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Celso de Mello
Celso de Mello, ministro do STF.| Foto: Rosinei Coutinho/STF

Desde antes da eleição de 2018, o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores são acusados por opositores de flertarem com ideias do nazismo. Recentemente, uma insinuação nesse sentido partiu do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello. “Guardadas as devidas proporções, o ‘ovo da serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (de 1919 a 1933), parece estar prestes a eclodir no Brasil!”, disse Mello em uma mensagem privada vazada para a imprensa.

A comparação de Mello entre o bolsonarismo e o nazismo ocorre logo depois de duas polêmicas sobre supostas referências a grupos neonazistas feitas por membros do governo e seus apoiadores.

Recentemente, o presidente Bolsonaro e alguns de seus partidários, como as ministras Tereza Cristina, da Agricultura, e Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apareceram em vídeos e imagens publicadas em redes sociais tomando copos de leite – o que, segundo críticos do bolsonarismo, seria uma alusão a um movimento neonazista norte-americano. Bolsonaristas alegam que o presidente e as ministras apenas participaram de um desafio proposto pela Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite).

Após os protestos pró-Bolsonaro do dia 31 de maio, outra polêmica: opositores do governo apontaram referência a um movimento ucraniano acusado de ser neonazista, o Pravy Sektor, em uma bandeira rubro-negra com um tridente usada por manifestantes. O embaixador da Ucrânia publicou uma carta desmentindo a informação de que a bandeira usada seja do Pravy Sektor.

A referência ao nazismo feita por Celso de Mello e outros opositores do governo causa revolta no ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. Em entrevista à revista Veja, o ministro-general afirma que esse tipo de comparação "não contribui com nada para serenar os ânimos". "[Adolf] Hitler exterminou 6 milhões de judeus. Fora as outras desgraças. Comparar o presidente a Hitler é passar do ponto, e muito", disse, que já prestigiou presencialmente as manifestações em Brasília ao lado de Bolsonaro.

Há exagero na comparação com a ascensão do nazismo?

Há fundamento histórico na fala do ministro Celso de Mello? Ou ele incorreu no tipo de argumentação que se costuma chamar ironicamente de Reductio ad Hitlerum – isto é, uma tentativa de rebaixar o adversário comparando suas visões com as de Adolf Hitler e do nazismo?

Para o historiador Julio Cesar Chaves, doutor pela Université Laval (Canadá) e professor da UPIS - Faculdades Integradas, as duas situações históricas em questão têm diferenças relevantes, mas a comparação com o nazismo pode ser útil. “O objetivo da comparação não é só você apontar as semelhanças, é apontar também as diferenças”, afirma.

Ele recorda, em primeiro lugar, que “ambos foram eleitos democraticamente”, mas em circunstâncias econômicas muito distintas. “O contexto que elegeu Hitler era de crise social e econômica muito grave, gravíssimo. A crise na Alemanha pós-guerra, pós-Primeira Guerra Mundial, já era muito grave, e essa crise foi agravada mais ainda pela crise de 1929. A inflação chegou a 1 bilhão por cento.”

Para Chaves, a situação alemã no final da República de Weimar era muito mais grave do que a do Brasil na época da eleição de Bolsonaro. “O Bolsonaro foi eleito num contexto de crise econômica e política? Sim, mas não tão grave quanto o contexto da Alemanha que elegeu Hitler.”

Por outro lado, o historiador vê algumas semelhanças entre o bolsonarismo e o fascismo, como o culto ao líder e a ideia de que o líder cultuado seja a única alternativa viável ao socialismo e ao comunismo.

“Para eles, não existe outra alternativa: ‘Ou a gente apoia o Bolsonaro ou o PT volta. Se o PT voltar, o socialismo ou o comunismo serão instaurados no Brasil’. Esse era um discurso de legitimação do fascismo nas décadas de 1920 e 1930. Eles se apresentavam como a única alternativa ao que estava acontecendo”, analisa.

Chaves recorda que um fenômeno parecido já ocorreu na história do Brasil, quando Getúlio Vargas instaurou o Plano Cohen como alternativa a uma suposta ameaça comunista no país, e o país entrou no Estado Novo, regime de inspiração fascista.

Outra semelhança do bolsonarismo com o fascismo, para o historiador, está no discurso contra as minorias. “A gente pode se perguntar se, na prática, o governo Bolsonaro está sendo ruim para as minorias ou não. Isso já é outra discussão. Mas o discurso vai nesse sentido”, afirma ele.

Em relação aos símbolos usados em manifestações, Chaves considera que a recorrência de casos em que referências nazistas têm aparecido justifica a desconfiança das pessoas. Apesar disso, segundo ele, “taxar as manifestações pró-Bolsonaro de fundamentalmente fascistas ou neonazistas é um exagero”, porque elas abrigam todo tipo de referências e símbolos, inclusive a bandeira de Israel.

As possíveis explicações para as referências ao nazismo

Apoiadores do presidente têm desmentido as acusações de flerte com o nazismo e apresentam suas versões para o uso da bandeira rubro-negra com tridente e para os gestos com copos de leite.

O embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, publicou uma carta à revista Veja em que negou a teoria de que a bandeira usada na manifestação fosse do Pravy Sektor.

“A bandeira rubro-negra simboliza a nossa terra e o sangue de nossos heróis derramado por liberdade, independência e soberania da Ucrânia. Essa bandeira foi usada desde o século XVI pelos cossacos ucranianos nas lutas contra invasores estrangeiros, e, por isso, durante o século passado e no começo do século XXI, virou o símbolo de luta dos ucranianos contra ocupação, chauvinismo e imperialismo russos”, explicou o diplomata.

