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Trump presenteia Bolsonaro na Casa Branca, em março de 2019: aval do Brasil permite voos fretados para deportar brasileiros.
Trump presenteia Bolsonaro na Casa Branca, em março de 2019: aval do Brasil permite voos fretados para deportar brasileiros.| Foto: Isac Nóbrega/PR

Os voos da ICE Air Operations (IAO) estão longe de ser os mais agradáveis. Apesar de operados com modelos Boeing 737, do mesmo tipo dos aviões da Gol, neles não há luxo algum. Pelo contrário. É proibido levantar-se e caminhar pelo corredor. Ir ao banheiro, somente com autorização e vigilância. Alimentação, só o mínimo necessário.

E para piorar, boa parte dos passageiros é obrigada a viajar algemada e com as pernas acorrentadas, sob o olhar atento não de comissários de bordo, e sim de agentes de segurança.

Não por acaso a IAO não é uma companhia aérea comum. Ela é o braço aéreo do Serviço de Imigração e Fiscalização Aduaneira dos EUA (ICE, na sigla em inglês) que realiza voos de deportação de cidadãos inadmitidos naquele país.

Cinco voos desse tipo foram cumpridos nos últimos meses com brasileiros que tiveram negada a entrada em solo norte-americano. A origem sempre é o aeroporto de El Paso, no estado do Texas, que fica a cerca de cinco quilômetros da fronteira com o México. O destino é o aeroporto de Confins, na região metropolitana de Belo Horizonte.

O primeiro deles ocorreu em outubro de 2019, o segundo em janeiro deste ano e os dois mais recentes em fevereiro. Ao todo, 367 cidadãos brasileiros, incluindo crianças, tomaram esses voos.

Após CPMI, Itamaraty desautorizou deportação em massa

A deportação em massa de nacionais do Brasil não ocorria desde 2006, ainda no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, quando foi finalizada a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) sobre emigração de brasileiros para os EUA — o objetivo era investigar a atuação de traficantes de pessoas, os chamados coiotes, e as condições dos cidadãos do Brasil no exterior.

Um dos resultados foi a desautorização, por parte do Itamaraty, de voos fretados para deportação em massa. Assim, o órgão passou a trabalhar caso a caso, na expectativa de conseguir reverter a decisão das autoridades norte-americanas e permitir a permanência nos EUA. Quando não era possível a reversão, o cidadão era deportado em aviões de companhias aéreas.

Essa política começou a mudar no governo Temer, que voltou a autorizar os voos fretados, mesmo que em menor número — em 2017 foram dois voos, totalizando sete pessoas. E, após um pedido formal feito pelo governo dos EUA em 2019, o Itamaraty não se opôs e autorizou a deportação em massa em voos fretados.

Trata-se de um reflexo da política externa do presidente Jair Bolsonaro de alinhamento com Donald Trump, presidente dos EUA. “A decisão de deportar vai da soberania do país. É uma questão política. Quando o transporte não é realizado por voos comerciais e sim em voos fretados, o país de retorno precisa autorizar a chegada da aeronave, que é o caso do governo atual”, explica a advogada e especialista em Relações Internacionais e Diplomacia, Joseane Schuck Pinto.

Durante visita à Índia no fim de janeiro, logo que o segundo voo de deportados brasileiros aterrissou em Belo Horizonte, Bolsonaro validou a nova política. “Eu acho que em qualquer país as suas leis têm que ser respeitadas. Qualquer país do mundo onde pessoas estão lá de forma clandestina é um direito daquele chefe de Estado, usando da lei, devolver esses nacionais”, disse o presidente.

Deportação de brasileiros tem algemas e correntes

Toda a operação de deportação é de responsabilidade dos EUA. Ao Brasil cabe, apenas, a autorização do voo. Como o órgão de imigração norte-americano não possui frota própria para voos longos e com grande capacidade, precisa fretar os aviões.

Os cinco voos que chegaram ao Brasil desde outubro do ano passado foram operados em aeronaves da empresa iAero Airways, especializada em fretamentos e com 22 equipamentos na frota. Segundo o ICE, o custo da operação varia entre 8,5 mil e 26,8 mil dólares por hora de voo, dependendo do tipo de aeronave e a distância até o destino. Tudo é pago pelo governo dos EUA — aluguel da aeronave, combustível, tripulação e profissionais destacados para a missão.

