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Coronavírus
Brasil tem escassez de testes do tipo RT-PCR, mais eficientes na detecção do novo coronavírus| Foto: Sajjad Hussain/AFP

Após quatro meses do primeiro caso registrado, o Brasil entrou em um grupo insólito: é um dos dois únicos países (ao lado dos Estados Unidos) a ter mais de um milhão de infectados pela Covid-19. De acordo com números divulgados pelo Ministério da Saúde nesta sexta-feira (19), o país soma 1.032.913 casos da doença desde o início da pandemia. A análise de dados da doença e a avaliação de epidemiologistas, no entanto, indicam que os valores reais podem ser muito maiores. A dolorosa marca do milhão pode ter sido superada há semanas.

ESTATÍSTICAS: veja os números da Covid-19 no Brasil

O primeiro registro de infecção pela Covid-19 no Brasil foi feito no dia 26 de fevereiro. O milionésimo vem 114 dias depois. Como comparativo, os Estados Unidos registraram a doença pela primeira vez em 22 de janeiro e levaram 98 dias para alcançar o registro de um milhão. Embora possa parecer que o avanço brasileiro tenha sido menos intenso do que o norte-americano, um dado coloca em xeque essa visão: o número de testes realizados.

De acordo com informações do Ministério da Saúde e de plataformas que coletam dados sobre a Covid, o Brasil conseguiu testar efetivamente perto de 2 milhões de pessoas. Os números se referem aos testes tipo PCR, mais eficientes e feitos em laboratórios, e não os testes rápidos (que podem apresentar falhas).

Os Estados Unidos já concluíram mais de 27 milhões de testes deste tipo, como aponta o Worldometers, um banco de dados que coleta informações oficiais e é utilizado por jornais e universidades respeitados, como a Johns Hopkins. Na prática, isso pode significar que se o Brasil tivesse testado mais, teria um número muito maior de infectados.

Em um cálculo rápido, que leva em contra a proporção populacional, os norte-americanos testaram 13 vezes mais do que os brasileiros, ainda que o número de casos nos EUA (2,2 milhões) seja pouco mais do dobro dos registrados no Brasil.

“Com certeza há muita subnotificação”, destaca André Ricardo Ribas de Freitas, médico epidemiologista e professor da Faculdade São Leopoldo Mandic. O profissional, que coleta dados e faz a análise para ferramenta que mantém, indica que “todos os países tem uma parte dos casos que não é identificada”. “Mas, no Brasil, isso é muito maior. Há um problema sério de vigilância”, destaca.

Governo é otimista demais em relação ao alcance da doença

A análise destoa, sobretudo, do otimismo do Ministério da Saúde, que costuma defender que o país tem baixa incidência da doença e mortes por milhão de habitantes. Em entrevista coletiva na noite da quinta-feira (18), por exemplo, o ministério defendeu que o Brasil era apenas o 16º em número de casos por milhão de habitantes e 10º em números de mortes por milhão. Afirmação confirmada pelas estatísticas. Sem citar, no entanto, que países como Bélgica, Reino Unido, França e Espanha – colocados como piores do que o Brasil nesses quesitos – têm números mais confiáveis por terem testado muito mais em relação à contaminação. No caso das mortes, por outro lado, o Brasil apresenta um dos protocolos mais rígidos em relação aos registros.

O índice de letalidade (que é a porcentagem de mortes dentre as pessoas que contraíram a Covid-19) também podem indicar números piores do que aqueles que o país consegue computar. No país, esta taxa tem se aproximado de 5% nas últimas semanas, enquanto as análises científicas indicam que o esperado seria ficar em torno de 1%. Esse descompasso indica que o Brasil consegue testar apenas pacientes em estágios mais graves da doença, com mais risco de morrer. Infectados com sintomas leves e médios não estariam sendo testados – ainda que possam transmitir a doença e mantê-la circulando no país por mais tempo do que se espera.