Ainda segundo Tronenko, “o tridente é o brasão oficial do nosso estado desde época do Príncipe Volodymyr, que levou o cristianismo para Rus de Kyiv no ano 988, e simboliza a Santíssima Trindade”.

Sobre o copo de leite, o enredo é mais complexo. Nos EUA, há alguns anos, membros da chamada alt-right – direita que surgiu em fóruns da internet e ajudou a eleger Donald Trump como presidente – começaram a usar o copo de leite como símbolo em referência a uma característica genética que diferencia pessoas de raça branca das outras: elas são, geralmente, menos intolerantes à lactose.

No Brasil, alguns membros da cultura alt-right nacional vinham usando memes com referências ao símbolo do copo de leite há algum tempo. Em uma live transmitida pelas redes sociais no dia 28 de maio, o presidente Jair Bolsonaro tomou um copo de leite diante da câmera, e o gesto foi visto como um aceno a esse grupo de internautas.

Bolsonaro toma leite em live nas redes sociais.
Bolsonaro toma leite em live nas redes sociais.| Reprodução

A teoria ficou mais plausível depois que o jornalista Allan dos Santos, do Terça Livre, um dos sites mais populares entre a alt-right brasileira, tomou um copo de leite em uma transmissão ao vivo no dia seguinte e afirmou: “Entendedores entenderão”.

Apoiadores do presidente desmentiram a associação com o nazismo. Bolsonaro e as ministras Damares e Tereza Cristina, que também gravaram vídeos fazendo o gesto, estariam somente participando do "Desafio do Leite", campanha para promover o consumo de leite feita pela Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite) nas redes sociais.

Assim como em outras ocasiões em que a realidade do Palácio do Planalto e a subcultura da alt-right se confundiram no atual governo, é difícil saber até que ponto a referência pode ter sido proposital.

"Labirinto de ironias" complica a interpretação

A sugestão de uso de simbologia nazista entre bolsonaristas costuma ser incentivada, em alguma medida, pelos fóruns da subcultura da alt-right brasileira.

Membros importantes do governo, como o assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Filipe Martins, e os irmãos Carlos e Eduardo Bolsonaro, filhos do presidente, têm proximidade com pessoas que participam ativamente desses fóruns.

Uma das diversões de membros desse tipo de subcultura é confundir os normies – termo em inglês que eles usam para chamar as pessoas de comportamento mais convencional – com camadas de humor e ironia que tendem a ser pouco compreendidas fora desse submundo.

“É tipo um aperto de mão secreto. Uma pessoa de fora, se assiste a um vídeo com uma pessoa tomando um copo de leite, não vai ver nada de mais. O gesto, para quem entende, serve para mandar aquela mensagem: ‘Olha, eu sou um de vocês, nós estamos juntos’. Ainda tem o prazer de pensar: ‘A gente está se mandando essa mensagem na frente de todo o mundo, mas as pessoas não estão vendo, ninguém sabe’”, diz Rodrigo Nunes, doutor em Filosofia pela Universidade de Londres e professor da PUC-Rio.

A defesa de ideias consideradas radicais é exagerada pelos usuários de forma humorística, mas nem sempre o limite entre piada e opinião real fica claro. Essa ambiguidade acaba sendo um mecanismo de proteção, já que os autores dos conteúdos nunca podem ser acusados de defenderem, com total convicção, as ideias com que flertam.

“A técnica se alimenta justamente dessa ambiguidade do texto, decodificável de maneira diferente para grupos diferentes”, diz Nunes. “Essa dúvida é uma parte integrante dessa técnica de comunicação que eles aprenderam com a alt-right americana”, afirma Nunes.

Em um livro que analisa a cultura alt-right dos Estados Unidos e a ascensão de Donald Trump – intitulado Kill All Normies: Online Culture Wars From 4Chan And Tumblr To Trump And The Alt-Right –, a autora Angela Nagle diz que, no submundo da alt-right, ”a interpretação e o julgamento são contornados através de truques e camadas de autoconsciência metatextual e ironia”.

Na opinião da autora, as múltiplas camadas de humor “permitem que coisas genuinamente sinistras se escondam no meio do labirinto de ironia”. Ela lamenta a dificuldade, no atual contexto, de separar “o real do performático, o concreto do abstrato, e o irônico do falso-irônico”.

Tanto a polêmica do copo de leite como a do vídeo com referências nazistas que levou à demissão do ex-secretário de Cultura, Roberto Alvim, têm em sua origem esse "labirinto de ironias" em que também costumam circular os membros da alt-right brasileira na internet.

No segundo caso, no entanto, o filósofo considera que Alvim precisou ser expulso do jogo porque “perdeu a mão” na brincadeira— o ex-secretário gravou vídeo em que lia um texto com referências ao discurso do ex-ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels.

“Ele queria mandar uma mensagem. O objetivo ali não era, obviamente, citar explicitamente o nazismo, porque isso ninguém faz. É demais para qualquer um, tanto é que ele acabou sendo demitido. O que ele queria era mandar um sinal discreto que os entendedores entenderiam, mas passaria debaixo do radar das outras pessoas. Só que ele não foi suficientemente discreto, e acabou sendo pego.”

Para Nunes, o labirinto de ironias acaba sendo politicamente útil. “Isso permite a esses grupos se colocarem nessa posição de ‘pô, mas ninguém mais tem senso de humor? A gente está só fazendo uma piada!’. Isso ajuda eles a se colocarem, por um lado, na posição de defensores da liberdade de expressão, do bom humor, da ironia e da brincadeira e, por outro lado, como vítimas de uma cultura que se tornou séria demais, que patrulha o discurso das pessoas. Ao mesmo tempo, facilita a eles comunicar os conteúdos das crenças políticas deles de maneira indireta.”

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