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Policiais federais durante fase da Operação Lava Jato.
Policiais federais durante fase da Operação Lava Jato.| Foto: Leonardo Benassatto/Futura Press/EStadão Conteúdo

A troca no comando da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, determinada na quinta-feira (15) pelo presidente Jair Bolsonaro, provocou um atrito da instituição com o Planalto – que já não é o primeiro desde o início do governo. O caso provocou reações, e policiais federais veem indícios de que a autonomia informal que a PF conquistou nos últimos anos vem sendo colocada em xeque.

O novo conflito de Jair Bolsonaro com a PF começou na quinta-feira, quando o presidente afirmou que vai exonerar o atual superintendente da Polícia Federal no Rio, Ricardo Saadi, por “questões de produtividade”.

Em nota, a Polícia Federal desmentiu o presidente e afirmou que a substituição de Saadi já estava prevista havia alguns meses. “O motivo da providência é o desejo manifestado, pelo próprio policial, de vir trabalhar em Brasília, não guardando qualquer relação com o desempenho do atual ocupante do cargo”, informou a PF.

Já o Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Estado de São Paulo (SINDPF-SP) reagiu de forma mais dura e disse que o presidente age com desrespeito e atenta contra a autonomia da Polícia Federal.

Ao jornal o Globo, o presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), Edvanir Paiva, disse achar a atitude de Bolsonaro estranha. “Foi uma surpresa o presidente ter dito que iria trocar. Não me lembro do último presidente que tenha falado de troca, até porque, em relação ao presidente, o cargo de superintendente da PF é de quatro escalão. Para nós, é um cargo muito importante, mas algo que sempre foi decidido pelo diretor geral”, disse. “A Polícia Federal é um órgão de Estado, não do governo dele. Ele pode indicar o diretor-geral, não os demais cargos internos”, defendeu Paiva.

Nesta sexta (16), Bolsonaro voltou a falar sobre o assunto. Explicou que não havia questionado a "falta de produtividade" de Ricardo Saadi. "Eu falei sobre produtividade, e não falta de produtividade", disse Bolsonaro, que arrematou que o delegado "vai produzir melhor em outro lugar". O presidente também deixou claro que dá liberdade para os ministros nomearem subordinados, mas que vai manter o poder de de vetar nomes. "Quem manda sou eu (...) Eu tenho poder de veto. Ou vou ser um presidente banana agora; cada um faz o que bem entende e tudo bem? Não."

Ricardo Saadi é especialista em investigações de crimes financeiros e recuperação de dinheiro da corrupção escondido no exterior. Ele está no comando da PF no Rio de Janeiro desde abril de 2018 e, sob seu comando, a PF deflagrou importantes fases da Lava Jato no estado – com alvo em políticos, empresários e doleiros.

PF vem marcando posição por autonomia

Em sete meses de governo, essa não é a primeira vez que a Polícia Federal precisou marcar posição para defender sua autonomia.

No início do mês, a corporação desmentiu o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, sobre o destino de provas colhidas na Operação Spoofing – uma investigação da PF que interessa pessoalmente ao ministro, que foi alvo da ação de hackers que invadiram celulares de autoridades.

Moro havia dito que as conversas apreendidas com os suspeitos seriam destruídas. A PF, que está subordinada a Moro, reagiu e negou a afirmação do ministro. Moro viria a dizer, bem mais tarde, que havia ocorrido um mal-entendido sobre o assunto e que não tinha determinado a destruição do material.

Para Paiva, a primeira afirmação de Moro foi inadequada, mas não representa em si uma ameaça à autonomia da corporação. Mas ele ressalta que essa autonomia em relação ao governo da vez foi conquistada pela corporação “na marra” e não está garantida.

“Acho que a declaração em si não ameaça; só coloca dúvidas nessa autonomia. Determinadas manifestações durante andamento de investigações, seja de onde venham, acabam tornando o ambiente da investigação muito revolto. E, para qualquer investigação, é necessário um pouco de tranquilidade”, diz Paiva.

O presidente da associação dos delegados da PF afirma ainda que esse tipo de declaração, como a de Moro, pode atrapalhar a imagem da instituição. "Prejudica porque vão vir várias narrativas no sentido de que a Polícia Federal está seguindo ordem de governo, uma diretriz governamental.”

Para o presidente da ADPF, ainda não há motivos para acreditar que a PF possa ser colocada sob pressão por parte do governo. “Nós não enxergamos no ministro, nem no presidente, até agora, uma ameaça para o trabalho da Polícia Federal”, diz Paiva.

Bolsonaro questiona conclusões da PF e comenta investigações em andamento

Além do caso da troca de comando na PF do Rio, Bolsonaro também já havia criticado a atuação da Polícia Federal e comentado investigações em andamento, sugerindo o possível desfecho dos trabalhos antes de seu encerramento.

