Ouça este conteúdo
Após a Venezuela ter sua entrada nos Brics (bloco de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, Etiópia, Irã, Egito e Emirados Árabes) vetada pelo Brasil, analistas avaliam que a relação pessoal entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ditador Nicolás Maduro tende a se deteriorar ainda mais.
Nesta quarta-feira (30), a Venezuela retaliou convocando seu embaixador em Brasília, Manuel Vadell, e o encarregado de negócios brasileiro que representa o Brasil em Caracas, Breno Hermann. Esses gestos são considerados atos de protesto na linguagem diplomática.
O veto à Venezuela foi a primeira vez em que o atual governo Lula cumpriu com um ato real seu discurso, até então vazio, de defesa da democracia e reprovação dos abusos de direitos humanos na Venezuela.
Mas a reportagem apurou que a posição no momento no Itamaraty é não retaliar em relação às convocações do embaixador venezuelano e do encarregado de negócios brasileiro. O objetivo é conter uma escalada do atrito diplomático.
Caracas havia solicitado a adesão ao grupo do Brics neste ano, mas foi excluída da lista preliminar de novos membros após o Brasil se opor à sua inclusão durante reunião de cúpula do bloco realizada neste mês na Rússia.
O episódio, que desagradou ao regime chavista e causou ruídos com o governo brasileiro, marca um agravamento na relação pessoal entre Lula e Maduro, que já vinha enfrentado ruídos ao longo dos últimos meses.
"Com essa resistência do Brasil em apoiar a Venezuela e ela ficando fora dos Brics, a Venezuela vai interpretar isso como uma atuação negativa do Brasil. O governo da Venezuela, o Nicolás Maduro, vai [adotar uma postura de] crítico do governo atual aqui no Brasil", avalia o diplomata e embaixador Rubens Barbosa.
Segundo Barbosa, o afastamento entre Lula e o ditador venezuelano também pode enfraquecer o canal de diálogo que o mandatário brasileiro vinha defendendo manter aberto com o regime chavista. Essa linha de ação adotada pelo Brasil entrava em conflito com a de democracias liberais, que defendem sanções e isolamento à Venezuela para conter a ditadura no país.
"Tudo que tinha sido construído antes [por Lula], de aceitar a situação [da crise política em Caracas] sem condenar [Maduro], os arranhões à democracia e aos direitos humanos, isso agora se perde", opina o diplomata.
Lula tinha uma relação de proximidade com o regime bolivariano desde seus primeiros mandatos, quando Hugo Chávez ainda era presidente da Venezuela. Em nome dessa aproximação, o governo Lula atuou para buscar uma solução diplomática em Caracas, mas não obteve sucesso.
Apesar de prejudicado e desgastado, analistas consultados pela Gazeta do Povo avaliam que o impasse entre Lula e Maduro e a convocação do embaixador e do encarregado de negócios não devem afetar o relacionamento entre os dois países, o qual deve ser mantido pelas chancelarias. Ou seja, a crise pode estar relacionada a relações de poder e egos dos dois líderes.
Esse imbróglio, contudo, pode virar um impasse político para Lula. Isso porque o Brasil assume a presidência dos Brics em 2025 e sedia a Cúpula de Líderes do grupo. Com o interesse de Caracas em ingressar o bloco, levanta-se a dúvida sobre a participação de Maduro no encontro. Não convidá-lo pode gerar uma crise diplomática.
Posição do Brasil nos Brics desagradou Venezuela e já criou ruído no Itamaraty
Na última semana, após a Rússia divulgar a lista de 13 nações cotadas para ingressar os Brics como "membros associados", sem incluir a Venezuela, o regime de Nicolás Maduro condenou e responsabilizou o Brasil pela sua exclusão. Em nota, o regime venezuelano classificou a posição brasileira como um "gesto hostil".
"Através de uma ação que contraria a natureza e o postulado dos Brics, a representação da chancelaria brasileira (Itamaraty), liderada pelo embaixador Eduardo Paes Saboia, decidiu manter o veto que [o ex-presidente Jair] Bolsonaro aplicou durante anos à Venezuela, reproduzindo o ódio, a exclusão e a intolerância promovidos desde os centros de poder ocidentais para impedir, por enquanto, a entrada da Pátria de Bolívar nesta organização", diz o documento divulgado pela chancelaria venezuelana.
A manifestação do regime chavista não foi bem recebida nos bastidores do Itamaraty, conforme apurou a Gazeta do Povo, sobretudo pela tentativa de responsabilizar um único agente na decisão de se opor à Venezuela nos Brics. O embaixador citado no texto é o sherpa do Brasil nos Brics – designação utilizada para o representante que conduz as negociações em nome do governo.
O procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, afirmou no último dia 26, em uma rede social do Ministério Público do país, que o presidente Lula mentiu sobre o acidente doméstico para não participar da Cúpula do Brics, que aconteceu na Rússia, de 22 a 24 de outubro, para não ter que confrontar Maduro.
Na avaliação do professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Feliú, o veto do Brasil à Venezuela nos Brics representa a insatisfação do governo brasileiro com os últimos desdobramentos políticos em Caracas.
"O Brasil tentou interceder para que não ocorresse prisões de candidatos oposicionistas entre outras tentativas [de intermediar a crise política na Venezuela] e fracassou em todas elas, o que mostra que Caracas não precisa de Brasília, precisa de China e Rússia. Mas o Brasil mostrou onde ele pode, digamos assim, retalhar a Venezuela, a sua participação como membro original do Brics lhe garantiu impor esse custo à Venezuela", pontua.
Nesta segunda-feira (29), Maduro voltou a criticar o governo brasileiro por sua postura nos Brics e afirmou que sofreu uma "punhalada nas costas". O ditador também disse, em entrevista à TV venezuelana, que Saboya possui um "obscuro passado bolsonarista". O Ministério das Relações Exteriores do Brasil e o presidente Lula não se pronunciaram sobre as declarações de Maduro até o momento.
"O Itamaraty tem sido um poder dentro do poder no Brasil há muitos anos. Sempre conspirou contra a Venezuela. É uma chancelaria muito ligada ao Departamento de Estado americano, desde a época do golpe de Estado contra [o ex-presidente brasileiro] João Goulart", disse Maduro.
Apesar de tentar responsabilizar o Itamaraty e o sherpa brasileiro nos Brics por ter ficado de fora do grupo, analistas explicam que as decisões da chancelaria brasileira não são adotadas em desacordo com a presidência. O ex-chanceler e assessor para assuntos especiais da presidência, Celso Amorim, chegou a afirmar que o veto brasileiro foi uma resposta à "quebra de confiança" da Venezuela.
Amorim é apontado como o principal articulador da política externa deste mandato do presidente Lula e foi a única figura política que acompanhou in loco as eleições presidências em Caracas. Amorim passou quatro dias na Venezuela e se reuniu com Maduro e com o principal nome da oposição, o diplomata Edmundo González, apontado como o verdadeiro vitorioso do pleito venezuelano.
Relacionamento de Maduro com Lula e com o Brasil se deteriorou ao longo do ano
Embora o veto à Venezuela nos Brics fique marcado como o episódio que pode culminar no afastamento entre Lula e Maduro, a relação entre os dois líderes já vinha enfrentando ruídos. A crise na amizade foi desencadeada pela instabilidade política da Venezuela após a fraude eleitoral que elegeu Maduro para um novo mandato como presidente.
O Brasil foi um dos países que pressionou o regime chavista a realizar eleições presidenciais com ampla concorrência e de forma transparente. O processo, contudo, foi marcado por uma série de fraudes e perseguição contra opositores. Após as votações, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela apontou vitória de Maduro sem a devida comprovação e os resultados foram contestados.
O Brasil condicionou o reconhecimento dos resultados à divulgação das atas eleitorais que comprovassem a vitória de Maduro, mas os documentos nunca foram divulgados. Lula chegou a defender o ditador e pedir "presunção de inocência" a Maduro até que as eleições ocorressem.
O brasileiro, inclusive, atuou em defesa do ditador. No último ano, recebeu Maduro com honrarias de chefe de Estado no Brasil e chegou a defender que a Venezuela integrasse os Brics. Essa postura, contudo, mudou às vésperas do pleito, após o venezuelano afirmar que haveria um "banho de sangue" no país caso perdesse as eleições.
Essa situação não agradou a Maduro, que esperava ter o apoio do mandatário brasileiro durante o processo eleitoral. Sem esse suporte de Lula, o ditador venezuelano passou a adotar um tom crítico em relação ao petista e vice-versa. Relembre algumas delas:
Ditador manda Lula tomar chá de camomila
Nicolás Maduro sugeriu que Lula tomasse "um chá de camomila" depois que o mandatário brasileiro se declarou "assustado" com a afirmação do banho de sangue na Venezuela, caso ele fosse derrotado nas urnas. "Eu não contei mentiras. Só fiz uma reflexão. Quem se assustou, que tome um chá de camomila”, declarou o ditador venezuelano.
