O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) disse que havia um “vácuo” nas regras sobre a natureza pública ou privada de presentes recebidos na Presidência, especialmente a partir de 2022, e sugeriu que, na dúvida, a Justiça deveria beneficiá-lo, considerando-o inocente pela suspeita de se apropriar de joias que recebeu da Arábia Saudita.
Em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo durante um café em Abadiânia (GO), Bolsonaro se defendeu das suspeitas de que teria cometido alguma irregularidade ou crime na venda de itens valiosos que recebeu como presidente. Disse, em primeiro lugar, que seu ex-ajudante de ordens Mauro Cid tinha “autonomia”, negando com isso ter ordenado que ele vendesse dois relógios de alto valor nos Estados Unidos e lhe entregasse o dinheiro obtido.
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Além disso, Bolsonaro também mencionou normas que, em tese, poderiam afastar qualquer irregularidade na apropriação privada das joias que recebeu. Citou, em primeiro lugar, a Portaria 59, de 2018, da Secretaria-Geral da Presidência da República, que dispõe sobre a política para a gestão de bens históricos e artísticos e que considera joias, semijoias e bijuterias como bens “de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo recebedor”.
A expressão é relevante porque, em 2016, o Tribunal de Contas da União decidiu que itens “personalíssimos” recebidos de presente pelo presidente da República poderiam ser incorporados a seu acervo privado e, assim, dispensados da incorporação ao patrimônio público. Na época, contudo, o ministro Walton Alencar, relator dessa decisão, deixou claro que itens de elevado valor deveriam ser de propriedade da União.
“Imagine-se, a propósito, a situação de um Chefe de Governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, disse Alencar à época.
Por outro lado, nem as portarias mencionadas por Bolsonaro e nem a decisão do TCU definem se relógios seriam bens de natureza personalíssima ou não.
Nesta sexta, Bolsonaro disse que falta uma lei para detalhar que tipo de presente deve ser considerado bem público e qual pode ser considerado particular. Também afirmou que há uma equipe de servidores concursados na Presidência que classificam os presentes como personalíssimos ou não, indicando assim que não foi ele quem teria decidido ficar com as joias.
“Todos os ex-presidentes tiveram problema. A legislação é confusa, de 1991, se não me engano. Tem uma portaria de final de 2018, do governo Temer, e ali está dito o que é personalíssimo. E quem diz é um órgão da Presidência [...] Essa equipe não é comissionada, é [de] pessoas antigas, e classificou como personalíssima, entra no acervo pessoal do presidente”, disse.
Em 2021, durante o próprio governo de Bolsonaro, a portaria de 2018 foi revogada por outra. Questionado sobre isso, o ex-presidente disse que, quando uma norma do tipo é revogada, há uma “vacância”. Depois, disse que o próprio TCU provocou o Congresso para legislar sobre o assunto. “Tem que ter uma legislação que todo mundo, com boa-fé, não tenha problema.”
Bolsonaro detalhou que presentes recebidos no estrangeiro são transportados em outro avião, e encaminhados diretamente para o setor chamado Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) da Presidência para cadastro e classificação. “Não tenho acesso a tudo que chega lá. Tenho 9 mil itens, metade camisetas e bonés, o que fazer com isso aí? Está guardado num canto, bem guardado, mas é só dor de cabeça”, disse – esses itens também são considerados personalíssimos, junto com outros como perfume e vinhos.
Bolsonaro ainda foi indagado sobre eventuais presentes recebidos em 2022, último ano dele na Presidência, e quando a portaria de 2018, que considerava joias itens personalíssimos, já havia sido revogada. “Tem que se basear no que está escrito. Até 2021, tudo certo? A partir de 2022, não está definido o que está personalíssimo. Não quer dizer que seja ou não seja. Um relógio, por exemplo... Não está definido”. Perguntado se essa avaliação deveria ficar com a Justiça, Bolsonaro respondeu: “Fica no ar. E em dúvida, tem que verificar o lado, está certo?”
Na investigação sobre o caso, conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a Polícia Federal (PF) imputa a Bolsonaro a suspeita de peculato e lavagem de dinheiro, considerando, de antemão, que as joias deveriam necessariamente ser incorporadas ao patrimônio público. As declarações do ex-presidente, lançando dúvidas sobre isso, indica que sua defesa deverá tentar questionar se ele era obrigado a devolver esses presentes.
Lula e Dilma também ficaram com presentes, mas não foram acusados de peculato
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) também tiveram problemas depois que deixaram seus primeiros mandatos levando presentes recebidos quando ocupavam o Palácio do Planalto.
Em 2019, ao fiscalizar os presentes recebidos pela Presidência de 2003 a 2016, o TCU constatou que Lula se apropriou de 434 objetos dados ao Brasil por chefes de Estado estrangeiros durante seus dois primeiros mandatos. Dilma Rousseff, por sua vez, tomou para si 117 itens.
Ainda em 2016, 132 presentes dados a Lula foram encontrados pela Polícia Federal num cofre do Banco do Brasil no centro de São Paulo; 21 de maior valor foram depois confiscados pela Presidência. Em 2019, no final da auditoria, o TCU registrou que 360 presentes recebidos por Lula foram localizados no Galpão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e foram transportados de volta para Brasília. Outros 74 não foram localizados.
Já os presentes recebidos por Dilma foram encontrados num Galpão da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados na Região de Porto Alegre, em Eldorado do Sul (RS). No local, no entanto, não foram localizados 6 dos 117 presentes identificados: uma rede de descanso, dois relógios de mesa, uma travessa de madeira, além de duas pinturas, uma de tapeçaria e outra de tecido. Segundo representantes da ex-presidente, eles teriam ficado nas dependências da Presidência. Uma inspeção da Presidência não encontrou os itens e, por isso, Dilma foi condenada na Justiça a pagar R$ 4,8 mil para reparar o dano.
Dilma e Lula não foram acusados de peculato nessas investigações.
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