Esses profissionais, em geral agentes do próprio ICE, cuidam de toda a logística, desde a retirada das pessoas dos centros de imigração, ainda nos EUA, até o desembarque. E, pelo caráter da missão, é comum que os deportados sejam transportados com algemas e pernas acorrentadas, sendo libertados somente quando a aeronave chega ao país de destino — nem todos são obrigados a usar os aparatos e a decisão depende dos agentes de segurança. O procedimento é comum e previsto em lei.

“O governo americano, através da nova política migratória, acaba trazendo o dispositivo que permite a prática de algemar. Isso é altamente legítimo no governo americano. Para o Direito Internacional, sobretudo dos direitos humanos, fere a dignidade da pessoa humana. Mas é uma postura dos EUA, que se retirou da agenda dos direitos humanos”, pondera Joseane.

Sobre o assunto, o presidente Bolsonaro disse que o Brasil não faria isso, mas que respeita a decisão norte-americana. “Obviamente, nós não faríamos isso com ninguém, saindo do Brasil para qualquer país”, comentou. “Jamais pediria para ele [Trump] descumprir a lei. A lei americana diz isso. É só não ir para os EUA de forma ilegal”, completou.

Brasileiros barrados na fronteira

De acordo com dados do ICE, cerca de 18 mil brasileiros foram detidos por tentar entrar de forma irregular nos EUA em 2019. Esse número representou um aumento de 600% em relação a 2016, quando 3.252 cidadãos do Brasil foram barrados – último recorde registrado.

Apesar de os dados ainda não estarem consolidados, o órgão de fronteira dos EUA estima em 1,6 mil o número de brasileiros detidos somente em janeiro deste ano tentando entrar no país sem a documentação necessária.

Como consequência, a quantidade de deportados brasileiros também vem aumentando. De 2015 a 2019, houve um crescimento de 138% de pessoas enviadas de volta para o Brasil — eram 744 e no ano passado chegou a 1.770. A tendência, inclusive, é de que, com os voos fretados, a quantidade de brasileiros deportados dos EUA cresça ainda mais rapidamente – sem contar a própria política de imigração norte-americana, mais rígida.

“Essa política de endurecimento não é exclusividade do governo Trump. Em 2016, quando Barack Obama ainda era presidente, a política imigratória já começou a ficar mais endurecida. Mas, com o Trump, as detenções aumentaram mais de 40% em relação ao mandato do Obama”, diz Joseane.

Protocolo prevê que brasileiros sejam enviados ao México

Quando são barrados na fronteira, os cidadãos brasileiros são detidos e levados para centros de imigração, onde aguardam o processo de deportação. O governo dos EUA, porém, anunciou no fim de janeiro que os brasileiros que forem detidos na fronteira poderão ser enviados novamente ao México, onde aguardarão a decisão das autoridades norte-americanas sobre a autorização de ingresso no país.

Esse instrumento é chamado de Protocolo de Proteção dos Migrantes (MPP, na sigla em inglês). Até então, era usado para cidadãos que falassem espanhol, sob a justificativa de que teriam condições de se adaptar à realidade mexicana enquanto aguardassem a resposta dos EUA.

“O fato de os brasileiros agora fazerem parte do programa mostra que o Departamento [de Segurança Interna], juntamente com as autoridades mexicanas, sempre procurou expandir o programa de maneira segura e responsável. O MPP tem sido um elemento crucial do sucesso do Departamento em lidar com a crise em curso, proteger a fronteira e acabar com a captura e liberação”, informou o Departamento de Segurança Interna em nota à imprensa.

A principal crítica ao programa é de que as pessoas enviadas para o México são levadas para cidades onde os índices de violência são altos, como Nuevo Laredo e Matamoros. Ambas estão no estado de Tamaulipas, local que o Departamento de Estado dos EUA classifica como nível 4 (“não viaje”) – o mesmo de países como Afeganistão, Irã Líbia e Síria.

Segundo a Human Rights First, uma organização internacional de direitos humanos, mais de 59 mil pessoas foram acomodadas no MPP, sendo pelo menos 26 mil na região de Tamaulipas — a maioria são cidadãos de Honduras e Guatemala. De acordo com a mesma organização, foram registrados 816 casos em 2019 de assassinato, tortura, estupro, sequestro e outros ataques violentos contra pessoas barradas nos EUA.

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