentro da lei trabalhista foi um processo problemático, na avaliação de Noemia Porto, vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Ela diz que há pelo menos quatro problemas constitucionais na redação da nova lei – três são superáveis, mas um deles não é.

A nova lei determina o que os juízes deverão levar em consideração na hora de julgar um caso de dano extrapatrimonial. “Isso é um problema por causa do direito de personalidade e de reparação, que já vem direto da Constituição”, explica. Em seguida, são elencados os direitos que são tuteláveis a pessoas físicas e jurídicas. “Para ficar constitucional, você precisaria inserir que é um elenco meramente ilustrativo”, diz.

Outro problema é que a regra diz que esses são direitos tuteláveis exclusivamente a pessoa física ou pessoa jurídica. “Fica a impressão que o legislador tira da esfera do dano extrapatrimonial os sucessores desses trabalhadores – as viúvas, filhos, familiares. A única saída é uma interpretação à luz da Constituição, que esses sucessores são pessoa física e também podem demandar indenização por dano extrapatrimonial em caso de morte”, exemplifica.

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Por fim, o problema mais grave é a vinculação com o salário do trabalhador. Na interpretação de Noemia, isso viola o princípio de isonomia constitucional. Ela explica que o próprio STF já tinha um entendimento anterior, de quando avaliou a lei de imprensa, e falou sobre “tarifar o sofrimento”, que seria incompatível com a Constituição.

“Essa lei comete o mesmo erro. Ela usa a ideia da tarifação como limite e é incompatível com a reparação plena. Não há como justificar a diferença de indenização para ofensas iguais”, argumenta. Para ela, a reforma tentou resolver um problema e criou outro, constitucional, ainda maior.

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