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Profissionais de saúde se preparam para colher amostras para testes rápidos de coronavírus em drive-thru no estacionamento do Estádio Mane Garrincha, em Brasília.
Profissionais de saúde se preparam para colher amostras para testes rápidos de coronavírus em drive-thru no estacionamento do Estádio Mané Garrincha, em Brasília.| Foto: Evaristo Sá/AFP

Desde o início da pandemia de Covid, a relação do governo federal com estados e municípios tem se revelado tumultuada. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro insiste para o afrouxamento das regras de isolamento social e a reabertura da economia, governadores e prefeitos tentam conter o avanço da doença por meio de medidas sanitárias que ora são mais rigorosas e por vezes menos.

Um estudo de dois cientistas da Universidade de Campinas (Unicamp) calcula que se a atual taxa de isolamento no Brasil for mantida, 6.958 vidas serão salvas nos próximos 14 dias. Como as medidas de quarentena e distanciamento social são determinadas por estados e municípios, especialistas avaliam que a autonomia dos entes locais tem contribuído para poupar vidas.

“O governo federal deveria assumir um papel de coordenação e de diálogo com estados e municípios, mas vemos uma negação da própria pandemia. Governadores e prefeitos tiveram que assumir essa frente de combate”, afirma o advogado e professor André Portugal, do FAE Centro Universitário, de Curitiba.

À medida que as UTIs lotavam por causa da Covid, prefeitos e governadores endureciam o isolamento, ignorando as orientações de Bolsonaro. Em maio, por exemplo, o presidente incluiu salões de beleza, barbearias e academias de esportes na lista de serviços essenciais – que, portanto, estariam liberados para funcionar. Mas estados e municípios se recusaram a reabrir essas atividades.

O caso mais emblemático desse conflito federativo talvez tenha sido a compra, em abril, de centenas de respiradores pelo governo do Maranhão. Após ter sido atravessado por três vezes no negócio – por Estados Unidos, Alemanha e o próprio Ministério da Saúde –, o governador Flávio Dino (PCdoB) montou um verdadeiro esquema de guerra para trazer a carga da China, evitando que fosse interceptada no caminho. Pelos trâmites do governo federal, o Maranhão demoraria três meses para conseguir os equipamentos.

“A autonomia dos entes federados, de fato, ajudou. Eles tomaram decisões que o governo federal não estava tomando. Não ter um consenso entre governadores e presidente, sem dúvida nenhuma, prejudicou a resposta do Brasil à Covid”, avalia Elize Massard, professora em administração pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

TCU aponta omissão do governo federal no combate à Covid

A omissão do governo foi alvo de críticas do Tribunal de Contas da União (TCU). No último dia 24 de junho, o tribunal aprovou por unanimidade um relatório em que avalia as ações do Poder Executivo federal no combate à pandemia. "Não existe um plano estratégico que envolva União, estados e municípios. O que há são trocas de acusações", afirmou o relator, ministro Vital do Rêgo.

A atitude do governo federal de abrir mão de seu papel de coordenador, “não chega a ser um absurdo”, segundo Paulo Schier, professor de Direito da UniBrasil. “A omissão normativa propriamente dita não ocorreu”, diz ele, se referindo à Lei 13.979, sancionada em 6 de fevereiro e que contém as medidas para enfrentamento da emergência do coronavírus.

“O governo federal poderia estabelecer uma política geral de combate à pandemia? Poderia e de certa forma se omitiu. Mas omissão não é algo raro numa federação”, explica Schier. “A autonomia dos estados acaba funcionando como um remédio eficaz.”

O poder de estados e municípios

Para resolver o antagonismo entre os poderes e preservar o equilíbrio federativo, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve que intervir mais de uma vez nos últimos meses.

Em 9 de abril, a alta corte determinou que “não compete ao poder executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social [...] para a redução do número de infectados e de óbitos”.

A Constituição atribui a todas as esferas do poder público a competência sobre a saúde. O que falta, de acordo com os especialistas, é coordenação. “Isso não acontece em grande parte por causa da conduta do governo federal, que se nega a dialogar. Bolsonaro abandonou o presidencialismo de coalizão e adotou o presidencialismo de confrontação”, avalia Portugal.

Os países europeus, no geral, têm governos centrais mais fortes e menos autonomia local. Na Itália, um dos países mais atingidos pela Covid, o primeiro-ministro Giuseppe Conte decretou o lockdown no país inteiro, inclusive em regiões e cidades onde havia poucos ou nenhum caso de contágio.

“Se decretar o lockdown dependesse do governo federal, estaríamos numa situação muito ruim”, diz Alcides Miranda, professor de saúde coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Graças à Constituição, não dependemos do governo federal de uma forma unívoca e unilateral para decretar um lockdown”, explica.

Pacto federativo no Brasil e nos EUA

O pacto federativo no Brasil e nos Estados Unidos nasceu de pressupostos diferentes. Enquanto as 13 colônias inglesas que originaram os Estados Unidos cederam parte da própria autonomia para se unir num Estado federal capaz de enfrentar o domínio britânico, por aqui o movimento foi oposto, do centro para a periferia. Desde a época do Império, o governo brasileiro, incapacitado em administrar um território tão amplo, foi conferindo atribuições aos entes locais.

Independente das raízes do federalismo, os dois países são os que mais acumulam mortes e contágios pelo vírus. “Num estado federativo, a coordenação é sempre mais complicada em políticas públicas. Governantes têm agenda própria, mas não podemos dizer que isso seja determinante para atrapalhar”, avalia Elize Massard, da FGV.

Sobre o mau desempenho no enfrentamento da Covid, na opinião dos especialistas pesa mais a postura dos presidentes dos dois países do que o arcabouço institucional. Bolsonaro e Donald Trump têm mantido uma atitude parecida de minimização e negação do perigo da doença, e de defesa de medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina.

“O que realmente importa é forçar um retorno aos termos de ‘normalidade’ socioeconômica, mesmo que implique em uma ‘naturalização’ da tragédia em curso”, afirma Miranda.

O alinhamento entre os dois chefes de Estado se manifesta também nas críticas à Organização Mundial da Saúde (OMS). Trump anunciou rompimento com a entidade e Bolsonaro ameaça fazer o mesmo.

“O Brasil ainda é filiado à OMS, então os parâmetros científicos para o combate às doenças acabam vinculando o Brasil. Quando o presidente não observa esses parâmetros, ele está tomando decisões ilegítimas”, explica Schier.

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