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A morte da menina Agatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, com um tiro nas costas supostamente disparado pela Polícia Militar no Rio de Janeiro, colocou em xeque o excludente de ilicitude – medida que protegeria policiais que matam criminosos numa situação de confronto, em legítima defesa e no cumprimento de seu dever profissional.

Proposto pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, o excludente está entre as medidas propostas no pacote anticrime. Já não era unanimidade na Câmara. E agora tende a enfrentar ainda mais resistência na Casa. A tendência é que o ponto seja retirado do relatório do deputado Capitão Augusto (PL-SP), ou pelo menos alterado, no grupo de trabalho que analisa o pacote de Moro.

Agatha foi morta com um tiro nas costas na sexta-feira (20), durante uma ação da Polícia Militar no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio. Ela estava dentro de uma Kombi com a mãe quando foi atingida. A PM do Rio de Janeiro alega que os policiais foram “atacados de várias localidades da comunidade de forma simultânea” e revidaram. Não reconhece que o disparo possa ter sido disparado por um policial. Mas a versão é contestada pela família da menina e por testemunhas, que dizem que apenas a PM fez disparos.

Excludente de ilicitude: deputados contestam texto atual

O grupo de trabalho que analisa as propostas de Moro deve se reunir duas ou três vezes nesta semana para analisar pontos do projeto. O primeiro encontro da semana será nesta terça-feira (24). O grupo foi prorrogado por mais 30 dias na semana passada, mas a expectativa dos deputados é encerrar as discussões ainda nesta semana. O excludente de ilicitude deve ficar para o final da votação do relatório de Capitão Augusto.

No domingo (22), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se manifestou sobre a morte de Agatha e disse esperar uma avaliação “cuidadosa e criteriosa” do excludente de ilicitude. “Qualquer pai e mãe consegue se imagina no lugar da família da Ágatha e sabe o tamanho dessa dor. Expresso minha solidariedade aos familiares sabendo que não há palavra que diminua tamanho sofrimento”, disse Maia. “É por isso que defendo uma avaliação muito cuidadosa e criteriosa sobre o excludente de ilicitude que está em discussão no Parlamento”, completou o presidente da Câmara.

O deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG), que integra o grupo de trabalho, acredita que a tragédia envolvendo Agatha será levada em consideração nas discussões do colegiado desta semana. “De alguma forma é um evento que tem que ser levado em consideração”, diz. “O pacote anticrime tem a previsão desse excludente de ilicitude, que na minha visão eu tenho dúvidas quanto à eficácia dele, porque o código já prevê o excludente.”

Para o deputado, o grupo tende a promover alterações no texto enviado por Moro. “Eu acho que vai ser alterado; o texto não vai ficar exatamente igual. Embora alguns achem que deve ser retirado, a tendência é ser modificado”, afirma.

O deputado Fábio Trad (PSD-MS), que também participa das discussões do grupo, disse que o caso Agatha não deve interferir na sua posição sobre o tema. “De minha parte eu não vou me permitir contagiar minhas posições em virtude desse fato, embora tenha sido trágico e revele uma situação crônica.”

O deputado acredita que o excludente de ilicitude previsto por Moro deve ser retirado do relatório ou alterado. “Minha posição é de que se mantenham o texto atual Código Penal, que é muito bom e já abarca os policiais que hajam em legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal, ou que se construa um texto diferente”, afirma Trad. “O texto do pacote não me parece bom e tecnicamente ajustado a realidade que queremos para o Brasil, ele estimula a letalidade policial.”

Moro defende o excludente de ilicitude

Moro defendeu o excludente de ilicitude. “Lamentável e trágica a morte da menina Agatha”, disse o ministro. “Não há nenhuma relação possível do fato com a proposta de legítima defesa constante no projeto anticrime”, defendeu.

Em nota, o Ministério da Justiça afirmou que Moro “lamenta profundamente a morte da menina Agatha, é solidário à dor da família, e confia que os fatos serão completamente esclarecidos pelas autoridades do Rio de Janeiro”. “O Governo Federal tem trabalhado duro para reduzir a violência e as mortes no País, e para que fatos dessa espécie não se repitam”, finaliza a nota.

O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, Felipe Francischini (PSL-PR), também defendeu a proposta do governo no Twitter. “A morte da menina Agatha é triste. No entanto, não se pode usar isso para prejudicar o debate sobre o Pacote Anticrime na questão da excludente de ilicitude. O projeto é bastante claro quanto às hipóteses e limites. Não há carta branca para matar. Leiam o projeto e deixem de má-fé”, disse o ´deputado.

O que diz o projeto de Moro sobre o excludente de ilicitude

O projeto enviado por Sergio Moro altera dois artigos do Código Penal sobre legítima defesa. O primeiro é o artigo 23, que atualmente diz o seguinte:

“Art. 23. Não há crime quando o agente [policial] pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”. 

Moro propõe acrescentar dois parágrafos ao texto:

“§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.

§3.º O disposto no parágrafo anterior não se aplica a crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor”. 

Além disso, Moro propõe alterações no artigo 25, que atualmente diz o seguinte:

“Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. 

O ministro quer incluir no artigo um parágrafo único, com a seguinte redação:

“Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: 

I - o agente de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e

II - o agente de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. 

O relator da proposta, Capitão Augusto, já dava como certo que esses pontos seriam retirados do relatório pelo grupo. Mas o deputado acredita que a proposta pode ser retomada na discussão na CCJ ou no plenário da Câmara.