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A tese é defendida, inclusive, por ex-membros do governo federal. Em entrevista ao canal do Youtube do microbiologista Átila Iamarino, o doutor em epidemiologia Wanderson Oliveira destacou que o Brasil “tem um volume de casos muito maior [do que os divulgados]”. “A letalidade real da Covid, baseada em alguns estudos, é de menos de 1%. Deve ser em torno de 0,7, chegando até 1% ou 1,2%, dependendo do lugar e das características inerentes a população. (...) Se pegar o dado do Brasil e transportar para uma taxa de letalidade de 0,9%, esse [resultado] seria o número [real] de casos”, disse o ex-secretário de Vigilância Sanitária do ministério, há duas semanas, quando o Brasil ainda tinha cerca de 600 mil infectados registrados.

À época, Oliveira calculava entre 3,5 milhões e 4 milhões de casos “no mundo real”. “Possivelmente, é isso que se tem. Estou partindo apenas da letalidade para fazer uma engenharia reversa. Não estou inventando a roda, mas falando baseado em artigos”, descreveu. Hoje, esse modelo matemático bateria a casa dos 5 milhões de registros.

Situação da Covid-19 é incerta

Ainda na coletiva desta semana, o Ministério da Saúde alegou que os casos de Covid-19 podem estar se estabilizando no Brasil. "Quando você olha a inclinação da curva epidemiológica de novos casos por semana no Brasil, dá a entender que nós estamos entrando em um ‘platô’ [uma estagnação]. Que a inclinação da curva se encaminha para a estabilidade. É claro que essa tendência de uma estabilidade de novos casos a gente verificou da semana passada para a atual. Nós precisamos confirmar se essa tendência permanece com o passar dos próximos 15 dias", disse o secretário de Vigilância, Arnaldo Correia, durante a coletiva a entrevista.

A pasta sustenta que na última semana epidemiológica foram registrados 177.668 novos casos – um número 2% superior aos 174.406 da semana anterior. Em maio, a alta de novas infecções era mais intensa.

Os dados da sexta-feira, no entanto, contradizem essa tendência. O Brasil bateu um recorde absoluto de novas infecções, com 54 mil registros em 24 horas. O número mais alto atingido anteriormente também vem desta semana. Na quarta-feira, foram quase 35 mil novos casos computados. Por quatro dias seguidos, o país teve mais de 1,2 mil mortes.

“O Brasil já é o país que está tendo mais mortes diárias. O Chile deu uma piorada e talvez até passe o Brasil. Ainda assim, isso mostra uma tendência ascendente. A maior parte dos países conseguiu controlar [a pandemia] até o centésimo dia. O Brasil é um dos poucos países ainda em cenário de ascensão. As atitudes tomadas estão sendo ineficientes”, critica o epidemiologista André Freitas.

“A gente fala: ‘ah, o Amazonas está melhorando’. Está. Mas, em compensação, [a situação] está piorando no interior de São Paulo. Cada região está tendo problema em uma época [diferente]”, indica.

De fato, como aponta o médico, a doença avança para além das regiões metropolitanas e cresce especialmente nas regiões Sul e Sudeste. O que representa grandes desafios e um risco de números ainda piores nos próximos meses. O avanço pelo interior pode pegar um sistema de saúde desprevenido, já que a maioria das cidades pequenas brasileiras não tem estrutura de saúde que comporte atendimentos especializados. O movimento pode fazer com que a procura médica em cidades que são centros regionais ou nas capitais volte a subir.

No segundo caso, o temor é de que a chegada dos dias mais frios, ligados tradicionalmente ao aumento de casos de doenças respiratórias e pulmonares na região Sul e Sudeste, impulsione também o novo coronavírus. “O que podemos ter é uma mudança de área. O drama que observamos nas regiões Norte e Nordeste em abril e maio se repita mais ao sul do país, regiões com alta densidade populacional. Sem planos claros de contenção [da doença], há risco sério de a situação piorar”, diz o médico infectologista Paulo Silveira, que compõe grupos de estudos sobre a Covid-19 no Rio de Janeiro.

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