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Acusação de Moro sobre interferência de Bolsonaro na Polícia Federal pode resultar em abertura de processo contra o presidente da República.
Acusação de Moro sobre interferência de Bolsonaro na Polícia Federal pode resultar em abertura de processo contra o presidente da República.| Foto: Evaristo Sá/AFP

Ao anunciar que entregaria o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública, o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro acusou Jair Bolsonaro de tentar interferir politicamente na Polícia Federal. O presidente da República exonerou nesta sexta-feira (24) o então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, aliado de Moro, que reagiu pedindo demissão. A troca no comando da corporação vinha causando atrito entre os dois desde agosto do ano passado. Bolsonaro disse, durante pronunciamento, que a prerrogativa era dele.

Segundo juristas, o discurso de despedida de Moro pode enquadrar o presidente em cinco crimes e abre espaço para um pedido de impeachment. O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu que o STF abra inquérito e ouça o ex-ministro após acusação de interferência na PF por Bolsonaro.

Lideranças no Congresso Nacional, de diferentes correntes políticas, já falam na instalação de um processo de afastamento. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, afirmou que a OAB irá analisar os indícios de crimes apontados pelo ex-ministro.

Moro convocou coletiva de imprensa na manhã desta sexta para anunciar sua demissão. Ele disse que perdeu a carta branca dada a ele pelo presidente e que não pode concordar com interferências na Polícia Federal.

“Presidente me disse mais de uma vez, expressamente, que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pusesse colher informações, que ele pudesse colher relatórios de inteligência. Não é o papel da PF prestar esse tipo de informação”, disse Moro. “O presidente tinha preocupação com inquéritos em curso no STF e a troca seria oportuna da PF por esse motivo. Também não é razão que justifique a substituição, é algo que gera grande preocupação”, afirmou o agora ex-ministro.

Bolsonaro pode ser enquadrado em crime de responsabilidade

Na avaliação de juristas ouvidos pela reportagem, a tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal pode ser enquadrada como crime e pode, inclusive, ser motivo de impeachment do presidente por crime de responsabilidade.

Os dois advogados concordam que Bolsonaro pode ter cometido crime de responsabilidade. “Grave essa informação de 'interferência política no comando da Polícia Federal, com objetivos de obter informações privilegiadas'. É preciso que os fatos sejam apurados”, defende o advogado criminalista David Metzker, sócio do escritório Metzker Advocacia.

“O mais grave é justamente essa interferência no comando da polícia para fins próprios, particulares, quer foi sugerido no pronunciamento. Esse é o fato mais grave, o crime de advocacia administrativa ou de prevaricação, vai depender de como as coisas se apuram. Paralelamente, o crime de responsabilidade”, diz o advogado João Rafael Oliveira, professor de Direito Processual Penal no curso de pós-graduação da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

Para o advogado, a fala de Moro pode enquadrar a conduta de Bolsonaro em três tipos de crime de responsabilidade previstos na Lei do Impeachment (nº 1079/50): 1) expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição; 2) usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim; e 3) proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.

“Se a Constituição determina moralidade pública e cada poder tem que ter seu controle e espaço de atuação, e de fato é uma imoralidade o presidente querer controlar a Polícia Federal e o Moro diz em seu pronunciamento que Bolsonaro queria alguém que ele pudesse ter o telefone, conversa aberta, pode já configurar”, diz Oliveira.

A tentativa de interferir na PF também pode ser enquadrada como quebra de decoro, segundo o advogado. “Você não espera isso de um presidente da República, espera que o presidente não queira interferir indevidamente em investigações”, diz.

Um eventual pedido de impeachment também pode ser embasado na Lei das Organizações Criminosas (nº 12.850/2013), segundo Oliveira. “Uma possível exploração que pode ter, e talvez a oposição se agarre nisso em um pedido de impeachment, é o crime de atrapalhar investigação de crime de organização criminosa”, explica o advogado.

Para a tramitação de um processo de impeachment no Congresso, não é necessário que haja provas das acusações de Moro. O pedido pode ser feito com base apenas nas declarações do ministro ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a quem cabe aceitar ou recusar. Uma vez aceito, o pedido começa a tramitar e forma-se uma comissão especial. Oliveira resgata o exemplo do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, que foi cassado pelo Congresso, mas acabou absolvido depois no Supremo Tribunal Federal (STF).

