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antonio di pietro, ex juiz da mãos limpas
Antonio Di Pietro, ex-juiz da Mãos Limpas, operação italiana que inspirou a Lava Jato, em palestra em Curitiba, promovida pela Lec Experience.| Foto: Andrea Torrente/Gazeta do Povo

O ex-juiz italiano Antonio Di Pietro, membro da força-tarefa da Operação Mãos Limpas, que no Brasil inspirou a Lava Jato, não tem dúvida: a origem ilícita das conversas atribuídas a procuradores e ao ex-juiz Sergio Moro publicados pelo site The Intercept Brasil deveria importar mais que o conteúdo. “Acho que quem publicou essas interceptações primeiro deveria justificar como as obteve. Se foram frutos de um crime, não deveriam ter sido publicadas”, afirma. Os diálogos foram obtidos ilegalmente do aplicativo Telegram pela ação de um hacker, que está preso.

A exatos 25 anos do fim da operação que abalou o sistema político italiano, Di Pietro ainda é convidado na Itália e no exterior para contar os bastidores da atuação da força-tarefa e traçar paralelos com a Lava Jato. “Dizer que a Mãos Limpas ou a Lava Jato são investigações falsas é um modo para não enfrentar a realidade. Teve corrupção na Itália e teve aqui também”, disse em palestra em Curitiba, nesta quarta-feira (4).

Hoje, aos 68 anos, Di Pietro atua como advogado criminalista especializado em crimes de colarinho branco e crimes contra a administração pública. Em dezembro de 1994, enquanto a Mãos Limpas estava sob o fogo cruzado da política, ele abandonou a toga. A partir de 1996 entrou na política e, ao longo dos anos, ocupou diferentes cargos nos Parlamentos italiano e europeu, além de ter sido ministro da Infraestrutura em dois governos de centro-esquerda.

Di Pietro atuou pelo Ministério Público durante a Operação Mãos Limpas e ocupou cargo equivalente ao de procurador no Brasil. Contudo, Di Pietro é chamado de juiz porque no sistema judiciário italiano, diferentemente do brasileiro, o Ministério Público é um órgão da magistratura. Di Pietro atuava como parte da acusação nos processos. Apesar do então juiz Sergio Moro ter dito que a Lava Jato é uma inspiração da Mãos Limpas, a figura de Di Pietro mais se aproxima ao do procurador do MPF, Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, em Curitiba.

Ele não vê anomalias ou suspeitas de imparcialidades do então juiz Sergio Moro nas conversas com o coordenador da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol. Segundo o ex-juiz italiano, os vazamentos são uma tentativa de deslegitimação da operação. “Dizer que Di Pietro, ou Moro, fez isso ou aquilo é um atalho para desviar a atenção da opinião pública”, afirmou diante da plateia de uma centena de pessoas que participavam de um evento sobre compliance.

Sobre a possibilidade de os juízes errarem, Di Pietro defende: “por isso existem vários graus de juízo”. “Há o juiz que atua politicamente e o que pode roubar. Eu defendo o sistema, não o indivíduo”, completou.

Os golpes sofridos pela Lava Jato nos últimos meses – desde a suspensão do compartilhamento de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) à decisão da Segunda Turma do STF de anular a condenação do ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine – são uma história já vista antes, segundo Di Pietro.

“A imprensa teve grande responsabilidade, positiva e negativa, na evolução da Mãos Limpas”, explicou. No início, a operação italiana gozou de grande apoio da população. Com o tempo, os veículos de comunicação do grupo de Silvio Berlusconi, ex-primeiro ministro e magnata da mídia que também acabou investigado, passaram a ter uma visão mais crítica. “O cidadão se sentiu atordoado. De qual lado está a verdade”, questionou Di Pietro.

O então juiz passou a ser visto como alguém que queria derrubar a classe política para favorecer políticos da oposição. O resultado foi “uma sociedade decepcionada que não acredita em mais ninguém”, afirmou. Confira a entrevista que Antonio Di Pietro concedeu à Gazeta do Povo.

Antonio Di Pietro, ex-juiz da Mãos Limpas, operação italiana que inspirou a Lava Jato, deu palestra em Curitiba.
Antonio Di Pietro, ex-juiz da Mãos Limpas, operação italiana que inspirou a Lava Jato, deu palestra em Curitiba.| Gazeta do Povo

Qual é a sua opinião sobre as conversas privadas divulgadas na imprensa entre membros da força-tarefa da Lava Jato e o ex-ministro Sergio Moro?