Política de segurança pública do Rio é contestada

Não foi apenas o pacote anticrime que passou a sofrer ainda mais resistência após a morte de Agatha. A própria política de segurança pública adotada pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, passou a ser mais questionada. Só neste ano, cinco crianças foram mortas em ações da Polícia Militar.

Números oficiais do governo do estado mostram que apenas neste ano 1.249 pessoas morreram em ações envolvendo agentes do estado. Só em julho foram 194 pessoas mortas pela polícia no Rio, uma média de quase sete pessoas por dia.

Em entrevista ao Bom Dia Rio da TV Globo, no mês passado, o secretário da Polícia Civil, delegado Marcus Vinícius Braga, disse que a tendência é que o número aumente ainda mais até dezembro.

“Os casos de mortes resultantes de ações policiais nas favelas são alarmantes. Agatha é a quinta criança morta em tiroteios no RJ neste ano. Ao total, 16 foram baleadas no período. Uma política de segurança pública eficiente deve se pautar pelo respeito à dignidade e à vida humana”, disse no fim de semana o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes.

O deputado federal Marcelo Freixo (PSol-RJ) disse que Witzel disputa com o tráfico quem faz mais mal às favelas do Rio. “Um terço dos moradores do Rio estão nas comunidades, que não são compostas de gente envolvida no crime. Tem tráfico? Tem, mas os moradores são as maiores vítimas do que acontece lá. Hoje, o governador disputa com o tráfico quem faz mais mal à favela”, disse.

“A morte de uma criança de 8 anos não pode ser um dano colateral de uma política de ‘segurança’. Se morre uma criança por causa dessa política de ‘segurança’, é porque a política está errada”, ressaltou o deputado.

Em nota, o governo do Rio de Janeiro lamentou a morte de Agatha e defendeu o trabalho da polícia. “O Governo do Estado lamenta profundamente a morte da menina Agatha, assim como a de todas as vítimas inocentes, durante ações policiais. O trabalho realizado pelas polícias, que têm como principal objetivo localizar criminosos e apreender armas e drogas, é pautado por informações da área de inteligência e segue protocolos rígidos de execução, sempre com a preocupação de preservar vidas”, disse o governo.

Após as críticas, o governador do Rio de Janeiro convocou uma coletiva de imprensa para a tarde desta segunda-feira (23) para falar sobre a morte de Agatha. Além de Witzel, vão participar da coletiva os secretários de Polícia Civil, Polícia Militar e de Vitimização.

Entidades também se manifestam

Em nota, a OAB do Rio de Janeiro lamentou a morte de Agatha e criticou a política de segurança pública adotada pelo governador, Wilson Witzel (PSC). “A morte de Ágatha vem se somar à estatística de 1.249 pessoas mortas pela polícia nos oito primeiros meses do ano. Um recorde macabro que este governo do Estado aparenta ostentar com  orgulho”, diz um trecho da nota.

“As mortes de inocentes, moradores de comunidades, não podem continuar a ser tratadas pelo governo do Estado como danos colaterais aceitáveis. A morte de Ágatha evidencia mais uma vez que as principais vítimas dessa política de segurança pública, sem inteligência e baseada no confronto, são pessoas negras, pobres e mais desassistidas pelo Poder Público”, diz a OAB.

A Anistia Internacional Brasil (AIB) afirmou, em nota, que "exige que o Estado assuma sua responsabilidade de proteger o direito humano à vida de todos e todas, independentemente de sua raça e independentemente do seu local de moradia".

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro criticou a opção pelo confronto adotada pelo governo do estado. "Acreditamos em uma política de segurança cidadã, que respeite os moradores das favelas e de qualquer outro lugar. A opção pelo confronto tem se mostrado ineficaz: a despeito do número recorde de 1.249 mortos em ações envolvendo agentes do estado apenas este ano, a sensação de insegurança permanece. No caso das favelas, ela se agrava", diz em nota.

PM insiste em tese do confronto, mas moradores negam

“A Polícia Militar reforça a versão apresentada pelas policiais militares de que foram atacados de forma simultânea por marginais daquela localidade. Não há nenhum indicativo nesse momento de uma participação do policial militar no triste episódio que vitimou a pequena Ágatha”, disse o porta-voz da PM, Mauro Fliess em entrevista ao Jornal Nacional.

“Que confronto? A minha neta estava armada por acaso para poder levar um tiro?”, contestou o avô de Agatha, Ailton Félix. Moradores da região dizem que a PM disparou na direção de uma moto que passava perto da kombi, onde estava a criança. Segundo testemunhas, só houve disparos por parte da polícia.

O motorista da kombi em que Agatha estava com a mãe também negou a versão da PM. "Não teve tiroteio nenhum, foram dois disparos que ele deu. Falou que foi tiroteio de todos os lados. É mentira! Mentira!", disse.

Apesar da repercussão do caso da menina Agatha, a PM defende a política de segurança pública adotada nas favelas do Rio de Janeiro. “Não iremos recuar, o governo do estado está no caminho certo, estamos reduzindo o número de homicídios dolosos e lamentamos profundamente que pessoas inocentes como a Ágatha e como outras que já aconteceram no estado do Rio de Janeiro que perderam suas vidas”, disse Fliess ao Jornal Nacional.

Os policiais que participaram da ação devem prestar depoimentos nesta segunda-feira (23) na Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro. Eles também devem entregar as armas para que a Polícia Civil realize um confronto balístico com o projétil encontrado no corpo da criança. Assim, a perícia deve concluir se o tiro partiu mesmo da PM. A kombi em que Agatha estava com a mãe também vai passar por uma perícia.

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