Bolsonaro também pode ter cometido crimes previstos no Código Penal

Além dos crimes de responsabilidade que podem ser apurados com base nas declarações de Moro, também há possíveis crimes previstos no Código Penal que podem ser investigados. “Ele narra no pronunciamento dele alguns crimes, todos em tese... precisa de investigação, mas alguns crimes”, diz Oliveira.

“Precisa de uma análise mais pormenorizada, mas vejo que pode ser analisada possível conduta de falsidade ideológica e crime de responsabilidade. Após uma devida análise, pode ser que configure a advocacia administrativa também”, diz Metzker.

O crime de falsidade ideológica está previsto no artigo 299 do Código Penal. “Ele [Moro] disse que não assinou o decreto e nem foi chamado a assinar e no Diário Oficial da União saiu como se ele tivesse assinado”, explica Oliveira. O decreto a que ele se refere é a exoneração de Valeixo, que apareceu no Diário Oficial desta sexta-feira (24) assinada por Moro. Em seu discurso, Moro negou que tenha assinado a exoneração de Valeixo e disse que só ficou sabendo da demissão do aliado quando viu o Diário Oficial da União.

Metzker e Oliveira também concordam que pode ter havido ainda crime de advocacia administrativa por parte do presidente. “Sendo servidor público e diretamente querer proteger interesses privados, o que deu a entender no pronunciamento, também pode configurar esse crime”, explica Oliveira.

O coordenador na ABDConst também aponta para um possível crime de prevaricação de Bolsonaro. “No momento em que ele solicita ao Moro informações para cuidar do inquérito no STF, pode configurar, vai depender de investigação”, afirma.

Metzker, porém, discorda. “Diante do que o Moro falou, não vejo [crime de prevaricação]. Todavia, a depender das investigações e verificar que há interesse pessoal, pode configurar sim”, disse.

Os crimes comuns que Bolsonaro pode ter cometido podem embasar pedidos de impeachment, segundo Oliveira. “Esses crimes comuns também podem servir como fundamento para impeachment”, diz o advogado.

Oliveira ressalta, porém, que ainda é preciso investigar todas as hipóteses. “O pronunciamento foi forte, duro, indicou fatos graves, mas não trouxe fatos concretos. Deixa em aberto todas essas possibilidades de crime”, diz.

Metzker ressalta, ainda, que independente de pedido de impeachment, Bolsonaro pode ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a pedido da Procuradoria-geral da República (PGR). “A Constituição permite investigação do presidente exclusivamente por atos praticados durante a vigência do mandato”, diz.

Movimentações no Congresso

Parlamentares de diferentes partidos têm anunciado interesse em pedir a presença de Moro no Congresso ou mesmo a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a fala do ex-ministro. A ideia de CPI foi proposta pelo deputado Aliel Machado (PSB-BA). O Cidadania também prepara um pedido de criação de CPI. Já a líder do PCdoB na Câmara, Perpétua Almeida (AC), anunciou que a bancada apresentará um pedido de convite para Moro e também para o ex-diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo.

O senador Ângelo Coronel (PSD-BA), presidente da CPI das Fake News, disse que convocará Moro para falar no colegiado. "Moro fez praticamente uma delação premiada", escreveu o parlamentar em seu perfil no Twitter. A CPI das Fake News, que tem a participação de deputados e senadores, é contestada por aliados do presidente Jair Bolsonaro desde seu início. Recentemente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que integra a comissão, entrou com uma ação no STF contra a prorrogação dos trabalhos do colegiado. A CPI tinha como prazo inicial para encerramento o dia 14 de abril, mas foi estendida por mais seis meses por conta da pandemia de coronavírus.

Já o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) divulgou que apresentará um pedido de impeachment de Bolsonaro. A requisição do parlamentar se somará a outras que foram protocoladas recentemente no Congresso, como uma elaborada pelo PDT, assinada pelo presidente da legenda, Carlos Lupi, e pelo presidenciável Ciro Gomes.

Há ambiente para um impeachment?

Para o cientista político André Rosa, a possibilidade de abertura de um processo de impeachment ainda é remota. “Não acredito em impeachment nesse momento. Ainda é cedo para pensar nessa possibilidade. É preciso analisar o comportamento dos Congressistas nos próximos dias”, diz.