Acho que quem publicou deveria justificar como as obteve. Se os diálogos foram frutos de um crime, não deveriam ter sido publicados. Eu acho que o dever do jornalista é informar, não legitimar o cometimento de crimes. Isso como pressuposto.

No mérito, que o juiz converse com os procuradores significa tudo e significa nada. No sentido que é um fato fisiológico, normal e necessário em alguns casos que o juiz converse com os procuradores sobre o estado das investigações.

Então, ao meu ver, a mera afirmação que Moro falava com os procuradores é a descoberta da água quente: com quem tinha que falar Moro para saber como estavam os fatos, para ter informações, para trocar opiniões?

O problema é outro: é saber se essa troca de informações foi feita com o objetivo de buscar a verdade. Se como eu penso, e como me parece que deve ser, essa troca de informação era e é finalizada em busca da verdade, esse é o papel de um juiz e de um procurador.

Me parece uma história já vivida no meu país: a de criminalizar a troca de informações entre procuradores e magistrados para desviar atenção da opinião pública de quem cometeu o crime a quem busca combatê-los.

Os advogados da defesa alegam que não tinham o mesmo acesso a Moro como tinham os procuradores...

Tem uma diferença enorme. A acusação pública busca a verdade, a defesa busca a melhor solução para o cliente. Na Itália a troca de informações é codificada: prevê que o juiz, após receber o dossiê do processo, pode indicar ao procurador quais outras investigações fazer, notificando por escrito.

Mas essa comunicação não deveria ser formal, por meio de documentos, e não via Telegram?

Eu não identifico nenhuma anomalia entre um procurador e um magistrado se confrontarem e, diante dos fatos, ao invés de enviar uma carta, se falarem por telefone e dizer: 'olha que aqui, talvez, precisa investigar essa conta bancária ou precisa ouvir essa testemunha'. Se a finalidade é a busca da verdade, eu acho que não só é um ato legítimo, mas um ato necessário.

O senhor acha mesmo que jornalistas e jornais não deveriam publicar essas informações por serem de origem ilícita?

O jornalista, sobretudo o jornalista investigativo, não só tem o direito, mas o dever de informar. Não criminalizo o jornalista, mas criminalizo quem passa essas informações. E sobretudo, essas informações oriundas de um comportamento criminal, para mim, são inutilizáveis em todos os níveis. Inclusive para fins de tentativa de deslegitimar os magistrados.

A culpa não é do jornalista, mas é preciso refletir: até que ponto existe o direito à informação? Tem um confronto-choque entre o direito à informação e o direito à privacidade.

Este confronto é muito, muito delicado e não pode ser resolvido em duas palavras. Em nome do direito à informação não pode ser sacrificado totalmente o direito à privacidade das pessoas.

O caso Watergate e o caso dos papéis do Pentágono expostos na imprensa são fruto de documentos obtidos ilicitamente e eram de grande interesse público.

Mas o que significa isso? A minha ideia é que eu não quero viver em um país que, em nome de um interesse público, crimes são cometidos. Se vive melhor em um país em que não se cometem crimes e não em um país em que se cometem crimes para descobrir outros crimes.

Não concordo com a ideia de combater um crime cometendo outro crime. Isso legitima o instituto da vingança. Se você matou meu filho, eu te mato. Mas não concordo nisso no plano jurídico. Há quem pense diferente.

O senhor foi juiz e político. Para os políticos se costuma dizer que o político não só deve ser honesto, mas deve parecer honesto. O juiz, além de ser imparcial, não deve parecer imparcial?

Absolutamente sim.

Na sua opinião, esses diálogos entre Moro e os procuradores...

Eu não li os diálogos e não os conheço, portanto não posso julgar. Posso, porém, dizer que se os diálogos eram finalizados para buscar a verdade, não só foram lícitos, mas necessários.

O senhor largou a toga e entrou na política exatamente como Moro...

[interrompe] Não.

Não?

Eu renunciei em 1994 e comecei a fazer política em 1996. Não renunciei para fazer política, mas renunciei para defender a minha investigação como homem livre.

Moro deixou a magistratura para assumir o Ministério da Justiça. Como o senhor avalia essa escolha?

Vou usar uma metáfora futebolística. Penso que qualquer cidadão tem o direito de ser árbitro e de ser jogador. Qualquer cidadão, que é jogador, se ganha um concurso pode ser também árbitro. Mas se um cidadão vira árbitro não pode voltar nunca mais a ser jogador. Porque perde a credibilidade.

