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Desde que assumiu, há um ano, uma ação específica no Supremo Tribunal Federal (STF), na qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) questionava as provas entregues pela Odebrecht à Lava Jato, o ministro Dias Toffoli proferiu três decisões de grande impacto. Todas elas favoreceram a empreiteira e investigados, mas os atos não foram analisados até agora pelos demais ministros, como manda a lei.
Apesar de parte dos ministros defender, nos bastidores, que as liminares sejam levadas para julgamento em plenário, para que todos os 11 analisem o caso, não há previsão para que isso ocorra. A eventual submissão dos processos ao foro completo da Corte depende também de Toffoli, como relator.
As decisões, monocráticas, atenderam a pedidos da própria Odebrecht ou de políticos e executivos que, segundo a empresa, se beneficiaram dos esquemas de corrupção confessado por ela em seu acordo de leniência com o Ministério Público Federal (MPF). Todas essas decisões de Toffoli se baseiam nas mensagens de procuradores hackeadas e apreendidas pela Polícia Federal em 2019, ainda que nunca tenha sido possível atestar a veracidade do conteúdo.
A Odebrecht e também a J&F – que nem sequer foi investigada na Lava Jato – foram favorecidas com a suspensão no pagamento de aproximadamente R$ 18,5 bilhões que se comprometeram a pagar aos cofres públicos, para ressarcir e indenizar as estatais e órgãos lesados por superfaturamento em contratos, de onde saía o dinheiro para pagar propina.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) já recorreu, mas até o momento os demais ministros não puderam julgar o recurso. Em setembro do ano passado, o órgão pediu a reconsideração da decisão daquele mesmo mês em que Toffoli anulou a validade, como prova, dos arquivos digitais que registravam os pagamentos da Odebrecht para políticos, doleiros e lobistas. Em fevereiro, a PGR entrou com recurso contra a decisão de janeiro do ministro que suspendeu uma multa de R$ 8,5 bi da empreiteira. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, também recorreu contra a suspensão da multa de R$ 10,3 bilhões da J&F, determinada por Toffoli em dezembro de 2023.
A PGR estuda recorrer da mais nova decisão do ministro, da última terça (21), na qual Toffoli anulou todos os procedimentos criminais que restavam contra Marcelo Odebrecht, ex-presidente da companhia, embora mantendo seu acordo de delação premiada.
Para o procurador de Justiça e presidente da ONG Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, decisões monocráticas como as de Toffoli são um “desajuste no sistema”.
“Quando se decide de maneira monocrática no STF, casos que já foram decididos pela primeira instância, em tribunais de Justiça, no Superior Tribunal de Justiça, são revisados numa canetada, o que é um desajuste no sistema. No caso do Marcelo Odebrecht, havia decisões de sentido contrário. No mérito, ele admitia corrupção. Isso causa sensação de amargura. A Lava Jato fez seu trabalho, destampou um caldeirão de corrupção, de expressivo poder, isso é inegável. Não adianta num passe de mágica dizer que essa corrupção não tenha ocorrido. A bola é redonda, não quadrada”, afirma.
Livianu lembra que, no fim de 2022, a então presidente do STF, Rosa Weber, propôs e aprovou uma mudança no regimento que determina que decisões cautelares urgentes devem ser submetidas “imediatamente ao Plenário ou à respectiva turma para referendo”. “O problema é que a resolução não vem sendo cumprida, o que é lamentável. No ano passado tivemos 83% das decisões do STF de origem monocrática. É um dado a ser lamentado, porque tribunais são concebidos pelo sistema de Justiça para oferecer à sociedade decisões colegiadas. É da essência dos tribunais essa natureza”, diz o procurador.
Decisão pode beneficiar executivos da Odebrecht e de outras empresas
A decisão a favor de Marcelo Odebrecht abre portas para que outros 76 executivos da empresa peçam o mesmo, fora outros empresários e dirigentes de outras companhias que também podem tentar uma extensão, como já fizeram alguns da OAS e da Camargo Correa.
Em fevereiro, a Segunda Turma do STF, presidida por Toffoli, chegou a iniciar uma sessão para analisar o recurso contra a anulação das provas da Odebrecht, mas a deliberação foi adiada, por tempo indefinido, a pedido do ministro André Mendonça. Ele é relator de uma ação mais abrangente, que busca repactuar todos os acordos da Lava Jato com empresas investigadas, incluindo UTC, Braskem, Andrade Gutierrez, Engevix, entre outras. Na ocasião, Gilmar Mendes adiantou que também votaria pela anulação das provas da Odebrecht.