Maduro diz que boletins eleitorais no Brasil não são auditados
Maduro também disparou ataques ao sistema eleitoral brasileiro em sua campanha presidencial. "Aqui temos 16 auditorias. Em que outra parte do mundo fazem isso? [...] No Brasil? Não auditam nenhum boletim", afirmou durante discurso para plateia chavista. Em resposta aos ataques, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) brasileiro suspendeu o envio de observadores para as eleições em Caracas.
Nota do Itamaraty "parecia ter sido escrita pelos EUA"
Após as eleições no país e o aumento das suspeitas de fraude, o Itamaraty publicou nota afirmando acompanhar "com preocupação" a situação no país. No mesmo documento, a pasta condenou os embargos econômicos à Venezuela, reiterando um posicionamento da diplomacia brasileira sobre sanções. Mas Maduro não interpretou bem o documento.
Em seu perfil no X, Maduro escreveu que "a nota da chancelaria brasileira parecia ter sido escrita pelos Estados Unidos" e teceu críticas ao Itamaraty. O autocrata ainda creditou a Lula a condenação feita pela pasta aos embargos, embora o documento tenha sido feito pelo Ministério das Relações Exteriores.
Venezuela retira custódia brasileira sobre a embaixada da Argentina
Em setembro a chancelaria venezuelana decidiu suspender a custódia brasileira sobre a embaixada da Argentina em Caracas e disse que o local estava sendo utilizado para orquestrar ataques terroristas contra Nicolás Maduro. A representação argentina estava abrigando figuras da oposição bolivariana perseguidas pelo regime de Maduro.
Em resposta, o Itamaraty declarou "surpresa" com a decisão e afirmou que manteria custódia sobre a embaixada até que o governo argentino indicasse um novo representante. A chancelaria brasileira ainda reforçou o princípio da "inviolabilidade das instalações da missão diplomática argentina".
Maduro disse que não interferiu na eleição de Lula
Em agosto, o ditador venezuelano deu a entender que o governo brasileiro estava interferindo em processos internos do país ao comparar a situação eleitoral na Venezuela às eleições brasileiras de 2022.
"No Brasil, houve eleições e o então presidente Bolsonaro disse que haveria uma fraude e não reconheceu o resultado. Houve recurso ante o 'Tribunal Supremo' [TSE] e a decisão foi que os resultados eleitorais davam como vencedor o presidente Lula. Santa palavra no Brasil. E quem se meteu com o Brasil? A Venezuela disse algo? Nós só dissemos respeitar as instituições brasileiras, e o Brasil resolve seus assuntos internamente, como deve ser", declarou.
Cúpula dos Brics no Brasil em 2025 pode virar impasse para governo Lula
Apesar da crise criada entre os dois países, especialistas consultados pela reportagem pontuam que a relação entre os dois Estados não deve chegar ao rompimento.
"Tendo a acreditar, dado ao isolamento venezuelano e a retórica bolivariana, entre outros aspectos da política externa venezuelana, que eles não vão avançar muito na ofensiva contra o Brasil. Pode existir no Maduro uma perspectiva ainda de ganho com o Brasil", avalia Pedro Feliú, docente do departamento de Ciências Políticas da USP.
Na concepção do embaixador Rubens Barbosa, o relacionamento entre Brasil e Venezuela pode ainda ficar parecido com a atual relação entre Brasília e Buenos Aires. Desde que Javier Milei tomou posse em Buenos Aires, o líder argentino não teve uma conversa com Lula. Em lados opostos no espectro político, os dois líderes chegaram a trocar críticas durante a campanha eleitoral de Milei.
O afastamento entre os dois presidentes, contudo, não afetou a relação entre os Estados. Apesar das rusgas, Brasil e Argentina ainda são seus maiores parceiros comerciais na América do Sul.
Por outro lado, o impasse com a Venezuela pode gerar uma crise política para o presidente Lula no próximo ano, quando o Brasil assume a presidência dos Brics em 2025.
"O Brasil e o presidente Lula vão ter um desafio muito grande no ano que vem quando o Brasil sediar a reunião dos Brics no Brasil: vai incluir a Venezuela quando ele [Lula] for presidente dos Brics? Esse vai ser o primeiro problema que o Lula vai ter que enfrentar. A Venezuela é um país latino-americano, vizinho do Brasil... Como é que vai fazer? Acho que é um problema que a gente está criando para nós mesmos", avalia Barbosa, que foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos.
Nesta segunda-feira (29), Nicolás Maduro cobrou uma posição do presidente Lula sobre a postura do Brasil em se opor à adesão da Venezuela nos Brics. "Prefiro esperar que Lula observe, esteja bem informado sobre os acontecimentos, e que ele, como chefe de Estado, em seu momento, diga o que tem que dizer", disse à TV venezuelana.