Respeito os magistrados que tiram a toga, mas se decidem fazer política, tiram a toga definitivamente. E fecham a experiência judiciária. Não conheço a lei no Brasil, mas conheço a norma italiana e a desaprovo totalmente. Porque na Itália o magistrado pode se tornar um jogador e, depois, voltar a ser árbitro. Eu desaprovo e considero que seja uma das causas da queda de credibilidade do sistema judiciário italiano.

Moro foi o juiz que condenou o ex-presidente Lula e depois se tornou ministro do time que fazia oposição a Lula. Qual é a sua opinião?

Ele [Moro] renunciou à magistratura. Então pode escolher de ser jogador. Eu gostaria que Moro fosse julgado [pela opinião pública], se for necessário julgá-lo, para saber se aquela investigação [Lava Jato] descobriu crimes ou se eram falsos crimes.

Sei que no Brasil tem uma tentativa em curso, igual ocorreu na Itália, de fazer acreditar que houve um golpe judiciário com finalidades políticas e não uma investigação sobre os políticos corruptos. Espero que a opinião pública não fique desinformada ao ponto de ficar confusa em relação à realidade dos fatos.

Outras semelhanças que podemos observar entre Mãos Limpas e Lava Jato é que na Itália a operação abriu o caminho para Silvio Berlusconi e no Brasil para Jair Bolsonaro.

Não é que eu, para não permitir que chegasse Berlusconi, tinha que deixar livre os delinquentes. As consequências de uma investigação legítima não podem ser atribuídas ao magistrado que fez a investigação, da mesma forma que uma intervenção cirúrgica não é culpa do cirurgião.

Se o paciente não se trata e fica doente de novo – porque ele escolhe mal os remédios ou quem deve governá-lo – a culpa não é do cirurgião. Se passa de mal a pior, a culpa é de quem escolheu o pior.

O crime organizado ligado ao narcotráfico é muito forte no Brasil. Como a legislação italiana antimáfia é muito rigorosa, há alguma norma que deveria ser copiada no Brasil?

Na Itália, o fenômeno mafioso é tão intenso que tem sido necessário construir uma legislação antimáfia que beira a constitucionalidade. Três dias atrás a Corte Constitucional declarou ilegítimas três normas do código antimáfia.

Um tema muito debatido é a possibilidade de impedir que, quem foi condenado por determinados crimes, faça negócios com a administração pública. Considero a nossa legislação substancialmente necessária e outros países deveriam tomá-la como exemplo para combater o crime organizado. Por exemplo, o fenômeno dos delatores e o fenômeno do agente provocador.

Está sendo discutido inclusive, mas ainda não é previsto no nosso código, a não punibilidade para quem, antes de ser descoberto e em até seis meses após o cometimento do crime, se arrependa e se apresente à Justiça para delatar os outros. Chegamos até esse limite. É uma norma muito delicada.

Se fossem adotadas algumas ideias da legislação italiana, o Brasil teria muitas mais possibilidades de combater o crime organizado.

Nessa sua passagem por Curitiba encontrará os integrantes da força-tarefa da Lava Jato?

Já tive muitos encontros no passado. Houve troca de informações e fiz conferências com magistrados. Não tem nenhuma outra razão para eu estar aqui [além da palestra].

Irá a Brasília encontrar o ministro da Justiça, Sergio Moro?

Gostaria de evitar para não criar mais uma vez uma inútil polêmica. Como sempre, vejo uma tentativa de especular sobre isso, de fazer polêmicas. Se eu preciso falar com Moro não tenho necessidade de encontrá-lo pessoalmente, posso falar por telefone. Ir lá [a Brasília] para ser filmado pode gerar uma falação sobre isso, evito.

O senhor foi ministro de governos de centro-esquerda. Como avalia politicamente o trabalho do ex-presidente Lula?

Não gostaria de expressar julgamentos políticos sobre o resultado político de Lula. Como aconteceu na Itália com outros políticos, ele teve seus méritos e suas dificuldades. A questão é outra: uma pessoa, que pode ser considerada o salvador da pátria, não pode ter impunidade garantida pelos crimes cometidos.

Respeitando o princípio que todos são iguais perante a lei, deve ser respeitado o trabalho político de Lula a serviço desse país. Eu não tenho informações para discutir isso e não tenho conhecimento para me posicionar.

De Lula pode escrever branco ou pode escrever preto e ambas as versões parecem verídicas, como sempre na política. É um homem que foi eleito pelo povo e como tal deve ser respeitado.

No momento em que foi descoberto que ele cometeu um crime, independente de Moro, a pergunta é: ele cometeu ou não? Hoje temos sentenças que dizem que cometeu.

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