Neste ano, Mendonça tem conduzido audiências de conciliação entre o governo e as empresas, que tentam obter descontos nas multas. Nesta quinta (23), foi discutida a possibilidade de pagamento por meio do abatimento em tributos e na realização de obras para a reconstrução do Rio Grande do Sul, que teve a infraestrutura devastada pelas enchentes.
Quanto às anulações de provas e processos contra réus oriundos da leniência da Odebrecht, as decisões de Toffoli são proferidas sem grande alarde e já somam dezenas de casos. Outras dezenas de decisões similares já haviam sido tomadas por Ricardo Lewandowski, já aposentado e hoje no Ministério da Justiça. Essas decisões partem da premissa de que cópias dos sistemas MyWebDay e Drousys, que eram mantidos na Suíça e na Suécia pela Odebrecht, não foram devidamente trazidas ao Brasil.
Formalmente, caberia à Segunda Turma – formada por Gilmar Mendes, André Mendonça, Kassio Nunes Marques e Edson Fachin analisar recursos contra decisões de Toffoli. Mas cresce na Corte a percepção de que a magnitude do tema exigiria uma manifestação do plenário, de modo que participassem também da deliberação Cristiano Zanin, Flávio Dino, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. De todos esses, apenas os dois últimos ainda defendem o legado da Lava Jato.
No STF, Fachin é o relator da Lava Jato, mas Toffoli vem anulando processos a partir de uma ação de Lula, que questionava as provas da Odebrecht. Originalmente, essa ação estava com Lewandowski, porque ele deu o voto vencedor num julgamento na Segunda Turma em 2020 para entregar a Lula essas provas. A partir disso, vários investigados usam desta ação para driblar Fachin. Toffoli assumiu a ação após migrar de turma no STF, depois que Lewandowski se aposentou.
Investigação sobre corrupção envolvendo empreiteira continua no Peru
Enquanto no Brasil a Lava Jato vem sendo destruída pouco a pouco, no exterior os processos contra políticos e lobistas corrompidos pela Odebrecht são preservados. Nesta semana, o promotor e coordenador da Lava Jato no Peru, Rafael Vela, disse que a decisão de Toffoli não afeta as ações do caso em andamento no país. “Não há impacto. O senhor Marcelo Odebrecht, na verdade, é uma testemunha, não é um colaborador efetivo e sempre demonstrou vontade de colaborar com o sistema de Justiça peruano”, afirmou à imprensa.
Depois, o juiz fez uma crítica indireta ao modo como os processos vêm sendo desfeitos no Brasil. “Evidentemente, dentro de todas essas decisões há sempre, dentro do que as pessoas pensam, até mesmo no próprio Brasil, um possível e presumido fenômeno de politização da Justiça”.
A ONG Transparência Internacional, que apoiou e colaborou com a Lava Jato, foi mais dura. “A destruição da luta contra a corrupção no país é implacável”, afirmou, em nota. A entidade passou a ser investigada por Toffoli depois que fez críticas às suas decisões no início do ano. O motivo é a consultoria gratuita que prestou para a força-tarefa para montar um plano de investimentos em ações sociais com o dinheiro pago nas multas aplicadas às empresas. Com base em ilações do PT, o ministro aponta uma suposta apropriação indireta dos recursos.
Ex-coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol lembrou que Toffoli foi citado por Marcelo Odebrecht, em sua delação, como o “amigo do amigo de meu pai”. “Um dos maiores corruptos confessos da história do Brasil, que entregou provas e informações sobre crimes cometidos por autoridades de todos os escalões da República, foi blindado pelo ministro que ele mesmo citou em sua delação. A corrupção venceu e quem a colocou no pódio foi o STF”.
Toffoli diz que Dallagnol e Moro agiram em conluio para forçar a Odebrecht e seus executivos a firmarem acordos de leniência e delação premiada. A decisão que anulou os processos contra Marcelo Odebrecht está baseada nas conversas entre os dois e de diálogos entre os procuradores da Lava Jato, na qual discutiam estratégias para aprofundar as investigações. Esses diálogos foram captados de forma clandestina por hackers, e não há garantia que não tenham sido editados, deturpados ou retirados de contexto.