Um desses casos envolve o questionamento de Bolsonaro, reiteradas vezes, sobre quem teria sido o mandante do atentado que ele sofreu durante a campanha eleitoral do ano passado. Em setembro de 2018, Adélio Bispo de Oliveira deu uma facada em Bolsonaro.

A PF concluiu que Adélio agiu sozinho e que tem transtornos psicológicos. Mas, mesmo depois disso, o presidente seguiu cobrando a PF para encontrar o mandante.

“Havia e ainda há, da parte dos correligionários do governo, uma pressão. Sempre perguntam quem mandou matar o presidente. A investigação chegou à conclusão de que não há um mandante e não temos como produzir um mandante”, afirma Paiva. “É óbvio que quando tem esses temas muito delicados há uma discussão se a Polícia Federal está com autonomia bastante para atuar. Eu confio nos colegas que fazem as investigações”, afirma o presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal.

Bolsonaro também se pronunciou sobre pelo menos outra investigação da PF, a da suspeita de assassinato do cacique Emyra Wajãpi, num suposto conflito entre garimpeiros e indígenas do Amapá. Bolsonaro colocou em xeque as circunstâncias do suposto assassinato, ainda com as investigações em andamento.

“Usam o índio como massa de manobra, para demarcar cada vez mais terras, dizer que estão sendo maltratados. Esse caso agora aqui… Não tem nenhum indício forte que esse índio foi assassinado lá”, disse o presidente no fim de julho – em meio a uma declaração em que questionou os interesses que estariam por trás das demarcações de terras indígenas e na qual anunciou que iria legalizar o garimpo.

A PF tem uma investigação em aberto sobre o caso. Nesta quinta-feira (16), a PF divulgou um laudo preliminar sobre a morte do cacique Waiãpi. Nesse caso, a o documento corrobora a afirmação de Bolsonaro.

"Apesar das informações iniciais darem conta de invasão de garimpeiros na terra indígena e sugerirem possível confronto com os índios, que teria ocasionado a morte da liderança indígena, o laudo necroscópico não apontou tais circunstâncias", disse a PF, em nota. "O laudo conclui que o conjunto de sinais apresentados no exame, corroborado com a ausência de outras lesões com potencial de causar a morte, sugere fortemente a ocorrência de afogamento como causa da morte de Emyra Waiãpi."

Autonomia da PF não é prevista em lei

Uma das principais preocupações da corporação, segundo Paiva, é o fato de a legislação não prever a autonomia da Polícia Federal.

“Nós tornamos a Polícia Federal uma polícia republicana e técnica na marra”, diz o presidente da ADPF. “A Polícia Federal não tem autonomia financeira, nem orçamentária, nem administrativa. Nossa autonomia é baseado em uma cultura institucional muito forte de não aceitar interferência e, quando ocorre, a gente reclama, se manifesta, faz o barulho necessário para que cesse. (...) Quando você consegue implantar uma cultura institucional sadia de não aceitar intervenções e lutar contra qualquer movimentação que se entenda feita para amarrar a polícia, para obter alguma atuação política da polícia, a gente de alguma forma fica protegido.”

O problema, segundo Paiva, é que sem uma autonomia formal, prevista em lei, qualquer governo pode atrapalhar a atuação da polícia. Ele cita como exemplos de possíveis interferências o fato de o diretor-geral da PF, escolhido pelo presidente, não ter mandato e poder ser demitido a qualquer momento. Além disso, a nomeação para todos os cargos internos da corporação, como superintendentes e diretores, passa pelo crivo do governo federal. Por fim, Paiva reclama do contingenciamento regular que é feito no orçamento da Polícia Federal.

“A falta dessa autonomia é que pode prejudicar a Polícia Federal, porque sem dinheiro, sem evitar o aparelhamento político da polícia, ela vai estar sempre sujeita a uma atuação que depende do governo da vez”, diz o presidente da ADPF.

Autonomia da PF: PEC está no Congresso há 10 anos

Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê a autonomia formal da Polícia Federal foi apresentada na Câmara dos Deputados em 2009. Na justificativa, argumenta-se que o projeto visa “assegurar a autonomia institucional necessária à construção da Polícia Federal como uma Polícia Republicana, que atua a serviço do Estado e não de governos”.

A proposta foi desarquivada neste ano a pedido do deputado João Campos (PRB-GO) e aguarda um parecer do relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Casa, o deputado Felipe Francischini (PSL-PR), que também é presidente do colegiado.

O presidente da ADPF cobra um “empurrãozinho” de Moro para que o tema volte a ser debatido no Congresso. “Do ministro Moro a gente espera, inclusive, que ele apoie a autonomia da Polícia Federal, o mandato para o diretor-geral, só que (...) nós não tivemos nenhuma sinalização de que esses assuntos serão priorizados”, reclama Paiva.

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