Para ele, a principal consequência da saída de Moro do governo será na popularidade do presidente. “O Planalto perde uma grande parcela da opinião pública que o apoiava desde a operação Lava Jato. A maior perda é com relação a isso. Talvez o ponto mais crítico seja com relação da interferência na PF, algo que demande provas”, completa.

Mas as reações de lideranças de diferentes correntes políticas ao pronunciamento de Sergio Moro indicam que um eventual pedido de afastamento de Bolsonaro encontraria eco no Congresso Nacional. "O ministro Moro entregou o presidente em vários crimes, previstos no Código Penal, e também crimes de responsabilidade, descritos na Constituição. O Congresso Nacional não pode assistir isso e não tomar providências", declarou Perpétua Almeida à Gazeta do Povo.

A presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), postou em uma rede social, em referência à fala de Moro: "estas acusações, se comprovadas, são gravíssimas, e podem caracterizar crime de responsabilidade".

O deputado Junior Bozzella (PSL-SP) afirmou que está em diálogo com advogados do seu partido para avaliar a possibilidade da apresentação de um pedido de impeachment ou outra medida jurídica contra Bolsonaro. Segundo o parlamentar, Moro "deixou um crime flagrante do presidente da República". Bozzella foi eleito em 2018 como apoiador de Bolsonaro, mas rompeu com o presidente à época do racha entre o grupo bolsonarista e o grupo do PSL mais alinhado com o comandante da legenda, o também deputado Luciano Bivar (PE). Além de Bozzella, fazem parte do nicho dos ex-bolsonaristas do PSL parlamentares como Joice Hasselmann (SP), Julian Lemos (PB) e Dayane Pimentel (BA).

Para que a abertura de um processo de impeachment seja aprovado na Câmara, são necessários 342 votos. Seria necessária, portanto, uma sintonia entre parlamentares de direita, esquerda e centro — nenhuma das correntes tem número suficiente para, de forma isolada, garantir o placar. Bozzella disse não ver problema em dialogar com políticos de outras vertentes. "Aí não se discute mais direita ou esquerda, PT ou PSL. O pronunciamento de Moro deixa nítido que é necessária a união da sociedade brasileira contra alguém que está se equivocando, contra alguém que está assassinando a Constituição", declarou.

A aceitação de um processo de impeachment é uma decisão que compete exclusivamente ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O deputado, que nos últimos dias entrou em rota de colisão com Bolsonaro, não se manifestou publicamente sobre as declarações de Sergio Moro.

"Não existem condições para impeachment", diz vice-líder do governo

O deputado José Medeiros (Podemos-MT), vice-líder do governo na Câmara, afirmou à Gazeta do Povo que em sua opinião a ideia de um processo de impeachment de Bolsonaro "não se sustenta".

"A realidade é o que é, e não aquilo que as pessoas gostariam que fosse. E a realidade é que não existem condições para impeachment. Os critérios para impeachment são: economia em frangalhos; falta de apoio popular; apoio político zerado. E essas condições não estão reunidas no caso atual", disse.

Medeiros rejeita ainda a ideia de que Bolsonaro teria cometido crime de responsabilidade. "Isso depende muito da avaliação de quem faz. Moro disse que o presidente gostaria de ter na PF alguém mais próximo, de sua confiança. Mas todos os cargos no governo federal são de confiança, são vinculados ao presidente da República", declarou.

Para o deputado, o que houve entre Moro e Bolsonaro foi um "conflito de pensamento". "Moro tem cabeça de juiz, não de político. Por isso o conflito. Mas daí a falar que é crime, é outra história", disse.

Veja quais são os crimes que podem ser apurados a partir do discurso de Moro: 

Falsidade ideológica, previsto no Código Penal:

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.     (Vide Lei nº 7.209, de 1984)

Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.

Prevaricação, previsto no Código Penal:

Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

Advocacia administrativa, previsto no Código Penal: 

Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário:

Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

Crime de responsabilidade, previsto na Lei 1.079/1950:

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

[...]

4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;

[...]

6 - Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim;

7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

Obstrução de investigação de organização criminosa, prevista na Lei 12.850/2013:

Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

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